quarta-feira, 30 de novembro de 2011

ARDOR E AMOR MISSIONÁRIOS

A missão nasce no coração de Deus
"Tudo vale a pena quando a alma
nao é pequena..."
O ardor missionário é sinal claro e evidente de que a nossa hora de Igreja Missionária chegou. É natural que a partir disso sintamos necessidade de proclamar as maravilhas que Deus fez em nós: anunciar a Palavra em espírito e verdade e dar a oportunidade a quem a recebe de tornar-se filho/a de Deus. O destinatário da missão, por sua vez, é sempre um interlocutor e nunca ficará calado e passivo. Antes, anunciará a sua alegria aos irmãos e irmãs.
O que nos impulsiona e desinstala é a força da Palavra de amor. Por isso, podemos afirmar que o dinamismo original e primário da missão é a Boa Nova da Salvação. É isso que expressamos quando dizemos que Deus é nosso Pai (Muluku Tithi, na língua makua) e que nós somos seus filhos e filhas, irmãos e irmãs entre nós. Deus revela em Jesus seu rosto profundamente humano, e n’Ele a humanidade se encontra numa grande família. Se acreditamos que Deus é Pai e todos, então os “outros” serão nossos irmãos e irmãs. A missão vem de Deus, e Deus é amor.
A partir da prática missionária de Jesus (cf. Mt 9, 35-37), percebemos que não podemos esperar estar prontos e formados para só então partir para a missão. Precisamos confiar no Espírito Santo (Eroho Yowarya) e lançarmo-nos, mesmo na precariedade e na insegurança. Jesus organizou sua missão e a missão da comunidade na precariedade e na itinerância.
Nossa missão em Mecubúri
A nossa comunidade missionária de Mecubúri (diocese de Nampula, Moçambique) é composta de quatro membros: Pe. Neiri Segala, Pe. Firmino Santana, Ir. Edilson Frey e Pe. Pedro Léo Eckert. Conosco vive também um funcionário da Escola Familiar Rural, que é também vocacionado. No povoado estão presentes também, há quase quarenta anos, as Irmãs Servas de Nossa Senhora de Fátima. E em breve chegará uma comunidade de Irmãs Franciscanas Capuchinhas.
A missão está ainda em processo de estruturação. Vivemos numa área bem abrangente, na savana africana, no meio de várias montanhas. É uma região inóspita. Chove apenas entre o final de novembro e o final de março. Estamos  há duas horas de carro da cidade de Nampula. Vivemos numa casa com energia que captamos com placas solares. Com isso é possível acender, mesmo que muito precariamente, pequenas lâmpadas nos quartos, na cozinha, na sala e nos banheiros.
Cada dia precisamos nos programar para viver sem televisão, sem geladeira e sem outros confortos absolutamente normais noutras partes do mundo. Por outro lado, todo santo dia precisamos atiçar a criatividade e o bom humor para conviver com isso como algo que não nos empobrece, mas exercita nossa paciência e entrega.
Cultivamos uma boa horta, criamos galinhas, porcos e cabritos. Cultivamos também algumas árvores frutíferas, um recanto de flores e chás e uma machamba (roça), onde plantamos mandioca, milho, feijão, ervilha... Tudo para o sustento da própria missão, já que estamos longe dos freezers e prateleiras dos supermercados. Fornecemos trabalho para algumas pessoas: um cozinheiro, um vigia, uma pessoa que cultiva a horta e cuida dos animais, outra que cuida da limpeza e da rouparia. São jovens em busca de algo que os ajude nos estudos.
Algumas informações
Crianças, sempre crianças,
muitas crianças...
Esta é uma espécie de introdução para falar um pouco das impressões de um missionário que há três meses chegou a este novo país e a este novo continente,  que está conhecendo essa nova gente, essa nova cultura, essa diferente realidade. Falar das primeiras impressões pode ser interessante, mas pode ser também perigoso, pois podemos ser generosos demais, ou então injustos: faltam conhecimento e experiência. Fazer o caminho da evangelização inculturada na África, aqui em Moçambique, na Arquidiocese de Nampula, nas Paróquias de Nossa Senhora da Assunção, Santa Cruz de Muite, é realmente um desafio que parece ultrapassar nossas forças.
Mesmo assim, quero descrever brevemente esta realidade. Nas duas Paróquias confiadas aos Missionários da Sagrada Família pela Arquidiocese de Nampula, existem cadastradas e atendidas 270 pequenas comunidades eclesiais e vários grupos de oração (novos aglomerados de cristãos organizados que esperam a aprovação e o reconhecimento do estatuto de comunidades).
As duas Paróquias são organizadas em quatro núcleos: o núcleo de Mecubúri, dividido em onze zonas, cada uma das quais tem 5 a 12 comunidades; o núcleo de Namina, reorganizado em sete zonas, com 4 a 8 comunidades cada uma; núcleo de Milhana, dividido em sete zonas que contam, cada qual, com 7 a 13 comunidades; núcleo de Ratane, organizado em nove zonas, cada uma das quais conta com 6 a 9 comunidades. Cada comunidade tem um ancião ou anciã (dirigentes), catequistas e animadores. As zonas têm seus animadores zonais e seus representantes pastorais. As paróquias têm seus Conselhos e animadores.
A organização pastoral ainda pequena e progride lentamente, mas temos um certo ritmo e algum programa para as mães, para a juventude, para o dízimo, para a animação litúrgica, para a catequese infantil e adulta, para a animação vocacional, e um pequeno géermen da Infância e Adolescência Missionária.
Um dos edificios da
Casa Familiar Rural
A formação é realizada nas zonas, regiões ou paróquias. São cursos de formação geral ou específica (para cada organismo ou setor pastoral). A estrutura para essa formação ainda é muito precária. Centro de formação temos apenas um; um segundo é muito precário. Precisamos estruturar pelo menos mais dois centros de formação para termos condições mínimas de pensar uma formação adequada.
A Escola Profissional Familiar Rural de Mecubúri (EPFRM) também está em processo de estruturação, e conta com recursos próprios: parcerias entre a Província, o Governo de Moçambique e a Disop (ONG da Bélgica). O diretor é o Ir. Edilson, que já está com a autorização de funcionamento em mãos. A partir de 2012, se Deus quiser, a Escola começará a funcionar.
Desafios, muitos desafios
Enumeramos alguns desafios dos quais temos consciência e que precisamos enfrentar mais e melhor: a saudade da última missão, que insiste em permanecer; a vida comunitária que deve avançar; melhorar o atendimento das pessoas que vêm até nós e tomar iniciativas para ir a eles; cultivar a comunhão com os coirmãos que não estão aqui; superar as dificuldades de comunicação; viver o espírito, e não só a ação missionária; saber conviver com as dificuldades de locomoção e buscar saídas para as péssimas condições das estradas e para superar as grandes e enormes distâncias, tanto geográficas, como culturais e até religiosas; conviver com as circunstâncias climáticas e ecológicas; superar o sentimento de impotência e o medo do fracasso; conviver sem medo com a possibilidade de doenças (especialmente a malária); mergulhar de vez no processo de verdadeira inculturação; etc.
Queridos coirmãos e amigos/as: não estamos com medo, nem queremos chorar pelo que não temos ou ainda não somos. Preferimos nos alegrar com a coragem dos passos dados até aqui. Sabemos que a roça é grande e que os operários poderiam ser mais numerosos, mas pensamos que você, onde quer que esteja, talvez tenha a mesma sensação, os mesmos pensamentos e o mesmo ardor que experimentamos aqui.
Igreja matriz de Mecuburi
Reconhecemosque esta não é uma África muito romântica, e muito menos perfeita e próspera, como imaginávamos. Um trabalho (muteko) muito árduo nos espera por aqui. A cada dia é preciso soprar as cinzas para que o calor das brasas aqueça o Espírito e não nos deixe cansar. Mesmo na pequenez e na fraqueza, estamos dando nossa colaboração para transformar a realidade e despertar a dignidade e o amor nestas terras de missão.
Pe. Pedro Léo Eckert msf
(Em nome da Comunidade, maio de 2011)

