sábado, 31 de dezembro de 2011

Ano Novo - Jornada Mundial pela Paz

Procuremos a Paz com paciência e tenacidade.
(Nm 6,22-27; Sl 66/67; Gl 4,4-7; Lc 2,16-21)
Na celebração cristã do Novo Ano se entreleçam três temas: o começo de um novo ano civil, a maternidade de Maria e a Jornada Mundial pela Paz. Para começar, lembremos que um ano novo, marcado pela novidade regeneradora da Paz, não costuma chegar da noite para o dia, ao som e luz de fogos de artificio. As novidades promissoras e duradouras costumam ser gestadas muito pacientemente no ventre profundo da história e das pessoas de boa vontade, daquelas que acolhem os dons e convites que vêm dos desertos, das periferias e das fronteiras, dons que desestabilizam e põem a caminho. As novidades promissoras e duradouras vêm do fogo do Espírito, acolhido no íntimo da oração e posto em ação no ardor das lutas. Bento XVI sublinha que a Paz precisa ser buscada com paciência e tenacidade.
“O Senhor te abençoe e te quarde!”
A cada ano o mundo reconhece oficialmente uma pessoa como referência para a construção da Paz e lhe concede o Prêmio Nobel. Normalmente este reconhecimento é correto e dá força a pessoas que lutam com poucos meios, arriscando a própria vida para que os outros vivam e convivam melhor. Graças a Deus, o prêmio do ano 2011 foi para três mulheres admiráveis: Ellen Johnson-Sirleaf, presidente da Libéria; Leymah Gbowee e Tawakul Barman, ativistas dos Direitos Humanos.
Nascido e acolhido também por nós e no meio de nós, Jesus de Nazaré pacifica o mundo estabelecendo relações novas, baseadas na justiça, inclusive na justiça internacional. E ele cumpre a promessa de Deus e a esperança humana através de cada um/a de nós, dos homens e mulheres de boa vontade, dos/as líderes autênticos/as e das organizações que não se resignam à paz aparente, a paz baseada no equilíbrio de forças ou no terrorismo estatal.
Moisés recebeu de Deus, ensinou a Aarão e todos nós aprendemos: somos convidados a abençoar e bendizer (dizer o bem) as pessoas, grupos, comunidades e organizações. Que o nosso desejo em relação a todos/as seja tão belo e tão profundo quanto as palavras que podemos repetir durante todo o dia de hoje: “Deus te abençoe e te guarde! Deus mostre seu rosto brilhante e tenha piedade de ti! Deus mostre seu rosto e te dê a paz!” Assim seremos princípios e príncipes da Paz.
“Os pastores retiraram-se louvando e glorificando a Deus...”
O tempo de Natal continua, e a liturgia também segue convidando a penetrar mais profundamente o mistério da encarnação de Deus. Hoje contemplamos a chegada dos pastores à gruta Belém. Lá eles encontram Jesus no seio de uma família pobre e migrante. Ficam vivamente impressionados com o que vêem, e comparam com tudo aquilo que tinham ouvido. Como pode uma criatura tão frágil ser portadora da Paz a todos os homens e mulheres de boa vontade?
Parece que os pastores conseguiram compreender este mistério de um Deus a quem não apraz a força dos cavalos ou dos tanques, dos cortejos de acólitos, das doutrinas – mesmo as eclesiásticas! – e dos códigos de direito – mesmo os canônicos! –, nem tampouco os kamikazes e homens-bomba. Ele se alegra com o despojamento solidário de quem se faz próximo e peregrino com os deslocados e, por isso, volta louvando e glorificando a Deus por tudo o que vê e ouve.
Jesus recebe o nome proposto pelo Anjo a Maria no anúncio-convite. Ele se chama boa notícia da salvação: Deus salva seu povo do pecado. Ele age libertando, perdoando. Estamos livres do débito que temos conosco mesmos/as e com os outros por não conseguirmos realizar a utopia que realmente sonhamos. Estamos livres da culpa de termos ficado aquém ou de termos errado o alvo. Deus não espera que cheguemos heroicamente a ele. Ele mesmo vem decididamente ao nosso encontro. Ele é nossa Paz!
“O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a Paz!”
Suspiramos por uma Paz que é t­ão necessária quanto urgente. Uma paz que não venha apaziguar superficialmente as relações humanas passando ao largo das relações desiguais que precisam ser mudadas. Gememos e sofremos por uma Paz geral e profunda que parece atrasada e até impossível. Lutamos por esta Paz em todas as frentes a ponto de quase perdermos a paz.
Esta Paz não está unicamente no fim do caminho, na plena confraternização entre lobos e cordeiros, serpentes e crianças. Ela está no caminho, na caminhada, nos/as caminhantes. Está nas pessoas inconformadas que ousam mudar, renovar, começar de novo, e isso a cada dia. Está nos homens e mulheres que adquiriram a sabedoria que vê nas sementes as flores e os frutos que virão depois, que encarnam nas relações cotidianas os sonhos e utopias que, literalmente, parecem não ter um lugar.
Em cada missa o presidente da celebração reza pedindo a Paz a Jesus Cristo, lembrando que ele a ofereceu aos discípulos, na noite da páscoa. E deseja que a Paz de Jesus Cristo, não aquela paz pequena construída sobre o medo do poder do outro, esteja sempre conosco. E nós respondemos que o amor de Cristo nos uniu e, portanto, estamos em paz e dispostos/as a fazer o possível para que esta Paz presida as relações entre pessoas, povos, nações e religiões. É aqui que começa o mundo novo celebrado no Natal.
“E todos recebemos a dignidade de filhos/as...”
Na mensagem para a Jornada Mundial da Paz celebrada hoje em todo o mundo, cujo tema é educar os jovens para a Justiça e a Paz, o Papa Bento XVI lembra que a Paz é bem mais que ausência de guerra ou equilíbrio de forças militares. “A Paz não é possível sem a salvaguarda do bem das pessoas, a livre comunicação entre os seres humanos, o respeito pela plena dignidade das pessoas e dos povos e a prática da fraternidade. A Paz é fruto da justiça e efeito da caridade”.
A Paz não é apenas um dom a ser pedido e recebido na oração, mas uma obra a ser construída com perseverança e abertura de coração. Para que a juventude seja efetivamente artífice da Paz é preciso que tenham acesso a um processo educativo que a exercite na compaixão, na colaboração e na solidariedade. É esse exercício que possibilita o despertar da consciência para as grandes questões nacionais e internacionais, relativizando a busca de um bem-estar egoísta e pouco cristão.
É exatamente neste aspecto que o Papa reconhece nos jovens um precioso dom para a sociedade e a Igreja, e os convida a viver com confiança os anseios profundos por felicidade, verdade, beleza e amor verdadeiros. Assim eles são também exemplo e estímulo para os adultos, especialmente da recusa da injustiça e da corrupção. “Não tenhais medo de vos empenhar, de enfrentar a fadiga e o sacrifício, de optar por caminhos que requerem fidelidade e constância, humildade e dedicação”, interpela Bento XVI.
“Nascido de mulher, nascido sujeito à Lei...”
O último versículo do evangelho de hoje nos faz saber que Jesus foi circuncidado. Com este rito, Jesus é oficialmente acolhido no mundo do judaísmo, tornando-se partícipe de sua história e de suas utopias. Mas, como nos lembra o Pe. Berthier, com esta marca física ele diz também que quer levar no seu corpo a marca do pecado e o peso da dor que faz gemer a terra. E é do ventre desta dor que ele desperta a dignidade de todas as criaturas e o grito em coro: “Abbá, pai querido!”
Para os cristãos, o fundamento da Paz é a relação de Jesus Cristo. Nascido de mulher e sob a Lei, Jesus conduz à liberdade todas as pessoas, começando pelos últimos, pelas pessoas que são colocadas à margem. Ele confirma que  Deus reconhece todos/as como filhos/as, convidando a superar relações pautadas pelo medo e pela escravidão. Todos/as estão em paz com Deus! Todos podem proclamar “meu Papai querido!” É  aqui que a glória de Deus se espalha na terra e um ano e um mundo novo iniciam.
Na condição de filhos/as, somos também herdeiros/as. Qual é a herança que recebemos? Nada menos que o Reino de Deus, o horizonte que deu sentido e força à prática de Jesus, a “shalom” que proporciona o “tudo de bom” que repetimos nestes dias de passagem, o convívio sadio que descansa em bases de justiça. Somos herdeiros/as do sonho de uma humanidade que se reconheça como família de nações, povos, etnias e religiões, diferentes mas igualmente respeitáveis, dignas e  irmãs.
Deus querido, Pai e Mãe! Faz-nos construtores/as de Paz neste ano que inicia. Ensina-nos a contemplar e compreender o anseio de Paz e de comunhão que pulsa no coração do mundo. Suscita em nós o canto que brota da dignidade indestrutível de filhos e filhas. Guia-nos no respeito e no respeito e no apreço pela sede de Paz que inquieta e mobiliza nossos jovens. E dá-nos experimentar, como Maria e os pastores, a alegria de reconhecer a grandeza de Deus na pequenez e na fragilidade humana.
Pe. Itacir Brassiani msf

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Festa da Sagrada Familia

Na Sagrada Família, o maior dom de Deus à humanidade.
(Gn 15,1-6.21,1-3; Sl 104/105; Hb 11,8.11-12.17-19; Lc 2,22-40)
Neste ano, a a Festa da Sagrada Família é celebrada no meio da semana. Esta é uma festa muito especial para nós, Missionários da Sagrada Família. Nesse dia, mais que noutros, desejamos estar atentos ao que nos ensina e inspira esse modelo de espiritualidade que o Pe. Berthier nos deu em herança. Nela Deus entrega seu mais precioso dom à humanidade e, através dela, a humanidade deu a Deus sua resposta mais generosa. Acompanhemos os passos de Maria e José levando o Menino a Jerusalém, centro da fé judaica, e, depois, à região periférica da Galiléia. Escutemos o que nos diz o evangelista e o que dizem profeticamente Simeão e Ana. Contemplemos o processo humano e espiritual dessa família que caminha na obscuridade fecunda da fé.
“Conforme está escrito na Lei do Senhor...”
No dia em que festejamos a família de Jesus não podemos ceder à piedosa tentação de imaginar uma família idealizada e espiritualizada, alheia à realidade histórica e cultural. Do ponto de vista sociológico, a Sagrada Família é uma família judia absolutamente normal, tão normal que nem sequer despertou a atenção dos vizinhos e da sinagoga, a não ser depois do evento pascal do filho. Ela viveu os valores humanos e religiosos de uma família crente, freqüentando a sinagoga, meditando a palavra dos profetas, peregrinando ao templo, celebrando a liturgia doméstica...
É isso que vemos no evangelho de hoje. Maria e José vão ao templo para cumprir a lei que pedia que as mulheres se purificassem depois do parto. Eles apresentam Jesus ao templo e ao povo, mesmo que isso não fosse uma obrigação.  Mas além deste aspecto de normalidade do ponto de vista das tradições do judaísmo, a família de Nazaré foi normal no sentido social e econômico: participou do mundo do trabalho, nas condições normais das demais famílias; cumpriu a tarefa de educar os descendentes; relacionou­se com os parentes do clã e do povoado.
A santidade da Sagrada Família não depende da compenetração, da moralidade ou da piedade dos seus membros, nem das práticas religiosas ou da pureza ritual. A santidade da família de Nazaré se fundamenta na centralidade da pessoa de Jesus e nas relações que sua presença provoca entre os demais membros, no dinamismo de confiança, acolhida e doação de si que ele instaura. Ela é santa ou sagrada na medida em faz de Deus e de sua vontade a referência de suas opções e práticas.
 “O pai e a mãe ficavam admirados com aquilo que diziam do menino.”
A Sagrada Família percorreu o caminho da marginalidade de Belém ao centro de Jerusalém, e nada de especial se percebe enquanto cumpre as leis prescritas pela sua tradição religiosa. O momento alto e revelador está centrado no encontro com deste pequena família com Simeão e Ana. Eles faziam parte de um pequeno resto fiel, , piedoso, profético, inspirado pelo Espírito de deus. E aqui tudo chama a atenção para o significado do filho que Maria e José carregavam nos braços.
Simeão toma nos seus braços aquela criatura vulnerável e, com olhar transparente, lê na sua fragilidade a presença libertadora de Deus. É uma salvação que desborda as fronteiras étnicas e religiosas de Israel. “Meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, luz para iluminar as nações e glória do teu povo, Israel”. Ana também “falava do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém”. Daqui o missionário de levar todos seres humanos a formar a única família do Pai.
Em Jerusalém o jovem casal experimenta um certo brilho e uma grande satisfação. Maria e José “estavam maravilhados com o que diziam do menino”. Poucas coisas estavam claras, mas neles crescia a percepção de que o filho que lhes fora confiado era especial para todos os povos. Recebem a bênção do velho Simeão e progressivamente vão se dando conta da grande responsabilidade que receberam, junto com o presente daquele filho.
 “Ele será um sinal de contradição.”
Mas o entusiasmo logo é temperado pelas palavras misteriosas que Simeão dirige a Maria: “Eis que esse menino será causa de queda e elevação de muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição. Quanto a você, uma espada há de atravessar-lhe a alma. Assim serão revelados os pensamentos de muitos corações.” José e Maria se dão conta de que nem todos os membros do povo de Israel e dos outros povos se sentirão honrados e iluminados no seu filho.
Unidos pelos laços de um amor profundamente humano e dentro do horizonte das tradições do seu povo, José e Maria tiveram que avançar no escuro da fé. Como Abraão, se lançaram na estrada sem saber onde chegariam. Ousaram acreditar, e isso lhes foi creditado como justiça. Tiveram que se abrir sempre mais à novidade que Deus manifestava através do filho que lhes fora confiado. “Pela busca em comum da vontade de Deus e pela comunicação de seus dons, a Sagrada Família deve caracterizar nosso agir e viver missionários”, diz a Constituição dos MSF.
“Eles voltaram a Nazaré, sua cidade, na Galiléia.”
Como sabemos, a população da Galiléia era mestiça, tanto do ponto de vista étnico como religioso. A região era chamada depreciativamente de região dos gentios (cf. Is 8,23) e nunca chegou a ser uma terra verdadeiramente israelita, pelo menos do ponto de vista religioso. A vila de Nazaré era um pequeno povoado e representava pouco ou quase nada para os judeus. É possível que lá tenha instalado residência um ramo marginal da descendência de Davi.
Mas o Evangelho faz questão de sublinhar que Nazaré da Galiléia – e não Jerusalém! – é o lugar onde Jesus cresce, se fortalece e adquire sabedoria. Não é o ambiente pio e glorioso do templo o lugar onde Jesus e Maria educam o filho. Sabemos que José e Maria escolhem diligentemente, atentos à vontade de Deus, o lugar onde Jesus cresceria. Am Nazaré ele afunda raízes e obsorve a seiva das esperanças do seu povo a partir da periferia social e religiosa.
Para a Sagrada Família, morar em Nazaré significou assimilar a esperança cultivada pelo resto de Israel, pelo “broto das raízes de Jessé”. Significou também: não se afastar das raízes populares, do vínculo com os pobres;  assumir resolutamente o caminho que leva à periferia, àqueles que estão longe; e privilegiar a encarnação no cotidiano que tece a vida normal de todas as pessoas. Eis aqui uma perspectiva que os missionários jamais devem abandonar!
 “Ele se lembra para sempre de sua Aliança.”
À luz do percurso da Família de Nazaré, somos convidados a lançar um olhar sobre as nossas famílias, aquela da qual fazemos parte e aquelas que compõem nossa comunidade. Imaginemos o próprio Deus contemplando o heróico cotidiano dos casais e filhos dessas famílias. O que ele diria?
“Eu fico admirado com essa pequena Igreja que eu mesmo criei, esse templo simples e quotidiano de um só espírito e uma só carne. Mulher e marido atravessam a vida de mãos dadas, ligados pelos fios invisíveis do coração. E essa caminhada é mais forte que as tempestades, mais forte que a própria morte. Eu fico encantado ao vê-los assim, descobrindo novos mundos, navegando em meio à aventura de amar, arriscando-se no oceano que é o outro.
Para essa minha pequena Igreja eu tenho uma liturgia que deve acender a luz sobre a terra e aquecer a vida. Não se trata de um simples culto num templo feito de pedra. É uma liturgia das horas quotidianas, de ofertas delicadas feitas de gestos conjugais. Minha pequena Igreja tem um templo sustentadas por pilares de confiança. A toalha dos seus altares são roupinhas infantis e o coral harmonioso é feito de passos de crianças que correm alegres.
Eu amo essa Igreja de Adão e Eva. Amo a profundidade do lado sempre ferido, pois sem essa ternura não há Terra Nova. Amo esse par conjugal e missionário que vai repetindo pelo mundo afora que o amor está vivo. Eu os fiz homem e mulher, semelhantes e diferentes, concordantes e combatentes, capazes de ferir e de curar feridas, peregrinos de um só caminho e de sonhos forjados e vividos a dois.
Pequena Igreja, eu te consagro para um Evangelho de beijos eloqüentes, que falem de meu Filho Jesus Cristo na linguagem do amor e da paciência, da ternura e do pão preparado e assado no silêncio da vida perseverante e sempre nova. Pequena Igreja, eu te envio para seres um cristal transparente de minha presença bem próxima, para seres meu sacramento em tudo e em toda a vida.”
Pe. Itacir Brassiani msf