POR UMA EVANGELIZAÇÃO REALMENTE NOVA (1)

Um novo Conselho e um novo Sínodo
No dia 21 de setembro de 2010 o Papa Bento XVI criaou o Pontificio Conselho para a Nova Evangelização. Fazem parte das tarefas confiadas a este Conselho: aprofundar o significado teológico e pastoral da nova evangelização; promover e favorecer a difusão e a aplicação do Magistério pontifício relativo a esta temáticas; publicar e incentivar iniciativas de nova evangelização em curso e promover novas formas, comprometendo os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica; estudar e favorecer a utilização das modernas formas de comunicação na evangelização.
Pouco tempo mais tarde, o mesmo Bento XVI anunciou a realização do XIII Sínodo Mundial dos Bispos (previsto para o mês de outubro de 2012, em Roma) com o tema “nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. No último 2 de fevereiro de 2011 veio a público o instrumento de trabalho (‘Lineamenta’) para o anunciado Sínodo.
No prefácio do Lineamenta é explicitado o foco da nova evangelização e do próprio Sínodo, infelizmente voltadoa ao mundo e à Igreja do hemisfério norte: “Tendo presente a evangelização como horizonte comum da Igreja, bem como a ação de anúncio do Evangelho ad gentes, (...) a nova evangelização é, antes de mais, endereçada a quantos se afastaram da Igreja nos Países da antiga cristandade.”
O objetivo do Sínodo é assim descrito: “Retomando a reflexão até agora realizada sobre o argumento, a Assembleia sinodal terá por objetivo analisar a situação atual nas Igrejas particulares, para traçar, em comunhão com o Santo Padre Bento XVI, Bispo de Roma e Pastor Universal da Igreja, novas formas e expressões da Boa Notícia que devem ser transmitidas ao homem contemporâneo com renovado entusiasmo, próprio dos santos, alegres testemunhas do Senhor Jesus Cristo.”
No centenário da nossa primeira missão
No contexto da memória dos 100 anos da primeira aventura ad gentes dos Missionários da Sagrada Família, pergunto-me: Como podemos participar da reflexão que este processo sinodal nos possibilita e pede? Certamente, a pior das atitudes seria fazer de conta que isso não tem nada a ver conosco, ou justificar noss indiferença denunciando perspectiva alienante ou pouco justa da proposta.
Creio que a primeira arena de debate na qual podemos entrar, motivados e desafiados por nosso carisma missionário, é o espaço das dioceses nas quais estamos presentes. Certamente as Igrejas particulares aproveitarão a oportunidade e responderão ao apelo da Santa Sé promovendo congressos, seminários, reuniões e encontros para abodar a questão da nova evangelização. E se não o fizerem, devemos nós mesmos tomar a iniciativa.
O segundo espaço de participação é o das nossas comunidades locais. Imagino que seria possível e oportuno dedicar, em cada comunidade, ao menos três dos encontros mensais para debater a questão, pressupondo a leitura do Lineamenta por parte de todos os coirmãos. E o nosso Instituto Superior de Filosofia Berthier poderia dar uma contribuição particular, promovendo seminários ou jornadas sobre o tema.
Várias aproximações
O Lineamenta apresenta uma série de descrições daquilo que seria a nova evangelização, mas evita, como se esperava, definir ou delimitar conceitualmente em que ela realmente consiste. Infelizmente devemos dizer que esta é uma uma fraqueza, pois, apesar de conhecido e amplamente usado, o conceito não goza de univocidade e acaba sendo pouco operacional. Vejamos algumas destas descrições.
“A nova evangelização é, antes de mais, uma ação espiritual, a capacidade de assumir, no presente, a coragem e a força dos primeiros cristãos, dos primeiros missionários. É uma ação que requer, em primeiro lugar, um processo de discernimento acerca do estado de saúde do cristianismo, o reconhecimento das medidas tomadas e das dificuldades encontradas” (§ 5).
“Nova Evangelização é sinônimo de renascimento espiritual da vida de fé das igrejas locais, início de percursos de discernimento das mudanças que afetam a vida cristã nos diferentes contextos culturais e sociais, releitura da memória da fé, assunção de novas responsabilidades e novas energias em vista de uma proclamação alegre e contagiante do Evangelho de Jesus Cristo” (idem).
 “Nova evangelização significa trabalhar nas nossas Igrejas locais para construir caminhos de leitura dos fenômenos que permitam traduzir a esperança do Evangelho em termos práticos. Isto significa que a Igreja se edifica aceitando medir-se com esses desafios, tornando-se cada vez mais a artífice da civilização do amor” (§ 7).
“A nova evangelização é o nome dado a esta nova atenção da Igreja à sua missão fundamental, à sua identidade e razão de ser. Por isso, é uma realidade que não diz respeito apenas a algumas regiões bem definidas, mas é a estrada que permite explicar e pôr em prática a herança apostólica no nosso e para o nosso tempo” (§ 10).
O Documento ressalta que não se trata de fazer de novo qualquer coisa que foi mal feita ou que não funcionou no passado. “A nova evangelização não é uma duplicação da primeira, não é uma simples repetição, mas é a coragem de ousar novos caminhos, para atender às mudanças de condições dentro do qual a Igreja échamada a viver hoje o anúncio do Evangelho (§ 5).
Evangelização como discernimento
Um primeiro conceito do Lineamenta que me parece interessante é o de evangelização como discernimento. Partindo de Paulo e das primeiras comunidades cristãs, o apresenta a nova evangelização como um processo de discernimento. “O processo de evangelização transforma-se num processo de discernimento; o anúncio exige que antes exista um momento de escuta, de compreensão, de interpretação” (§ 3).
O discernimento exige a identificação dos objetos e dos temas sobre os quais fazer chama a atenção e a partir dos quais desperta a escuta e o diálogo recíproco. Estes são os seguintes: o nascimento, a propagação e a afirmação da evangelização nas Igrejas locais; as modalidades com as quais a Igreja realiza hoje a tarefa de transmitir a fé; a forma concreta que assumem no presente os instrumentos dos quais a Igreja lança mão para construir a fé; e os desafios com os quais os cristãos são chamados a confrontar-se (cf. § 4).
Nesta perspectiva, a nova evangelização é uma atitude, um estilo audaz. É a capacidade do cristianismo de saber “ler e decifrar os novos cenários” construídos ultimamente e vigentes do mundo de hoje, a fim de habitá-los e transformá-los em lugares e meios de testemunho e de anúncio do Evangelho (cf. § 6).
O Lineamenta diz que, frente aos cenários que caracterizam o mundo de hoje, a nova evangelização é a “audácia de levar a questão de Deus para dentro destes problemas”, realizando a missão específica da Igreja e mostrando como “a perspectiva cristã ilumina de um modo completamente novo os principais problemas da história”. E nos pede para agir nestes cenários saindo do recinto fechado das nossas comunidades e instituições e aceitando o desafio de entrar em tais fenômenos, levando nossa palavra e testemunho (cf. § 7).
Depois de ressaltar que, no subsolo de uma cultura e uma sociedade caraterizadas pelo secularismo e pelo relativismo, existe uma latente e às vezes explícita sede de Deus e de espiritualidade, que se mostra inclusive nos novos movimentos eclesiais, o Documento diz: “A nova evangelização exorta a Igreja a ter a sabedoria de discernir os sinais do Espírito na ação, dirigindo e educando as suas expressões, em vista de uma fé adulta e consciente” (§ 8).
A missão como transmissão da fé
Um segundo conceito interessante é o de missão como transmissão da fé. “A missão da Igreja é realizar a traditio Evangelii, o anúncio e a transmissão do Evangelho, que é ‘poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê’ (Rm 1, 16) e que, em última análise, se identifica com Jesus Cristo (cf. 1 Cor 1, 24). (...) O Evangelho é uma Palavra viva e eficaz, que realiza o que afirma. Não é um sistema de artigos de fé e de preceitos morais, e ainda menos um programa político, mas uma pessoa: Jesus Cristo, Palavra definitiva de Deus, feito homem” (§ 11).
E a transmissão da fé é tem como objetivo prioritário “a realização deste encontro com Jesus Cristo, no Espírito, para chegar a fazer a experiência do Seu e do nosso Pai”. Assim, “transmitir a fé significa criar em cada lugar e em cada tempo as condições para que o encontro entre os homens e Jesus Cristo aconteça” (§ 11).
Por conseguinte, a transmissão da fé é “uma dinâmica muito complexa que implica totalmente a fé dos cristãos e a vida da Igreja. Ninguém pode transmitir aquilo em que não acredita e que não vive. O sinal de uma fé bem arraigada e madura é, precisamente, o modo natural com que é transmitida aos outros” (§ 12).
Esta tarefa de anunciar de criar as condições para o encontro com Jesus Cristo não está reservada apenas a alguns membros do povo de Deus, mas “um dom feito a todas as pessoas que respondem com confiança ao apelo da fé”. A transmissão da fé “não é uma ação para especialistas, a ser contratada a algum grupo ou a alguém especialmente dotado”, mas a “experiência de cada cristão e de toda a Igreja, que nesta ação redescobre continuamente a sua identidade de povo reunido pelo chamamento do Espírito” (§ 12).
Itacir msf