A Sagrada Família de Nazaré segundo os Evangelhos (7)

Lucas 2,25-40: Estavam maravilhados com o que eles diziam..

Esta unidade maior do segundo capítulo do evangelho de Lucas reúne uma sucessão de episódios interligados: o encontro com Simeão no templo e sua profecia sobre o menino (2,25­35); o encontro também no templo com a profetiza Ana (2,36­38); o retorno a Nazaré e o crescimento normal e anônimo de Jesus (2,39­40). Aqui Lucas sublinha a fidelidade da Sagrada Família a toda lei cultual de Deus então em vigor e a apresenta como modelo de piedade e de fidelidade cristã ao novo culto evangélico.
A cena continua no palco do templo e parece que o tempo é também o mesmo, mas o foco se volta para um homem que representa a humanidade piedosa e justa. O novo personagem é Simeão, homem piedoso e devoto que cultivava a esperança da vinda do Messias e do seu reinado. Ele deixava­se conduzir pelo Espírito e também sabia que o Messias não seria uma unanimidade. Não era sacerdote e nem vivia no templo. Era também um homem justo, como José e, como os pastores, capaz de reconhecer o Messias­Servo na fragilidade do menino que acolheu nos braços. Acreditou que nele todos os povos seriam acolhidos e salvos por Deus. Simeão ressalta que o menino Jesus é luz para todas as nações e povos. Jesus é o Servo de Deus cantado pelos profetas, esse é conteúdo do anúncio de Simeão.
Lucas registra que "o pai e a mãe (de Jesus) estavam maravilhados com o que se dizia do menino" (v. 33). Esta reação é própria de quem acolhe com gratidão a ação libertadora de Deus na história mediante os pobres e humildes. E o esse estupor tem dois motivos: o primeiro é o fato de Simeão reconhecer Jesus como Messias sem ter recebido nenhuma informação a respeito; o segundo são as palavras de Simeão anunciando a missão universal do Messias. E José vem citado em primeiro lugar! José e Maria aprendiam sempre novas coisas sobre a identidade e a missão do próprio filho.
Simeão invocou sobre José e Maria a bênção de Deus e lhes falou das contradições que o filho provocaria, da sua missão de revelar aquilo que está escondido no silêncio malicioso dos homens. E falou sobre o destino do filho e, indiretamente, acenou para os sofrimentos da mãe. Também aqui temos os ecos da fé pós­pascal, quando os discípulos já haviam assimilado a crise da cruz. Maria é tratada pessoalmente, mas também como representante da Igreja, e isso significa que aqueles que partilham a vida de Jesus devem partilhar também da sua contradição, da sua rejeição e do seu fracasso. Andar com ele, estar com ele significa sofrer com ele. Seguir Jesus é participar do destino do povo. Assim, Simeão anuncia que o Salvador de Israel será um sofredor e suscitará sofrimento.
Uma segunda pessoa que dá testemunho de Jesus no templo é a profetiza Ana. Além de ser piedosa, Ana era conhecida como intérprete dos desígnios de Deus e uma tradição antiga afirma que ela teria criado Maria. Ana aproximou­se de Jesus e seus pais, como os pastores haviam feito, e como Simeão, também ela acolheu e entendeu o sinal e anunciou aos quatro ventos a salvação que nele se manifesta. Além de louvar a Deus pelo que lhe fora dado presenciar, ela anunciou o Messias presente no menino a todos aqueles que alimentavam expectativas messiânicas.
Os dois últimos versículos da perícope são uma espécie de contra­ponto ao entusiasmo que a família de Nazaré despertou no pequeno círculo das pessoas que esperavam ansiosamente o Messias e procuravam discernir sua presença nos pequenos sinais da história. A volta a Nazaré é uma ‘descida’ da exaltação para o anonimato. Lucas informa que José, Maria e Jesus voltaram para Nazaré, ‘sua cidade’ e que lá "o menino crescia e ficava forte, cheio de sabedoria". Essa sabedoria é uma visão profunda do plano de Deus, e Jesus a adquire não se distanciando da vida cotidiana do seu povo mas inserindo-se radicalmente nela.
Não é proibido se entusiasmar com a alusão à sabedoria e à graça de Deus, mas não podemos esquecer que o crescimento costuma ser um processo discreto, difícil, contraditório e complexo. Não é raro acontecer que sequer consigamos perceber o crescimento das pessoas, tal sua lentidão. Jesus participa do processo de crescimento comum a todo ser humano, e isso não é pouco. É Deus subordinando-se ao ritmo humano e histórico da maturação. Como todos os seres humanos, também o Filho de Deus aprendeu por meio dos sofrimentos (cf. Hb 2,10).
Assim, nesta evolução de acontecimentos e revelações, encontramos uma família que escuta com atenção e abertura o que pessoas idosas e sábias percebem sobre ela. Uma família que possibilita encontros com o grupo dos judeus que herdam e guardam a esperança de tempos novos. Uma família que participa do destino de dor e esperança do seu povo e dos seus membros. Uma família que se maravilha com a obra que Deus realiza mediante os pequenos e humildes. Uma família que partilha seus dons com toda a humanidade, sem limites de religião ou cultura. Uma família que não foge do anonimato e da morosidade de todo processo de maturação, sem apressá­lo.

A Sagrada Família de Nazaré segundo os Evangelhos (6)

Lucas 2,21-24: Deram­lhe o nome de Jesus...