POR UMA EVANGELIZAÇÃO REALMENTE NOVA (2)

Focalizado no rico mundo do hemisfério norte
Como já observamos, tanto a nova evangelização como o Documento que prepara o Sínodo, infelizmente partem da problemática específica do Primeiro Mundo e para ele estão voltados. As Igrejas e povos do Terceiro Mundo são olimpicamente ignorados, como se não existissem ou não importassem. Isso fica evidente especialmente na descrição dos seis cenários que caraterizariam o mundo de hoje (cf. § 6).
O cenário cultural de fundo é caracterizado como secularização e relativismo, que se apresenta positivamente como libertação e possibilidade de a vida e o mundo sem uma referência ao Transcendente. No cenário social recebem destaque o fenômeno da migração, intimamente relacionado com a globalização e liquidificação das tradições culturais e religiosas. O terceiro cenário, dominado pelos meios de comunicação de massa, é caracterizado como cultura digital, centrada no efêmero e na aparência, radicalmente incapaz de memória e de futuro.
No cenário econômico, apresentado de forma muito sintérica, recebem ênfase o desequilíbrio entre norte e sul do mundo, a desregulamentação da economia e os danos ao meio ambiente. No quinto cenário, dedicado à investigação científica e à teconologia, se fala do risco de que venham a ser uma espécie de religião moderna ou levem a uma versão moderna do gnosticismo. Finalmente, na descrição do cenário politico são postos em relevo a crise da ideologia comunista e dos grandes blocos e a consequente abertura de novas possibilidades ao cristianismo, o aparecimento de novos atores políticos, econômicos e religiosos (nomeadamente, os mundos islâmico e asiático).
Globalmente, o contexto atual é descrito como pós-ideologico. Como é possível ignorar que o que pretende se impor é a ideologia do pensamento único, do néoliberalismo e da idolatria do mercado? Como fazer vistas grossas à criação e promoção da ideologia do combate ao terrorismo, a partir da substituição do confronto leste – oeste pelo confronto entre civilização árabe islâmica e civilização cristã ocidental?
Mas não podemos deixar de perguntar também: Ao lado da crise financeira internacional, não são igualmente ou mais preocupantes e potencialmente devastantes as crises alimentar, ambiental e energética? E é possível passar ao largo das guerras civis e interrnacionais que ferem tantos povos e alimentam a imoral indústria de armas? Aquilo que se chama cultura do relativismo não seria apenas o aspecto negativo do pluralismo cultural e religioso, teologicamente positivo? E a atuação dos vários movimentos altermundistas e eventos globais como o Fórum Social Mundial não são fatores promissores que merecem ao menos menção?
Apenas sede de Deus?
O Lineamenta saúda como “nova primavera” (cf. § 8 e 15) o surgimento e a propagação dos movimentos eclesiaiss, mas, em sua miopia teológica e espiritual, não consegue ver a atuação dos movimentos culturais e sociais. No fundo, a leitura da realidade expressa nos diversos cenários, feita do ponto de vista do primeiro mundo e a partir de interesses institucionais, quer colocar em evidência a necessidade de religião e a sede de espiritualidade que subjaz à cultura do efêmero. A obsessão que pervade todo o documento é essa: introduzir o discurso sobre Deus numa cultura que o marginalizou ou excluiu da sua visão de mundo.
Mas também aqui o que ocorre é uma leitura tremendamente interesseira e redutiva do complexo contexto em que vivemos. Como pode um Documento da Igreja universal passar ao largo da fome de paz, de justiça e de vida que devoram e mobilizam dois terços da humanidade? Com que fundamento e legitimidade se pode dizer que o que interessa é a sede de Deus, e que o essencial é reintroduzir o conceito de Deus na atual cosmovisão?
Na verdade, em que pese uma e outra referência ao Reino de Deus, a perspectiva teológica e missiológica do Lineamenta é eclesiocêntrica,  religiosista e logocêntrica: tudo se resume em ressuscitar uma Igreja adormecida, esclerosada ou morta; em potencializar o cristianismo frente ao secularismo e ao islamismo; e em implantar de novo conceitos religiosos e teológicos no coração da cultura. E a vida que se dane, já que o importante é invocar e proclamar o nome de Deus (ou melhor, o nome de um deus branco, macho, potente e ocidental).
Um desafio hercúleo
Infelizmente, as intuições interessantes esparsas no texto acabam perdendo a relevância e a operacionalidade por causa dos pressupostos teológicos questionáveis e da perspectiva inadequada  do Lineamenta. A idéia saudosista e inaceitável de que o cristianismo tem a única resposta verdadeira e consistente às perguntas e demandas do ser humano vicia todo o Documento. Como pode ser nova uma evangelização que parta de tal presunção?
E nem quero entrar na discussão sobre a proposta operacional do Documento. Como é possível reduzir a missão da Igreja nos tempos atuais ao clássico caminho da iniciação cristã, centrada na catequese e nos sacramentos? Onde ficam os pilares conciliares do testemunho de comunhão fraterna e ecumênica, do serviço solidário aos pobres e oprimidos, do diálogo aberto e respeitoso com as culturas, do anúncio humilde e alegre do Reino de Deus, da colaboração com as boas iniciativas da sociedade, da encarnação da fé nas realidades sociais, culturais, políticas e econômicas?
Minha intenção não é emitir um juízo absoluto e completo sobre os Lineamenta, nem desistimular sua leitura. Tenho consciência que minha leitura deve muito aos meus pressupostos teológicos e opções eclesiais e políticas. Pretendo apenas polemizar para suscitar interesse e leituras possivelmente diversas. Ficarei feliz se alguém me contradisser e identificar outras perspectivas do Documento, mais promissoras e operacionais.
Em todos os casos, não se trata de discutir e melhorar apenas um texto oficial. O que está em questão é não desperdiçar a oportunidade e o grande investimento que um Sínodo representa. O que me preocupa é o Sínodo, e não o Lineamenta. Dentro das nossas possibilidades, ou criando possibilidades, fiéis ao nosso carisma missionário, participemos deste processo sinodal para que as futuras gerações não nos acusem de retrógrados ou omissos. Concordo: esta é uma tarefa para Hércules!
Itacir msf