O nascimento de Jesus aconteceu no anonimato, talvez no abandono e na marginalidade. Só os pastores testemunharam a manjedoura e as faixas. No mesmo ambiente privado e discreto Jesus foi circuncidado, uma vez que não é provável que José e Maria tenham voltado a Nazaré (mais ou menos 120 km) para retornar a Jerusalém uma semana depois a fim de apresentar o filho no templo, apesar de que, ao que parece, nenhuma lei do AT e nenhum costume rabínico prescreviam a apresentação do primogênito no templo. Ele recebeu o nome de Jesus, confirmando sua missão de mostrar que Deus Salva o povo dos seus pecados, conforme fora anunciado pelo anjo.
A narração se desenvolve mantendo oculto o sujeito das ações: deram­lhe o nome; levaram o menino. Podemos reter com segurança que o pronome ‘eles’ está aplicado a Maria e José. Segundo Lucas, Jesus é um filho normal de uma família judaica normal; nele Deus se fez um homem como qualquer outro; é templo (‘santo’), sacerdote e vítima oferecida a Deus por Maria e José. Parece que Jesus, sendo da tribo levita por parte de Maria, não devia ser resgatado mas oferecido ao serviço de Deus, como Samuel. Os primogênitos de cada família eram legalmente obrigados a uma certa consagração a Deus, como memória da salvação dos primogênitos hebreus no Egito e, por isso, precisavam ser resgatados mediante uma oferta pré­estabelecida. De fato, Lucas não menciona nenhum resgate e fala somente do sacrifício de purificação oferecido por um casal pobre, de acordo com as prescrições do Levítico.
A oferta apresentada por José e Maria é a que vem prescrita para a purificação de uma mãe pobre, o que conota o precário estado econômico. Ao determinar a oferta de purificação da mulher após o parto, o livro do Levítico assenta: "Se ela (a mãe) não tem meios para comprar um cordeiro, pegue duas rolas ou dois pombinhos: um para o holocausto e outro para o sacrifício pelo pecado" (12,8). Como sabemos que a Lei não exigia que o recém­nascido fosse apresentado no templo de Jerusalém, parece que Lucas, que confere uma centralidade muito significativa a Jerusalém, quer enfatizar que Jesus é Messias e Salvador de todos os povos.
Aqui temos uma família que reconhece e acolhe a vontade de Deus para seus membros, dando ao filho um nome que expressa sua missão. Uma família pobre e piedosa, que assume com serenidade os ritos que expressam sua fé. Uma família que contribui para que o Salvador seja apresentado a todos os povos. Uma família que sustenta sua condição e identidade na relação de pertença com a grande família do povo de Deus.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O QUE RESTOU DO NATAL?

Hoje é terça-feira, 27 de dezembro. Dois dias se passaram desde a festa do Natal. É verdade que nem tudo passou: sobram alguns doces no cantinho da geladeira; vários parentes e amigos continuam na nossa sua; as vitrines ainda exibem a figura folclórica do “bom velhinho” e nos tentam com falsas ofertas, saldos e liquidações; até algumas luzes que enfeitam fachadas e praças acendem e apagam, oferecendo um brilho artificial que tenta esconder a falta de luz de muitas vidas. E eu, sem remorsos e sem ingenuidade, pergunto aos meus botões: o que restou do Natal?

Para responder a mim mesmo esta pergunta, sinto ser necessário responder a uma outra indagação, mais profunda e substancial: o que é o Natal? A resposta vem fácil, está na ponta da língua: é a comemoração da nascimento de Jesus Cristo. Mas meus neurônios inquietos se desdobram em questionamentos: quem foi Jesus Cristo? Como foi seu nascimento? Que significado teve sua vida para o povo daquele tempo, para humanidade toda e para nós que vivemos mais de 2000 anos depois?

O nascimento de Jesus foi como uma grande luz para quem andava na escuridão da opressão que levava à morte. Os cristãos ligaram o acontecimento do nascimento daquele menino chamado Jesus com uma teimosa e bela esperança do povo judeu: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, e uma luz brilhou para aqueles que habitavam um país tenebroso. Multiplicaste o povo, aumentaste o seu prazer. Vão alegrar-se diante de ti como na alegria da colheita... Porque quebraste a canga de suas cargas, a vara que batia em suas costas, o bastão do capataz de trabalhos forçados. Porque toda bota que pisa com barulho e toda farda empapada de sangue serão queimadas, devoradas pelas chamas. Porque nasceu para nós um menino...” (Isaías 9,1-5). Portanto, o nascimento de Jesus significa a afirmação da esperança dos pobres, a quebra da força dos poderosos.

O Natal foi vivido pelos cristãos como uma grande festa de vitória dos pobres. É verdade que uma vila como Belém não era algo assim tão grandioso. E dar à luz em plena viagem imposta não é muito cômodo. Dormir os primeiros cochilos numa cocheira onde são tratados os animais não é uma fantasia muito agradável. Imagine uma estrebaria: animais, moscas, mau cheiro... Mas na fragilidade e na pobreza daquele menino os pastores sentiram firmeza. Na singeleza daquela improvisada maternidade muitos perderam o medo. E viram naquele Menino uma boa notícia capaz de despertar alegria para todo o povo e medo naqueles que se aferram aos podres poderes (cf. Lc 2,1-13). Naquela criança se confirmava uma promessa e nascia uma esperança que transformaria a humanidade: na força aparentemente derrotada dos fracos sobrevive um projeto de vida invencível; no despojamento de uma criança enrolada em tiras de pano os pobres de todos os tempos descobriram um presente precioso: a dignidade de ser humano, a grandeza de ser habitação e imagem de Deus.

E o que restou então do Natal? Do natal brilhoso e sonante das ruas enfeitadas, dos shoppings e cidades turísticas,  quase nada. Ou melhor: o lucro dos comerciantes; os acidentes nas estradas; a conta bancária em vermelho; a lágrima escondida nos olhos dos pobres; enfim, um resto insosso e incolor. Mas do Natal de Jesus, da celebração despojada das comunidades que reúnem homens e mulheres de boa vontade, sobra algo extremamente precioso e impagável. A certeza de que cada criatura humana tem uma dignidade que até Deus aprecia. A convicção de que nosso Deus avaliza as mais profundas e concretas esperanças dos humilhados. A experiência de que a solidariedade e a esperança estão carregadas de imortalidade e, por isso, têm futuro.
Itacir Brassiani msf

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A Sagrada Família de Nazaré segundo os Evangelhos (5)

Mateus 2,13-18: Levante-­se, pegue o menino e a mãe...

Esta narração também é exclusiva de Mateus. A fuga da Sagrada Família para o Egito, mencionada no texto, é plausível se considerarmos que o que se entendia por terra do Egito incluía a península do Sinai, próxima a Belém. No Egito vivia também uma próspera colônia de judeus e, assim, era um bom lugar para se esconder. Sendo perto, a viagem não era estafante e Jesus, José e Maria estariam fora do poder de Herodes e poderiam contar com o apoio dos judeus que lá habitavam.
Mateus assinala que fugindo para o Egito Jesus revive, por vontade de Deus, o caminho doloroso e venturoso do povo de Deus e de Moisés. Assim, a Sagrada Família também tem seu êxodo. Medroso e violento, Herodes mandou executar inocentes de Belém e arredores. Também aqui, Mateus projeta na infância de Jesus os acontecimentos que a sua própria comunidade estava vivendo, além da memória da perseguição e execução sofrida por Jesus.
Mateus busca sentido dos acontecimentos em mais duas citações do Antigo Testamento. A primeira é tirada do profeta Oséias (11,1). Originalmente, a expressão ‘do Egito chamei o meu filho’ estava referida à experiência histórica do êxodo e ao tratamento paternal/maternal que Javé sempre dispensou ao seu povo. Entretanto, no decorrer do tempo, a expressão ‘meu filho’ acabou adquirindo fortes conotações messiânicas.
A segunda citação é tirada do profeta Jeremias (31,15) e, além de constatar o desespero do povo no exílio, também tem claras conotações messiânicas e aponta para um tempo de consolação que haveria de vir: "Segure os soluços e enxugue as lágrimas, porque há uma esperança para a sua dor, existe esperança de um futuro" (er 31,16-­17).
Também aqui José é o personagem que permanece em primeiro plano. Ele volta à cena (após uma espécie de parênteses em Mt 2,1­-12) e toma a iniciativa, depois de discernir a vontade de Deus em meio a uma situação tensa e conflituosa.  Em silêncio e com determinação, José diz o seu ‘sim’ a Deus. Não esqueçamos que o pano de fundo da cena continua sendo o anúncio de Jesus, o Messias já reconhecido e aceito pelas comunidades cristãs e temido pelas pessoas de posição. A narração é uma espécie de retrospectiva sobre o caminho já percorrido por Jesus e sobre o seu significado.
A narração quer evidenciar que Jesus revive a história do seu povo e inaugura um novo processo de libertação. Sua vida e sua prática serão uma espécie de novo e verdadeiro êxodo. Ele abandona e rejeita o violento sistema herodiano e propõe um novo modo de vida para seu povo. Seu êxodo ao Egito é a passagem da estreita e escravizadora justiça dos escribas e fariseus para a nova justiça do Reino de Deus.
As relações familiares aparecem aqui unicamente na expressão "o menino e a mãe" (v. 13.14). Como qualquer outra família, a família de Nazaré vive seus imprevistos, inconvenientes e riscos. A presença de Deus não elimina estas tensões, mas até as provoca. A família é interpelada a discernir e acolher com docilidade e prudência a vontade de Deus. Atenta à Palavra de Deus, ela sai do sistema coercitivo e excludente do judaísmo e refaz o caminho da libertação percorrido pelos seus antepassados. O papel reservado pela família patriarcal ao pai é superado: José não governa sobre a família, mas a serve e protege fielmente.
Itacir Brassiani msf

Festa dos Santos Inocentes

Proclamemos com a própria vida a nossa fé!
(1Jo 1,5-2,2; Sl 123/124; Mt 2,13-18)
As luzes natalinas continuam acesas, ainda há doces que esperam pela nossa degustação, mas a festa  do natal parece terminar em tragédia: no dia 26 fizemos memória do primeiro mártir cristão (Santo Estêvão) e no  dia 28 recordamos (e festejamos!) o martírio das crianças de Belém pelas mãos do fraco, prepotente e sanguinário Herodes. Na festa dos Santos Inocentes, somos chamados/as a proclamar com a vida aquilo que professamos com os lábios; convidados a participar da eucaristia do universo com um coração simples e puro, com uma fé feita mais de ações que com palavras e promessas; interpelados a fazer justiça, ao menos não esquecendo as crianças que, no passado e no presente, são desrespeitadas em seus mais elementares direitos e feridas no corpo e na alma.
“Deus é luz e nele não há trevas.”
São João nos diz que Deus é Luz e que nele não há trevas. Convida-nos também a caminhar na luz de Cristo, que significa assumir serenamente nossos limites e pecados e viver em comunhão com os/as demais. Mediante a comunhão viva e ativa com as irmãs e  irmãos pecadores, abrimo-nos solidariamente a eles/as, o sangue de Jesus Cristo purifica os nossos pecados e sua luz resplandece em nosso corpo. “Se caminhamos na Luz, então estamos em comunhão com os outros”.
A proposta de Jesus é que procuremos sempre evitar o pecado. Mas sabemos também que, se e quando pecamos, ele não é nosso acusador, mas nosso advogado. Ele já deu a vida antecipadamente como pagamento pelas nossas dívidas. Nossa vida está salva, redimida e, por isso, não precisamos ter medo que alguém nô-la roube. Nós podemos doá-la livre e gratuitamente. Esta vida que é dom que nos foi concedido, não nos pertence, mas também ninguém poderá roubá-la.
“O anjo do Senhor apareceu em sonho a José...”
Nos sonhos, José reforça a consciência de sua missão: tomar conta da vida do Menino e protegê-la ante todos os riscos e ameaças. A vida, em todas as suas formas e expressões, é santa e precisa ser cuidada. A vida dos pobres e pequenos é mais santa ainda, e merece um cuidado redobrado. Em vista disso precisamos estar prontos/as a arriscar nossa própria vida e desprezar as aparentes e frágeis seguranças. Nisso José, Maria e (mais tarde) Jesus são mestres, desde sempre.
Mateus nos mostra que José, o carpinteiro de Nazaré e marido de Maria, se inspira noutro José, aquele que fora vendido aos mercadores do Egito. É dele que aprendeu a sonhar. As preocupações e esperanças sofridas e alimentadas durante o dia se transformam em sonhos e soluções noturnas. Mediante os sonhos, o pai e protetor de Jesus toma consciência da urgência das situações, mostra-se pronto e faz-se obediente à vontade de Deus. “José levantou-se, de noite, com o menino e a mãe, e retirou-se para o Egito.”
“Quando Herodes percebeu que os magos o tinham enganado, ficou furioso...”
O risco escondido no ventre das posições de poder é provocar o obscurecimento da mente e da fé e fazer pensar que a coisa mais transcendente a ser feita é assegurar a sua própria continuidade. Assim o fez Herodes e muitos outros que o seguiram, ontem e hoje, nos palácios reais ou eclesiásticos, nas cúrias de todos os nomes e latitudes. Deus não chama seu filho entre os habitantes dos palácios, mas o protege nos caminhos e brechas da história e o chama dentre os exilados e deserdados.
Herodes fica furioso porque os magos o fazem de bobo. Acostumado a mandar e se impor pelo medo, não consegue admitir que alguém desobedeça suas ordens. A fúria que dorme sob o disfarce da complacência é subitamente acordada ao mais simples sinal de insubmissão. A raiva contra os magos se volta contra as crianças. Com medo de um concorrente no trono, Herodes opta pelo extermínio dos inocentes. “E mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o território vizinho, de dois anos para baixo.”
“Ouviu-se um grito em Ramá, um choro e grande lamento...”
Não importam tanto os acontecimentos históricos quanto a serena constatação de que o medo e a prepotência dos poderosos sempre fazem vítimas, e as crianças são atingidas em primeira linha, tanto pela fuga, pela fome, pela morte  ou pela orfandade como por outras consequências da violência. Como diz o evangelista, citando o profeta Jeremias, a violência sofrida pelos inocentes é um grito que brada aos céus, provoca um lamento inconsolável e não deriva da vontade de Deus.
A Igreja acolhe o testemunho das crianças anônimas de Belém e as reconhece como mártires. Elas nem mesmo haviam conhecido Jesus e, menos ainda, tinham aderido ao seu caminho. Mas tiveram a vida estraçalhada por causa de Jesus Cristo. Sem falar, eles confessaram com o sangue a chegada do Filho de Deus, abriram com seus pequenos corpos os caminhos do Reino de Justiça e de Paz, e testemunharam a violência mórbida e desumanizadora de Herodes.
“Do Egito chamei o meu filho...”
Anjilus Soren é um rapaz de 17 anos que vive perto de Chockarhat, Bangladesh. Sempre que ele vai ao mercado desta cidade, que fica a apenas 1 quilômetro da sua casa, Anjilus tem vontade de tomar um chá, como é tradição no seu país. Mas isso não é possível, porque os donos dos bares e restaurantes se recusam a servi-lo, pois ele é da tribo Santali. Dizem que tudo o que alguém dessa tribo toca, fica impuro. Todos os que pertencem à tribo Santali são odiados pelos muçulmanos bengali...
‘Mi Swe’ é uma jovem birmanesa de 17 anos. Vive na Austrália, mas não por livre escolha sua. Em 1983 sua família teve que deixar a Birmânia e viver num campo de refugiados, na Tailândia. Em 1995 o exército invadiu o campo e destruiu tudo, e sua família teve que fugir para outro campo de refugiados, onde nasceu Mi Swe. Sem segurança, sem escola e passando fome, o pai de Mi Swe pediu asilo à Austrália, pelo qual teve que esperar 15 anos. Ali a família está tentando reconstruir a vida.
Estes dois fragmentos biográficos de crianças e adolescentes golpeados pela violência podem ser completados por milhares de outros que todos conhecemos muito bem: das crianças-soldados em alguns países do continente Africano aos menores abandonados das ruas do Brasil; dos descendentes de indígenas destruídos em sua identidade cultural aos meninos arregimentados pelo tráfico de drogas; dos crianças do carvão no interior do Brasil aos quebradores de pedras de Madagascar e Moçambique...
 “A armadilha quebrou e recuperamos a liberdade.”
Apesar das aparências contrárias, a liturgia de hoje não é um lamento, mas um convite à confiança. Na sua carta, depois de lembrar nossas fragilidades e limites, João afirma: “Temos junto do Pai um defensor!” E a comunidade peregrina que canta seu salmo no templo, não cansa de repetir: “Bendito seja o Senhor!...” Em todos os riscos e acidentes enfrentados na longa peregrinação de subida para Jerusalém os fiéis romeiros haviam experimentado claramente que o Senhor estava ao lado deles.
A fé que herdamos dos/as cristãos da primeira hora nos informa discretamente que aqueles que semearam violentamente a morte dos inocentes não duraram muito (cf. Mt 2,20). E a voz popular que ressoa no Salmo 123/124 rejubila: “Como um passarinho, fomos libertados da armadilha do caçador... A armadilha quebrou, e recuperamos a liberdade... Nosso auxílio está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra!” Sim, Deus está ao lado dos pequenos e peregrinos, e impede que as águas do mar da vida os sufoquem.
Por isso, por ocasião da festa dos Santos Inocentes somos convidados a ultrapassar a simples denúncia dos maus-tratos impostos de muitas formas às crianças, assim como a reinvindicação dos seus legítimos direitos. Esta é uma oportunidade para lembrar, junto com o sangue e as lágrimas derramadas, as inúmeras e belas iniciativas postas em movimento para quebrar as armadilhas que ameaçam a vida das crianças. E sem esquecer que tantas delas são concebidas e levadas aidante por comunidades eclesiais e religiosas.
“O nosso auxílio está no nome do Senhor!”
Deus pai e mãe das vítimas, dos migrantes, dos órfãos e das viúvas: no Menino da manjedoura mostraste ao mundo a glória da compaixão, e na fuga para o Egito partilhaste o destino de todos/as os/as  perseguidos/as por causa do teu Nome.Desde criança aprendemos  que é da boca dos pequeninos, das frágeis crianças lactantes, que recebes o perfeito louvor. Sabemos que as crianças de Belém anunciaram, não com palavras mas com o próprio sangue,  a glória de teu Filho nascido na manjedoura. Faz com que nossa vida, tanto nas grandes alianças e opções como nas práticas cotidianas, testemunhe  nossa fé em Jesus de Nazaré e na aurora invencível do teu Reino. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