COM A SAGRADA FAMÍLIA NA ESCOLA DA PALAVRA DE DEUS



Convido você a acompanhar imaginariamente a Sagrada Família na sua caminhada de fé, do primeiro domingo do Advento ao primeiro anúncio missionário de Jesus. Já sabemos que o profeta Isaías ocupa um lugar central na liturgia do Advento e conhecemos o apreço que Jesus tinha por ele e como nele encontrou inspiração para sua missão. Imagino que a mensagem desse profeta consolou, animou e consolou José e Maria nos nove meses de ‘advento’ de Jesus: “Tu és o nosso pai; nós somos o barro e tu és o nosso oleiro; todos nós somos a obra de tuas mãos” (Is 63). Eles permitiram que Deus os fosse modelando pouco a pouco.
Parece que a Sagrada Família encontrou em Isaías indicações claras de ação. “Abram um caminho no deserto. Aplainem uma estrada para o nosso Deus. Aterrem os vales e aplainem as colinas” (Is 40). “Ele me enviou para dar boas notícias aos pobres, para curar os corações feridos, para proclamar a libertação dos escravos” (Is 61). A Sagrada Família descobriu que a fidelidade a Deus comporta uma decidida parcialidade em favor dos pobres. O cântico de Maria e a ação de Jesus o demonstram sobejamente.
Mas não esqueçamos o impacto e a surpresa que a palavra de um outro profeta, que era também parente, provocou naquela família de Nazaré: “Depois de mim vai chegar alguém que é mais forte do que eu... Eu não mereço sequer desamarrar a correia das sandálias dele...” Maria e José descobriram que o filho não lhes pertencia, que os superava em sabedoria e graça e os precedia nos caminhos de Deus. E Jesus entendeu que Deus é grande porque assume o que é pequeno.
Longe do aconchego e da segurança de sua humilde casa em Nazaré, Maria e José acolheram o filho esperado no abandono de uma estrebaria, entre animais e pastores. Contemplando a vulnerabilidade daquele corpinho, Maria e José se perguntaram onde estavam os sinais do Deus forte, o manto da realeza e a fogueira na qual seriam queimadas as armas de guerra e as roupas manchadas de sangue (Is 9). Mas também se maravilharam com o que contavam os pastores proscritos, e passaram horas meditando sobre o que significaria tudo o que estavam vivendo.
Com o passar do tempo esses acontecimentos – junto com as palavras misteriosas de Simeão e de Ana, as mensagens recebidas nos sonhos, o duro exílio no Egito – foram ficando no passado e o filho de Maria e José se mostrava absolutamente normal: crescia lentamente; aprendia a língua da sua gente e a religião dos seus pais; apreciava muito as esperanças que seu povo cultivava; crescia também em graça e sabedoria. Com 12 anos tomou distância dos pais e discutiu com os doutores da lei em Jerusalém. José e Maria jamais esqueceriam as palavras fortes e misteriosas que disse quando o repreenderam: “Não sabiam que eu devo estar na casa do meu Pai?”
O constrangimento e o medo tocaram Maria e José quando receberam a visita e os presentes de um grupo de estrangeiros. O que teria de tão especial aquele menino para atrair gente de tão longe? A presença de pagãos não traria a impureza para a família? Os pagãos também teriam dignidade e seriam abençoados por Deus? Como poderia a glória de Deus habitar numa criança e se manifestar a todos os povos, sem nenhuma espécie de exclusão? E, se aqueles magos haviam se encontrado com o sanguinário Herodes, o menino não estaria correndo perigo?
Mas depois desse acontecimento aquela família mergulhou na mais absoluta normalidade. Algo novo veio a acontecer apenas quando o filho de Isabel e Zacarias se retirou para o deserto e convocou o povo a preparar as estradas para o encontro com Deus. Jesus, Maria e José foram ao seu encontro nas margens do rio Jordão. Ressoram fortemente as conhecidas palavras de Isaías: “Farei com vocês uma aliança definitiva... Cada um volte para Javé e ele terá compaixão...” (Is 55). E José e Maria acompanharam atônitos o filho entrando na água para ser batizado. Viram o céu se abrindo, uma pomba pairando sobre ele e ouviram uma voz que vinha do céu: “Tu és meu filho amado; em ti eu encontro meu agrado.” O que significaria tudo isso?
E daí para frente tudo mudou radicalmente. Jesus foi se distanciando mais e mais do núcleo familiar, passou a viver com um grupo de seguidores e começou a anunciar que o Reino de Deus estava chegando. Pedia que o povo acreditasse nessa boa notícia e mudasse de mentalidade. E então José e Maria se deram conta de que conheciam pouco ou nada o próprio filho e entraram no exigente caminho de discernir e abrir-se ao mistério de Deus encarnado na humanidade daquele que também tinha seu sangue. E passaram a fazer parte de uma família que não conhece os laços de sangue: a família daqueles acolhem e praticam a Palavra do reino de Deus.
Itacir msf