sábado, 24 de dezembro de 2011

A Sagrada Família de Nazaré segundo os Evangelhos (4)

Mateus 1,18-25: José levou Maria para casa...

Dentro do objetivo geral da narrativa de Mateus, a presente unidade pretende explicitar de que modo Jesus é Filho de Deus. O gênero literário usado é a anunciação, e a intenção secundária é mostrar que a justiça de José ultrapassa a justiça legal. A figura do anjo corresponde a uma expressão usada pelo judaísmo (malak), para designar o próprio Javé enquanto revestido de uma forma sensível e acessível à humanidade.
José é apresentado como um homem justo que crê na mensagem de Deus, cumpre sua vontade e acolhe Jesus como filho e sua mãe como esposa. Diz-se que ele é esposo de Maria, mas não se diz que ele é pai de Jesus. Sua justiça é compaixão e está na passagem da lei para a nova aliança. Ele faz um ato de fé no modo como Jesus foi concebido e no significado de sua missão, aceita a paternidade legal e dá a Jesus um nome que explicita o conteúdo da salvação por ele trazida (o perdão dos pecados). A missão de Jesus será libertar o povo do sistema da Lei, concretizado e endurecido na posição dos fariseus e saduceus.
O texto em questão dá algumas informações sobre a Sagrada Família. Maria era prometida em casamento a José e esse é apresentado como esposo de Maria (v. 19). Como sabemos, o noivado praticamente equivalia ao casamento, e José e Maria podem até ter vivido juntos sem coabitarem. No texto, é dito que Maria encontrou-se grávida "antes de viverem juntos" (v. 18) e essa situação dava a José o direito legal de repudiá­la publicamente e levá­la ao apedrejamento. José pensou apenas em "deixá-­la sem ninguém saber" (v. 19) e pode ter passado vários dias pensando numa forma de resolver a questão.
A solução lhe veio no meio da noite, através do sonho. Durante o sono a pessoa é passiva, não reage nem recusa: acolhe e aceita. Deus fala a José de noite, na consciência atravessada pela dúvida mas atenta na procura de um caminho concreto para o problema da gravidez inesperada de Maria. "Não tenha medo de receber Maria como esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo" (v. 20). A aceitação da interpelação por parte de José é um ato de fé, inclusive porque o nascimento virginal era desconhecido na tradição judaica. A fé de José nos caminhos surpreendentes de Deus é imediata e vigorosa, demonstrando uma paternidade vivida como acolhida, respeito e cuidado em vista de um crescimento integral.
Na perícope que estamos estudando, Maria é apresentada como esposa de José, configurando uma relação familiar específica. Na revelação divina, mediante o sonho, é dito a José que Maria dará à luz um filho, e não ao teu filho. José dá o nome ao filho de Maria e assim assume sua paternidade legal e o insere na linhagem davídica. Com a imposição do nome, José reconhece este menino como filho, confere­-lhe a posição jurídica de filho dentro da casa de Davi.
O texto recorre também à profecia do Antigo Testamento para iluminar o que vai acontecer: "Uma virgem conceberá e será mãe". Destaca também que é "sem ter relações" com José que Maria concebe, do mesmo modo que "José não a conheceu até o dia em que ela deu à luz um filho" (v. 25). Pelo texto, sabemos também que José "levou Maria para casa" (v. 24), o que significa que conversou com ela, retomou e cumpriu o contrato matrimonial, possivelmente com a festa e tudo o mais. Fica muito ressaltado o nascimento virginal de Jesus.
Finalmente, há um claro destaque para o significado do nome e da missão do filho de Maria: "Ele vai salvar o povo dos seus pecados" (v. 21). Seu nome não é Emanuel (Deus-conosco) como dizia a promessa profética, mas Deus Salvador dos pecados. Lembremos que ‘salvação’ é uma palav-ra­chave que remonta à expectativa messiânica que anima a história do povo de Israel.  O interesse da narrativa se concentra na meta derradeira do nascimento de Jesus, que é salvar o povo. A mensagem é claramente cristocêntrica e José e Maria aparecem no episódio apenas como figurantes. Ao mesmo tempo, é uma espécie de ‘comentário explicativo’ do v. 16, sobre as relações entre Maria e José e entre Deus e Jesus.
O que aparece aqui é uma família (esposo e esposa, pai e mãe, filho) que se vê na necessidade de discernir e acolher a vontade salvífica de Deus na história. O plano de Deus interfere nas relações familiares e as abre a um horizonte mais amplo que o costumeiro e o legal. A família é chamada a colaborar com abertura, decisão e firmeza no advento da justiça messiânica em favor dos pobres, superando as práticas discriminatórias e restritivas. É uma família que, mediante a adesão de fé, ajuda a tornar possível aquilo que aparentemente é impossível.
Itacir Brassiani msf

A Sagrada Família de Nazaré segundo os Evangelhos (3)

Mateus 1,1-17: José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus...