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

2° Domingo do Advento



Contigo o deserto é fértil, a terra se abre em flor!
(Is 40,1-5-9-11; Sl 84/85; 2Pe 3,8-14; Mc 1,1-8)
Vivemos a primeira semana do Advento sob o signo da vigilância: alegre e inteligente expectativa de que algo de bom está sendo gerado; olhos abertos e coração desperto para perceber os sinais daquele que está sempre vindo e daquilo que está nascendo; abertura e disponibilidade para deixarmo-nos moldar como barro nas mãos do divino oleiro. A segunda semana se abre solicitando-nos conversão e engajamento: ações que tragam consolação aos desolados; abertura de estradas onde a vida é difícil como num deserto e boas estradas onde abundam buracos e barrancos; perseverança quando os novos céus e a nova terra demoram a aparecer; ternura como a do pastor que carrega no colo os cordeirinhos e guia mansamente as ovelhas que amamentam. Por Cristo, com Cristo e em Cristo “o deserto é fértil e a terra se abre em flor; da rocha brota água viva, da treva nasce o esplendor...”
“Consolai, consolai meu povo!”
Desde antes de iniciar o Advento martela nossos ouvidos o convite insistente a preparar o Natal comprando coisas. Em versões e ritmos vários, o refrão que gera cifras  quer fazer-nos crer que a felicidade se deixa encontrar nas vitrines dos shopings e que não há ação mais graciosa e divina que consumir. E as pessoas que vivem objetivamente sem nada acabam acrescentando à sua congênita necessidade o sentimento subjetivo de carência e frustração.
A voz do profeta Isaías ressoa forte nesse deserto onde as pessoas descartadas vagam inconsoláveis e sem rumo, como que fogindo da própria culpa: “Consolem, consolem meu povo! Falem ao seu coração! Divorciem-se do consumo sedutor e desposem a consolação redentora. Ajudem meu povo a perceber que não há crimes que recaem sobre seus ombros. Mostrem que Deus está aqui e toma conta dele como um pastor. “Ele leva os cordeirinhos no colo e guia mansamente as ovelhas que amamentam...”
O Advento prepara o Natal do Senhor na medida em que nos ajuda a substituir a ansiedade de consumir pela decisão de consolar. Consolar é colocar-se ao lado para sustentar, não deixar o outro só, dar solidez a quem é vulnerável. E isso se faz com palavras, com gestos e, principalmente, com decisões sábias e com ações concretas. Não é por nada que na língua hebraica dâbar significa ao mesmo tempo palavra e ação. “No deserto, abrí um caminho para o Senhor!”
“No deserto abrí um caminho para o Senhor.”
Deserto é terra de ninguém, lugar de ‘vida severina’, periferia do mundo, espaço de resistência, refúgio dos perseguidos, reduto dos movimentos proféticos. Como abrir caminhos numa realidade humana e social tão complexa, sofrida e contraditória como esta que vivemos? Para a abertura de estradas e avenidas,  centros urbanos decorados para o natal e as terras aparentemente férteis das pessoas e grupos bem-sucedidos nos parecem mais propícios que o deserto.
Com o salmista precisamos decidir: “Ouvirei o que diz o Senhor Deus...” E ele fala de paz para seu povo, de um Novo Céu e uma Nova Terra onde habitará a justiça. Fala do congraçamento entre o amor e a fidelidade e do abraço afetuoso e fecundo entre a Paz e a Justiça. Diz que na mesma medida em que a fidelidade germina e cresce entre nós a justiça se inclina do céu. Mas o poeta que escreve esses versos é também o militante que vai para as ruas, campos e arenas.
Foi assim que, depois da tragédia de uma guerra que encharcou de sangue a velha, prepotente e cansada Europa, as diversas vozes dos que sonharam a Paz e levantaram a bandeira da dignidade inalienável de cada criatura singular se uniram em coral e proclamaram os Direitos Humanos (10.12.1948). Os poetas se converteram em profetas e militantes, e passaram da academia às praças. Passados mais de 60 anos, é justo que se espere que também nós passemos das declarações à ação.
“Endireitem as veredas para ele...”
Os caminhos da justiça e da paz ainda são tortuosos e esburacados, especialmente para os países e as pessoas pobres. O obstáculo não está unicamente no terrorismo, como repetiu Bush, o decadente ‘imperador do mundo’, nos últimos anos, mas no cassino da rua do muro (Wall Street) onde se compra, vende e especula sobre a vida e a morte dos povos. E a solução não é encher a garganta insaciável dos bancos e financeiras mas estabelecer critérios éticos para a economia.
O evangelista Marcos diz que o povo que vivia no ‘centro do mundo’ (Jerusalém) se deslocou à periferia (deserto) para escutar o profeta João. E este é o caminho que precisamos seguir se quisermos que a humanidade tenha futuro. As soluções impostas de cima costumam ignorar e aumentar o nada dos sem-nada. A Palavra de Deus teima em afirmar que é do deserto e da periferia que vêm as notícias alegres (Boa Nova) que dizem que o Humano está nascendo e um Outro Mundo está sendo criado.
 “Depois de mim vem aquele que é mais forte do que eu...”
Mas isso pede inversão de perspectivas e conversão das mentalidades. A novidade que vem do deserto é peregrina e vulnerável. O centro se desloca para a margem. O agente de Deus (Messias) nasce migrante e se hospeda na estrabaria. Seus pés não conhecem o ruído das botas dos soldados mas somente a ágil simplicidade das sandálias. O amor só tem a força do dom e do martírio. O/a discípulo/a só tem segurança na voz do Mestre e o/a missionário/a só pode contar com o poder da Palavra.
É isso que realmente esperamos? É com isso que queremos realmente contar? É essa a estrada que estamos dispostos a abrir e trilhar? João Batista tinha consciência de que era apenas o precursor, que o chamado à conversão seria seguido pelo anúncio de uma boa notícia e que o retiro no deserto seria substituído pela estrada que leva aos povoados. “Depois de mim vai chegar alguém mais forte que eu. Eu não sou digno sequer de me abaixar para desamarrar as suas sandálias...”
Sandálias lembram caminho, e caminho sugere discipulado. A estrada a ser aberta no deserto é a estrada do seguimento de Jesus na pobreza, no dom de si e na solidariedade. É a estrada que leva a Belém e Nazaré e termina (aparenetemente) no calvário. E que ninguém queira substituir as sandálias do carpinteiro pelas botas dos soldados arrogantes ou do gordo papai-noel. Seguimento de Jesus não rima com guerra ou shoping. Conservemos as sandálias... E abramos caminhos.
 “Para o Senhor, um dia é como mil anos...”
Até quando conseguiremos manter viva essa convicção e essa esperança? A realidade parece desmentir o que acreditamos, e a história parece não considerar nossas utopias. São Pedro nos diz que “para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos é como um dia”. Deus tem paciência, mas durante este tempo de espera é necessário empenho para que o Novo Céu e a Nova Terra nos encontrem em paz, sem mancha e sem culpa. Precisamos nos manter firmes e ativos/as na esperança.
O calendário que faz memória das grandes testemunhas nos oferece, nestes dias, dois magníficos exemplos de espera ativa. São Francisco Xavier (+03.12.1552), tocado pelas palavras de Jesus, deixou os amados companheiros de Jesus na Europa e empreendeu uma viagem sem retorno ao Oriente, confiante que este se abriria ao Evangelho. Charles de Foucault (+01.12.1916) gastou sua vida como discreta chama acesa em meio aos muçulmanos e foi morto por um daqueles que amou e respeitou.
Jesus, Maria e José também viveram pacientemente a aparante demora da manifestação de Deus. A espera se converteu em preparação para discernir e acolher a ‘hora’ de Deus. Enquanto esperavam, lançaram raízes na periferia, mergulharam fundo na Palavra de Deus, exercitaram generosamente o cuidado com os cordeiros fracos e com as ovelhas gestantes. E fabricaram sandálias, muitas sandálias: sandálias para pés masculinos, femininos, infantis e jovens...
“Sua glória habitará em nossa terra...”
Deus pai e mãe, pastor terno e dedicado: fecunda nossos ouvidos com tua Palavra criadora e abre nossos lábios para que proclamemos sem medo que estás vindo à casa nossa e tua, que  trazes nos braços teus filhos e filhas mais queridos. Converte nosso coração e abre nossos olhos para que sejamos capazes de contemplar a delicada coreografia cósmica que acompanha tua chegada aos desertos do mundo: a verdade brotando da terra e a justiça se inclinando do céu; a misericórdia e a verdade dançando ao som do vento e a justiça e a paz se abraçando para sempre. E põe nos  nossos pés as sandálias do teu Filho!
Pe. Itacir Brassiani msf

domingo, 27 de novembro de 2011

O LAICATO NA IGREJA: UM DESAFIO SEMPRE ATUAL!

Imagem de N. S. Aparecida,
na Capela do Colégio Pio Brasileiro

Hoje, dia 27 de novembro de 2011, convocados pela coordenação dos/as religiosos/as brasileiros/as em Roma, um grupo de 60 religiosos/as e leigos/as de vários países, especialmente do Brasil e de alguns países da América Latina, se reuniu para refletir e partilhar experiências e expectativas sobre o Vaticano II e a missão do laicato na Igreja e na sociedade. Colaboraram na reflexão o sociólogo peruano Juan Valenzuela (Universidade Gregoriana) e o brasileiro Silvonei José (radialista da Rádio Vaticana).
O doutor Juan Valenzuela lembrou que, no dinamismo do Vaticano II, a Igreja da América Latina mudou completamente. A valorização dos/as leigos/as e o apoio ao seu apostolado são méritos deste Concílio, mas, infelizmente estamos assistindo hoje a um doloroso fechamento. O povo latino-americano tem sede de mistério e de justiça, e só os leigos e leigas podem ajudar a saciar minimamente estas sedes.
O comunicador Silvonei José disse que os homens e mulheres de hoje só podem encontrar Deus se encontrarem pessoas concretas que o testemunham. O caminho para Deus passa pelas pessoas que o encontraram.  A missão da Igreja não pode ser vista apenas como celebração e sacramentos, e aos leigos cabe de atuar como fermento do Evangelho do Reino de Deus no coração do mundo.
Vejamos o que dizem alguns textos do Decreto Conciliar Apostolicam Actuositatem, sobre o apostolado dos leigos, publicada por Paulo VI, em nome do Concílio, no dia 18 de novembro de 1965.
“Existe na Igreja diversidade de funções, mas unidade de missão. Aos Apóstolos e seus sucessores, confiou Cristo a missão de ensinar, santificar e governar em seu nome e com o seu poder. Mas os leigos, dado que são participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, têm um papel próprio a desempenhar na missão do inteiro Povo de Deus, na Igreja e no mundo. Exercem, com efeito, apostolado com a sua ação para evangelizar e santificar os homens e para impregnar e aperfeiçoar a ordem temporal com o espírito do Evangelho” (§ 2).
“Os leigos exercem o seu apostolado multiforme tanto na Igreja como no mundo. Em ambos os planos se abrem vários campos de atividade apostólica de que queremos aqui lembrar os principais: as comunidades eclesiais, a família, a juventude, o meio social, as ordens nacional e internacional. E como hoje a mulher tem cada vez mais parte activa em toda a vida social, é da maior importância que ela tome uma participação mais ampla também nos vários campos do apostolado da Igreja” (§ 9).
“O apostolado no meio social, isto é, o empenho em informar de espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e estruturas da comunidade em que se vive, são incumbência e encargo de tal modo próprios dos leigos que nunca poderão ser plenamente desempenhados por outros” (§ 13).
Um imenso campo de apostolado se abre na ordem nacional e internacional, em que são sobretudo os leigos os administradores da sabedoria cristã. Os católicos sintam-se obrigados a promover o bem comum na dedicação à pátria e no fiel cumprimento dos deveres civis, e façam valer o peso da sua opinião de modo a que o poder civil se exerça com justiça e as leis correspondam aos preceitos morais e ao bem comum” (§ 13).
“Empenhem-se os católicos em cooperar, com todos os homens de boa vontade, para promover tudo o que é verdadeiro, tudo o que é justo, tudo o que é santo, tudo o que é digno de ser amado (cfr. Fil. 4,8). Dialoguem com eles, indo ao seu encontro com prudência e bondade. E investiguem em conjunto o modo de organizar as instituições sociais e públicas segundo o espírito do Evangelho” (§ 14). “Os valores humanos comuns pedem com frequência uma cooperação semelhante dos cristãos, que procuram fins apostólicos, com outros que, embora não professem a religião cristã, reconhecem, contudo, esses valores” (§ 27).
Tem plena razão o professor Silvonei José quando afirma, referindo-se à missão dos leigos e leigas, que o Concílio Vaticano II ainda não foi assimilado ou digerido. Talvez seja ainda pior: por parte de alguns setores leigos e hierárquicos, o Vaticano II está sendo simplesmente vomitado.
Itacir msf

sábado, 26 de novembro de 2011

O DIABO É POBRE


 
Nas cidades do nosso tempo, imensos cárceres que trancam os prisioneiros do medo, as fortalezas dizem ser casas e as armaduras simulam ser ternos.
Estado de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, não confie. Os amos do mundo dão a voz de alarme. Eles, que impunemente violam a natureza, sequestraam países, roubam salários e assassinam multidões, nos advertem.
“Cuidado! Os perigosos acossam, tocaiados nos subúrbios miseráveis, mordendo invejas, engolindo rancores.”
Os perigosos, os pobres: os pobres-diabos, os mortos das guerras, os presos dos cárceres, os braços disponíveis, os braços descartáveis.
A fome, que mata calando, mata os calados. Os especialistas – os pobrólogos – falam por eles. E nos contam em que não trabalham, o que não comem, o quanto não pesam, o quanto não medem, o que não têm, o que não pensam, o que não votam, em que não crêem.
Só nos falta saber por que os pobres são tão pobres. Será porque sua fome nos alimenta e sua nudez nos veste?
(Eduardo Galeano, Espelhos, uma história quase universal.
 L&PM Editores, Porto Alegre, 2008, p. 116).