A genealogia apresentada por Mateus está centrada em Jesus Cristo e se propõe a mostrar que Jesus é o Messias esperado, o descendente prometido a Davi. Segundo Mateus, Ele realiza todas as promessas de Deus e, por isso, é o princípio de uma nova história. Ele é o filho de Davi e o filho de Abraão. A raiz e o fundamento do dinamismo da nova história ou reino de Deus é a própria ação de Deus, que já se manifestara nas quatro mulheres nomeadas na genealogia: é graça sem fronteiras. O filho de Davi é portador da força messiânica do reino de Deus e inaugura a realeza dos pobres e oprimidos.
A genealogia está desenvolvida com esta finalidade e, por isso, Mateus organiza artificialmente alguns dados. Na primeira das três partes, o que surpreende é a presença de quatro mulheres, fato nada comum nas genealogias, centradas como são na continuidade paterna. Além disso, Tamar, Raab e "aquela que foi mulher de Urias" (v. 6) são mulheres estrangeiras (Tamar é Cananéia; Rute é moabita; Betsaba é hitita), impuras ou pecadoras. Essas mulheres marginalizadas são importantes e são escolhidas por que o dinamismo do reino inaugurado em Jesus eleva os humilhados e não exclui ninguém.
No v. 16, Mateus não diz ‘Jacó gerou José, José gerou Jesus’, tal como era de se esperar, em conformidade com o estilo do texto, mas “Jacó foi o pai de José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Messias”. A alteração não é um simples descuido ou algo inconsciente. Jesus é apresentado como radicalmente inserido na criação e na humanidade precedente, mas a ultrapassa e renova. A mudança de expressão e o objetivo são muito claros. Mateus quer apresentar o nascimento virginal de Jesus e sua filiação divina.
Com esta perícope, o evangelista pretende afirmar as raízes davídicas e a messianidade de Jesus Cristo: como filho de Davi, Jesus é o legítimo herdeiro das promessas messiânicas e a coroa da história judaica rememorada na genealogia. Mateus dá a entender que Deus quis que Jesus fosse herdeiro do antigo e inaugurador do novo: herdeiro porque nascido da família abraâmica e davídica de José, e inaugurador porque nascido mediante uma intervenção prodigiosa do Espírito. Como filho de Abraão, Jesus é portador da bênção de Deus para todos os homens.
Neste texto temos a primeira referência à Sagrada Família, em Mateus. A perícope termina evidenciando que há uma família formada por Maria e José; que há um filho, cujo nome é Jesus. É uma família humana, profundamente, enlaçada e solidária com as demais famílias humanas, mas a origem de Jesus Cristo mergulha em Deus, e é isso que faz dela uma família sagrada. É uma família vinculada às esperanças messiânicas dos pequenos de Javé, estas expressas no messianismo davídico. É uma família que incluiu em seu seio antepassados considerados inferiores e não honrados, como Raab, Tamar e a bersabéia.
Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O “espírito de natal” muda a realidade?

A resposta à pergunta do titulo não é assim tão óbvia. A maioria de nós dá por descontado que o “espírito de natal” tem pouco ou nada a ver com a agitação comercial que, mesmo assim, invade tudo e todos. Mas geralmente a descrição convencional daquilo que se diz “espírito de natal” não sai fora do âmbito da pacificação e da fraternização das relações interpessoais, de um olhar mais generoso sobre a própria vida e a história pessoal, de uma comovida abertura à dimensão trascendente e religiosa das coisas e fatos.
Mesmo em nossos templos – católicos, ortodoxos, evangélicos ou pentecostais – os temas em torno do qual gira a maioria das pregações, orações e canções são poucos e escorregadios: no presépio, Deus se faz humano; com Jesus, a Paz do céu desce sobre a terra; Deus se faz humano para que nos tornemos divinos; o amor de Deus não tem limites; a felicidade não vem do acúmulo ou do consumo de bens, mas da paz no coração; etc.
Mas a Palavra de Deus recomendada para o tempo que antecede o Natal sublinha frequentemente a mudança e a conversão como caminhos que concretizam o Natal e nos levam a ele. A manifestação de Deus, sua intervenção no mundo, sempre traz uma mudança substancial, tanto nas pessoas como nas estruturas sociais. Claro está que quando falamos em conversão não estamos falando de reconhecer e confessar pecados mais ou menos individuais, situados no estreito mundo da moralidade das relações interpessoais e dos deveres religiosos. Trata-se de uma força que, entrando na história, verte seus dinamismos e estruturas a serviço da vida dos oprimidos. Vejamos alguns exemplos.
Nos dias 19, 23 e 24 escutamos a história de Isabel e Zacarias, velho e piedoso casal judeu, amargurado por não ter nenhum filho. Isabel e Zacarias viviam essa situação como um castigo de Deus e como vergonha diante do povo. A este respeito, a fala da Isabel é paradigmática. Ela interpreta sua gravidez como uma bênção de Deus que muda uma situação marcada pela exclusão e pelo desprezo: “Assim o Senhor fez comigo nestes dias: ele dignou-se tirar a vergonha que pesava sobre mim” (Lc 1,25). Há uma mudança objetiva, visível, com sensíveis repercussões sociais. É uma salvação frente aos inimigos e a todos os que os odeiam e desprezam, um auxílio concreto e efetivo para quem estava como que envolvido ou ameaçado pelas sombras da morte (cf. Lc 1,67-79).
Nos dias 20 e 21 contemplamos a história de Maria e de José de Nazaré. Por mais que a iconografia insista em representar Maria sozinha, como se não tivesse pais nem noivo, esta jovem estava comprometida com José, e também ele é envolvido na história. Mas costuma-se também “esquecer” que Maria compartilhava com seu povo da Galiléia a ferida do desprezo e da humilhação. A suspeita com que os líderes religiosos olhavam para o povo daquela região só aprofundava a dor já insuportável provocada pela pobreza e pela dominação romana.
Quando Maria, depois do anúncio do Anjo, se encontra com Isabel e ambas reconhecem e celebram a visita de Deus ao seu povo, seu canto rompe as fronteiras da piedade religiosa e da subjetividade estreita e fechada. Soltando profeticamente suz voz, ela proclama aos quatro ventos que “Deus olhou para a humilhação (que mão burguesa traduz por “humildade”!) de sua serva”. Mas se alguém ainda duvida da adequação desta tradução, as estrofes seguintes do ousado canto da jovem de Nazaré não deixam margem de dúvida: Deus mostra a força do seu braço dispersando os orgulhosos e usando de misericórdia para com os humildes; derrubando os poderosos e exaltandos os humilhados; saciando a fome dos pobres e despedindo os ricos de mãos vazias. A vida concreta de Jesus comprovará que Maria não estava enganada ou doida e que o espírito de Natal é revolucionário.
E o que dizer dos proscritos pastores? Eles são os primeiros a receber a Boa Notícia destinada a todo o povo, as primeiras testemunhas a contemplar a Palavra feita carne, os primeiros mensageiros a passar adiante esta notícia: de suspeitos e proscritos passam a apóstolos respeitados! E os magos vindos do oriente, estrangeiros suspeitos, crentes de segunda categoria? Procurando, encontrando e reconhecendo Deus no menino deitado no cocho, eles são colocados à frente e acima dos líderes do judaísmo e das autoridades de um reino dependente. Isso não é mudança?
Itacir msf