O DESAFIO MISSIONÁRIO NA FRANÇA

Na última quinta e sexta-feira (24 2e 25/11) estive na França, em São João de Bournay (próximo a Lyon), paróquia pertencente à diocese de Grenoble. Nestes dias estive hospedado na casa da senhora Solange Bonevie, na vila de Châtonnay, cidade natal do nosso Fundador, o Pe. João Berthier. O objetivo da visita foi coordenar o processo de avaliação da Comunidade Internacional Pe. Berthier, cujo lançamento aconteceu em outubro de 2007.
Esta Comunidade missionária e interprovincial foi constituída com quatro objetivos convergentes: manter viva a memória do Pe. Berthier na região do seu nascimento; evangelizar mediante o testemunho de vida fraterna e intercultural; desenvolver os apostolados prioritários da Congregação; auxiliar a diocese de Grenoble e a Província MSF da França em suas necessidades.
Paulo, Mauricio, René e Yulius
Atualmente, a Comunidade pertence canonicamente à Província Francesa e é formada por quatro coirmãos: Pe. René Chatain (França); Pe. Paulo Gorecki (Polônia); Pe. Maurice Ramanandraibe (Madagascar); e Pe. Yulius Edyanto (Indonésia).
Todos residem juntos na sede de São João de Bournay, mas apenas dois coirmãos animam a Paróquia local (formada por uma rede de 23 comunidades, todas ex-paróquias): um trabalha no setor de juventude da Paróquia de Vienne (há 20 km de São João de Bournay) e um terceiro atua como vigrio paroquial em Valèe, próximo a Vienne.
A missão pastoral na França é um enorme desafio. A população sofreu um radical e longo processo de  secularização e laicização. Talvez a ação pastoral não possa nem mesmo ser definida como re-evangelização: é preciso partir do zero, do primeiro anúncio, especialmente quando se trata de crianças, jovens e pessoas de meia idade.
Itacir msf

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

ENCONTRAR JESUS E DEIXAR QUE ELE NOS VEJA


Todos nós guardamos muito vivos na memória alguns lugares, gestos, pessoas, encontros e acontecimentos. Eles não caem na vala comum das coisas rotineiras, obrigatórias e matemáticas. São experiências, pessoas e lugares sacramentais, capazes de evocar lembranças bonitas e sustentar longos percursos. Jericó é um desses lugares especiais para Jesus e para os cristãos.
Lucas nos diz que Jesus havia tomado a firme decisão de partir para Jerusalém (cf. Lc 9,51). No caminho entre as aldeias dos pobres e a capital dos opressores, já bem perto de Jerusalém, está Jericó. É um oásis no meio do deserto. Um lugar de passagem e descanso. Um lugar rico em possibilidades de encontros. Encontros ocasionais ou esperados, superficiais ou profundos. Num só relance (cf. Lc 18,35-19,10), Lucas nos fala de dois encontros extremamente sugestivos com Jesus no oásis de Jericó.
Da margem para o caminho
A primeira narração faz memória de um cego e mendigo. Seu lugar era a beira da estrada. Lá ele esperava que os transeuntes se compadecessem dele e deixassem algo sobre seu manto estendido no chão. Percebendo a agitação do povo que passava, o homem desconfiou que algo uma pessoa importante deveria estar passando. Ficou sabendo que era Jesus, o homem de Nazaré, que subia a Jerusalém.
O cego e mendigo esqueceu de pedir esmola e implorou compaixão. "Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!" O pessoal mandou que se calasse, mas ele gritou mais forte ainda, expressando seu desejo de um gesto e de um encontro que mudassem sua vida. O peregrino de Nazaré parou e pediu que levassem o homem até ele.
"O que você quer que eu faça por você?" Jesus não tinha nada para dar. Mas podia e queria fazer algo. Tudo o que aquele homem excluído queria era ver de novo. Nada mais. E esse seu querer, conjugado com sua confiança no jovem peregrino, abriu seus olhos de vez. E ele deixou a beira do caminho e começou a seguir Jesus pelo caminho.
De cima para baixo
Na seqüência, temos a memória de um homem rico e execrado chamado Zaqueu. Jesus está atravessando a cidade, e Zaqueu mora nela. Ele é chefe dos cobradores de impostos, é rico e não precisa mendigar na beira da estrada. Mas é curioso e deseja ver, no meio da multidão, quem é Jesus. Sua estatura pequena e a multidão que rodeia Jesus são empecilhos. Ele corre na frente e sobe numa figueira para poder ver.
A situação é engraçada. Jesus pára, olha para cima e vê Zaqueu. "Desça depressa, porque hoje eu quero ficar em sua casa..." Mesmo sendo mal-visto pelo judaísmo oficial, que o considera um pecador a ser evitado, Zaqueu pensa que precisa subir para encontrar Jesus. Pensa que é a prática correta das leis e costumes é que possibilitam o encontro com Deus. E acaba descobrindo que Deus mesmo vem ao encontro dos pecadores e, desse amor que não conhece fronteiras, brota um rio impetuoso de solidariedade e de partilha. Porque também ele é filho de Abraão, sente-se chamado à ser justo e solidário com o povo.
Uma busca pessoal
Estamos no tempo de Advento, de espera e de preparação. O Natal está se aproximando. Também nós desejamos ter um encontro vivo e transformador com Deus. O que precisamos fazer? Antes de tudo, buscar  Deus com todas as nossas forças. Não cansar de pedir que ele tenha piedade de nós. Não permanecer simplesmente como um a mais na multidão. Jamais ficar satisfeitosr com as moedas medíocres do saber e do poder. Ouvir atentamente e suplicar com confiança. E nossos olhos se abrirão para reconhecer Deus na humana vulnerabilidade e segui-lo nos confrontos e fracassos.
Em segundo lugar, descer. Aprendemos a gostar demais das alturas, dos pedestais. Confiamos demais nos velhos valores da superioridade e e do sucesso. Damos um valor muito grande às instituições. Precisamos encontrar Deus num movimento de êxodo de nós mesmos em direção aos outros e das instituições em direção à vida concreta. Esse êxodo não é só horizontal, mas também vertical: de cima para baixo, do grande ao pequeno, do superior ao inferior, do sucesso ao fracasso, de céu aos infernos, da glória à cruz, do palácio ao estábulo.
Pe. Itacir Brassiani msf

ELOGIO À FRUGALIDADE

O termo frugalidade, que evoca moderação na forma de se alimentar, conduz minhas lembranças inexoravelmente aos nômades de minha infância. Seu modo de viver lhes ensinou a distinguir entre aquilo que é indispensável, aquilo que é necessário e aquilo que é supérfluo. Os modestos objetos que eles carregavam sobre seus dromedários exprimiam de forma paradoxal mais a força e a majestade de sua vida que a precariedade. Se nós ajuntamos a essa modéstia uma habitação constituída de uma simples toalha, a frugalidade atingirá seu ponto mais alto no seio do mundo tórrido do deserto. No outro extremo, no deserto de gelo, nós também encontramos povos que se confrontam com os últimos limites da sobrevivência e que foram capazes de sobreviver.
Entre esses dois extremos se organizaram no percurso dos séculos um número incalculável de modos de viver relativamente frugais, todos geradores de cultura e, a despeito de tudo, fonte de alegria. Entendam-me bem! Não se trata de fazer uma apologia do passado. Sofrimento, violência do homem contra o homem e escravidão sempre marcaram a história do gênero humano. Além disso, as grandes civilizações originais não foram capazes de se alegrar sem acumula recursos vultosos. Algumas dessas civilizações comprometeram de tal modo seu meio natural que acabaram morrendo, e o deserto que provocaram sepultaram-nas sob sua areia.
Com o nascimento do mundo industrial nós entramos numa era essencialmente mineral: a era da combustão, da termodinâmica e da entropia superativa. A "petrolítica", se é possível se expressar nesses termos, aboliu definitivamente todo e qualquer princípio de frugalidade. Ela é, ao contrário, o elogio da produtividade, da superconsumação definido pelo dogma do crescimento superexponencial servido por uma tecnologia eficaz. Todas as nações são convidadas a se desenvolver segundo um modelo dopado pela dilapidação do planeta, e se tornam empresas competitivas preparando as crianças para contribuírem no aumento do PIB mediante o trabalho devotado e sua capacidade elástica de consumir.
Consumir abundantemente é visto mesmo como um ato cívico e vital para a economia, com o sentimento de uma falta crônica habilmente trabalhado pela publicidade, especialista na manipulação mental. A insaciabilidade e a frustração permanentes, muitas vezes programadas, se tornam um aguilhão sempre mais indefinido num ambiente de falsa penúria, gerando massivamente coisas supérfluas e montanhas de dejetos que, por sua vez, se tornam fontes de novas atividades... À esta aberração é necessário acrescentar que o sistema que produz as mercadorias que devem ser consumidas gera, ao mesmo tempo, o desemprego e a exclusão de inumeráveis cidadãos incapazes de consumi-las.
Nesse contexto, a frugalidade adquire um caráter salutar e pode contribuir para o nascimento de uma nova ordem cultural, fundada sobre a idéia de temperança. A frugalidade solicita meu engajamento pessoal e minha responsabilidade. Eu sou frugal porque eu tenho consciência de habitar um planeta com recursos limitados e entregues a uma pilhagem ilimitada. Eu sei também que os bens da terra são distribuídos de forma desigual e injusta. O supérfluo de uns representa o indispensável de outros, e instaura uma espécie de antropofagia indireta. Eu sou frugal porque eu quero me libertar do consumismo e me libertar do estatuto do consumidor manipulado, ao qual a ideologia da mercadoria quer me reduzir, sem considerar minha dignidade. Eu sou frugal porque não quero contribuir para tornar impossível a vida das gerações futuras.
Para além das questões individuais, a frugalidade ajuda a construir coletivamente, através de uma educação especifica aos filhos, uma economia re-localizada, uma autonomia coletiva que reduza o recurso desmedido à energia combustível e à dissipação massiva dos recursos, que gera degradações irrecuperáveis na natureza e empobrecimento humano.
Mas eu sou plenamente consciente das contradições que ameaçam meu comportamento cotidiano e das incoerências que me impõem uma organização da qual nos sentimos reféns impotentes, fazendo concessões a uma realidade que conscientemente eu recuso. Mas eu sei que uma ordem diferente, inspirada pela inteligência da própria vida, é realmente possível, e eu quero contribuir para que essa mudança aconteça. Eu sei também que nós não temos outra escolha. Talvez a frugalidade exterior seja inspirada e determinada por uma frugalidade interior, capaz de moderar minhas ambições, meu desejo de poder e todas as outras pulsões prejudiciais à paz universal.
Pierre Rabhi
(Publicado em Faim e Développement Magazine, N° 199-200 (Janeiro de 2005), p. 21).
Traduzido por Itacir Brassiani msf.

domingo, 20 de novembro de 2011

EM MEMÓRIA DE ZUMBI E DOS QUILOMBOS


No dia 20 de novembro de 1695 foi assassinado Zumbi, herói da resistência negra e último líder do Quilombo dos Palmares. As violentas e sucessivas ações do império português para eliminar as comunidades autônomas negros/as que fugiam da praga da escravidão se estenderam por mais de 60 anos, tal a força da resistência do povo negro.
A sede de liberdade e dignidade é o segredo que explica tão vigorosa e prolongada resistência. À frente deste teimosa luta pela autonomia e pela liberdade esteve o negro Zumbi, líder e rei, cuja relevância pode ser comparada à de Spartacus, também ele líder de escravos nos tempos do império romano.
Neste dia de memória reverente da figura deste patriarca brasileiro, dia também dedicado ao resgate da consciência negra, partilho um belo texto do grande Eduardo Galeano, no qual faz reverente memória da resistência dos negros na América Latina.
Acontece no começo do século XVI. Alguns dias depois do Natal, os escravos negros se rebelam num moinho de açúcar de São Domingos, que é propriedade do filho de Cristôvão Colombo.
Depois da vitória da ‘divina providncia’ e do apóstolo São Tiago, os camihos se povoam de negros enforcados.
Os escravos que fracassaram na primeira tentativa de fuga sofrem castigo de mutilação: corte de uma orelha, ou do tendão, ou de um pé, ou da mão. Em vão o rei da Espanha proíbe cortar ‘as partes que não podem ser mencionadas’.
Nos reincidentes cortam o que lhes sobra, e eles acabam na forca, no fogo ou no machado Suas cabeças são exibidas, cravadas em estacas, nas praças e povoados.
Mas em toda a América se multiplicam os baluartes dos livres, metidos no fundo da selva ou nos desfiladeiros das montanhas, rodeados de areias movediças que simulam ser terreno firme e de falsos caminhos semeados de estacas de ponta.
Até ali chegam os vindos das muitas pátrias da Africa, que se fizeram compatriotas de tanto partilhar humilhações.
Acontece no século XVII.  Feito cogumelos brotam os refúgios dos escravos fugidos. No Brasil são chamados de Quilombos. É uma palavra africana que significa ‘comunidade’, embora o racismo a traduza como esbórnia, briga ou casa de putas.
No Quilombo de Palmares, os que haviam sido escravos vivem livres de seus amos e também livres da tirania do açúcar, que não deixa nada crescer. Eles cultivam de tudo, e comem de tudo. O cardápio dos seus amos vem dos barcos. O deles vem da terra. Suas forjas, feitas no estilo africano, lhes dão enxadas, picaretas e pás para trabalhar a terra, e facas, machados e lanças para defendê-la.
(Eduardo Galeano, Espelhos, uma história quase universal.
 L&PM Editores, Porto Alegre, 2008, p. 151-152).