Educar os jovens para a Justiça e a Paz

Desde 1967, por sugesto do Papa Paulo VI, o dia 1° de janeiro é celebrado pelas comunidades católicas como Jornada Mundial pela Paz. Para cada ano a Santa Sé escolhe um tema ligado ao eixo-temático da Paz, e o Papa escreve uma mensagem para ser repercutida pelas comunidades cristãs no mundo inteiro.
Sintonizando com as mobilizações por democracia política e econômica que tomaram conta dos países do norte da Africa, do Oriente médio e também de alguns países da Europa ocidental e dos Estados Unidos da América, deflagrados e sustentados especialmente pela juventude, o tema escolhido para a jornada de 2012 é educar os jovens para a justiça e a paz.
Na mensagem que veio a público no último 8 de dezembro, Bento XVI se dirige à juventude com expressões muito significativas e até surpreendentes. Eis algumas fases, a título de exemplo.
“Sois um dom precioso para a sociedade.”
Vivei com confiança a vossa juventude e os anseios profundos que sentis de felicidade, verdade, beleza e amor verdadeiro. Vivei intensamente esta fase da vida, tão rica e cheia de entusiasmo.”
“Vós sois um dom precioso para a sociedade. Diante das dificuldades, não vos deixeis invadir pelo desânimo nem vos abandoneis a falsas soluções, que frequentemente se apresentam como o caminho mais fácil para superar os problemas. Não tenhais medo de vos empenhar, de enfrentar a fadiga e o sacrifício, de optar por caminhos que requerem fidelidade e constância, humildade e dedicação.”
“Sabei que vós mesmos servis de exemplo e estímulo para os adultos, e tanto mais o sereis quanto mais vos esforçardes por superar as injustiças e a corrupção, quanto mais desejardes um futuro melhor e vos comprometerdes a construí-lo.”
Idealismo fermentador
Mesmo quando não se dirige diretamente aos jovens, discorrendo sobre a juventude, o Papa Bento XVI continua ousando e manifesta claro apoio às suas lutas. Vejamos mais alguns exemplos.
“As preocupações manifestadas por muitos jovens nestes últimos tempos, em várias regiões do mundo, exprimem o desejo de poder olhar para o futuro com fundada esperança.”
“É importante que estes fermentos e o idealismo que encerram encontrem a devida atenção em todas  as componentes da sociedade. A Igreja olha para os jovens com esperança, tem confiança neles e encoraja-os a procurarem a verdade, a defenderem o bem comum, a possuírem perspectivas abertas sobre o mundo e olhos capazes de ver « coisas novas » (Is 42, 9; 48, 6).”
“Prestar atenção ao mundo juvenil, saber escutá-lo e valorizá-lo para a construção dum futuro de justiça e de paz não é só uma oportunidade mas um dever primário de toda a sociedade.”
“Também os jovens devem ter a coragem de começar, eles mesmos, a viver aquilo que pedem a quantos os rodeiam. Que tenham a força de fazer um uso bom e consciente da liberdade, pois cabe-lhes em tudo isto uma grande responsabilidade: são responsáveis pela sua própria educação e formação para a justiça e a paz.”
O complexo desafio da educação
Em relação propriamente ao tema da Jornada, a mensagem é um pouco mais genérica. Mas algumas frases são particularmente importantes, como podemos ver em seguida.
“Trata-se de comunicar aos jovens o apreço pelo valor positivo da vida, suscitando neles o desejo de consumá-la ao serviço do Bem.”
Para desenvolver um verdadeiro processo educativo “não bastam meros dispensadores de regras e informações; são necessárias testemunhas autênticas, ou seja, testemunhas que saibam ver mais longe do que os outros, porque a sua vida abraça espaços mais amplos.”
“Quero dirigir-me também aos responsáveis das instituições com tarefas educativas: Velem, com grande sentido de responsabilidade, por que seja respeitada e valorizada em todas as circunstâncias a dignidade de cada pessoa.
“Possa cada ambiente educativo ser lugar de abertura ao transcendente e aos outros; lugar de diálogo, coesão e escuta, onde o jovem se sinta valorizado nas suas capacidades e riquezas interiores e aprenda a apreciar os irmãos. Possa ensinar a saborear a alegria que deriva de viver dia após dia a caridade e a compaixão para com o próximo e de participar activamente na construção duma sociedade mais humana e fraterna.”
“É importante ter presente a ligação estreitíssima que existe entre educação e comunicação: de fato, a educação realiza-se por meio da comunicação, que influi positiva ou negativamente na formação da pessoa.”
“Dirijo-me, depois, aos responsáveis políticos, pedindo-lhes que ajudem concretamente as famílias e as instituições educativas a exercerem o seu direito-dever de educar.  Proporcionem aos jovens uma imagem transparente da política, como verdadeiro serviço para o bem de todos.”
Liberdade e relativismo
Como sempre, Bento XVI não deixa de tocar num dos temas que se tornaram axiais nas suas intervenções públicas: a questão do relativismo. É em contraposição ao relativismo que o Papa aborda a questão da liberdade, tão própria do mundo dos jovens.
“Dentro de um horizonte relativista como este, não é possível uma verdadeira educação: sem a luz da verdade, mais cedo ou mais tarde cada pessoa está, de fato, condenada a duvidar da bondade da sua própria vida e das relações que a constituem, da validez do seu compromisso para construir com os outros algo em comum.”
“Por conseguinte o homem, para exercer a sua liberdade, deve superar o horizonte relativista e conhecer a verdade sobre si próprio e a verdade acerca do que é bem e do que é mal.”
“Quando o homem se crê um ser absoluto, que não depende de nada nem de ninguém e pode fazer tudo o que lhe apetece, acaba por contradizer a verdade do seu ser e perder a sua liberdade. De fato, o homem é precisamente o contrário: um ser relacional, que vive em relação com os outros e sobretudo com Deus. A liberdade autêntica não pode jamais ser alcançada, afastando-se d’Ele.”
“Assim o reto uso da liberdade é um ponto central na promoção da justiça e da paz, que exigem a cada um o respeito por si próprio e pelo outro, mesmo possuindo um modo de ser e viver distante do seu. Desta atitude derivam os elementos sem os quais paz e justiça permanecem palavras desprovidas de conteúdo: a confiança recíproca, a capacidade de encetar um diálogo construtivo, a possibilidade do perdão, que muitas vezes se quereria obter mas sente-se dificuldade em conceder, a caridade mútua, a compaixão para com os mais frágeis, e também a prontidão ao sacrifício.”
Educar para a Justiça e a Paz
Afastando-se um pouco do núcleo mobilizador dos jovens no ano 2011 (democracia politica efetiva e democracia econômica livre da ditadura do mercado financeiro), porém sem ignorá-los, Bento XVI focaliza a questão da Justiça e da Paz, terreno no qual a doutrina católica já fez caminho. O tema da democracia ainda não tem plena cidadania nos discursos e na doutrina eclesiástica.
“No nosso mundo, onde o valor da pessoa, da sua dignidade e dos seus direitos, não obstante as proclamações de intentos, está seriamente ameaçado pela tendência generalizada de recorrer exclusivamente aos critérios da utilidade, do lucro e do ter, é importante não separar das suas raízes transcendentes o conceito de justiça.”
“Não podemos ignorar que certas correntes da cultura moderna, apoiadas em princípios econômicos racionalistas e individualistas, alienaram das suas raízes transcendentes o conceito de justiça, separando-o da caridade e da solidariedade.”
“A paz não é só ausência de guerra, nem se limita a assegurar o equilíbrio das forças adversas. A paz não é possível na terra sem a salvaguarda dos bens das pessoas, a livre comunicação entre os seres humanos, o respeito pela dignidade das pessoas e dos povos e a prática assídua da fraternidade.”
“A paz, porém, não é apenas dom a ser recebido, mas obra a ser construída. Para sermos verdadeiramente artífices de paz, devemos educar-nos para a compaixão, a solidariedade, a colaboração, a fraternidade, ser activos dentro da comunidade e solícitos em despertar as consciências para as questões nacionais e internacionais e para a importância de procurar adequadas modalidades de redistribuição da riqueza, de promoção do crescimento, de cooperação para o desenvolvimento e de resolução dos conflitos.”
“A paz para todos nasce da justiça de cada um, e ninguém pode subtrair-se a este compromisso essencial de promover a justiça segundo as respectivas competências e responsabilidades.”
Olhar o futuro com confiança
A mensagem do Papa não se reduz a uma análise crítica da cultura e do mundo atual, nem a recomendações piedosas para os diversos responsáveis pela sociedade e pela educação dos jovens. Bento XVI, apesar de tudo, nos convida a olhar para o futuro com confiança e responsabilidade.
“De forma particular convido os jovens, que conservam viva a tensão pelos ideais, a procurarem com paciência e tenacidade a justiça e a paz e a cultivarem o gosto pelo que é justo e verdadeiro, mesmo quando isso lhes possa exigir sacrifícios e obrigue a caminhar contracorrente.”
“A Paz não é um bem já alcançado mas uma meta, à qual todos e cada um deve aspirar. Olhemos, pois, o futuro com maior esperança, encorajemo-nos mutuamente ao longo do nosso caminho, trabalhemos para dar ao nosso mundo um rosto mais humano e fraterno e sintamo-nos unidos na responsabilidade que temos para com as jovens gerações, presentes e futuras, nomeadamente quanto à sua educação para se tornarem pacíficas e pacificadoras!”