quarta-feira, 30 de novembro de 2011

POR UMA EVANGELIZAÇÃO REALMENTE NOVA (2)

Focalizado no rico mundo do hemisfério norte
Como já observamos, tanto a nova evangelização como o Documento que prepara o Sínodo, infelizmente partem da problemática específica do Primeiro Mundo e para ele estão voltados. As Igrejas e povos do Terceiro Mundo são olimpicamente ignorados, como se não existissem ou não importassem. Isso fica evidente especialmente na descrição dos seis cenários que caraterizariam o mundo de hoje (cf. § 6).
O cenário cultural de fundo é caracterizado como secularização e relativismo, que se apresenta positivamente como libertação e possibilidade de a vida e o mundo sem uma referência ao Transcendente. No cenário social recebem destaque o fenômeno da migração, intimamente relacionado com a globalização e liquidificação das tradições culturais e religiosas. O terceiro cenário, dominado pelos meios de comunicação de massa, é caracterizado como cultura digital, centrada no efêmero e na aparência, radicalmente incapaz de memória e de futuro.
No cenário econômico, apresentado de forma muito sintérica, recebem ênfase o desequilíbrio entre norte e sul do mundo, a desregulamentação da economia e os danos ao meio ambiente. No quinto cenário, dedicado à investigação científica e à teconologia, se fala do risco de que venham a ser uma espécie de religião moderna ou levem a uma versão moderna do gnosticismo. Finalmente, na descrição do cenário politico são postos em relevo a crise da ideologia comunista e dos grandes blocos e a consequente abertura de novas possibilidades ao cristianismo, o aparecimento de novos atores políticos, econômicos e religiosos (nomeadamente, os mundos islâmico e asiático).
Globalmente, o contexto atual é descrito como pós-ideologico. Como é possível ignorar que o que pretende se impor é a ideologia do pensamento único, do néoliberalismo e da idolatria do mercado? Como fazer vistas grossas à criação e promoção da ideologia do combate ao terrorismo, a partir da substituição do confronto leste – oeste pelo confronto entre civilização árabe islâmica e civilização cristã ocidental?
Mas não podemos deixar de perguntar também: Ao lado da crise financeira internacional, não são igualmente ou mais preocupantes e potencialmente devastantes as crises alimentar, ambiental e energética? E é possível passar ao largo das guerras civis e interrnacionais que ferem tantos povos e alimentam a imoral indústria de armas? Aquilo que se chama cultura do relativismo não seria apenas o aspecto negativo do pluralismo cultural e religioso, teologicamente positivo? E a atuação dos vários movimentos altermundistas e eventos globais como o Fórum Social Mundial não são fatores promissores que merecem ao menos menção?
Apenas sede de Deus?
O Lineamenta saúda como “nova primavera” (cf. § 8 e 15) o surgimento e a propagação dos movimentos eclesiaiss, mas, em sua miopia teológica e espiritual, não consegue ver a atuação dos movimentos culturais e sociais. No fundo, a leitura da realidade expressa nos diversos cenários, feita do ponto de vista do primeiro mundo e a partir de interesses institucionais, quer colocar em evidência a necessidade de religião e a sede de espiritualidade que subjaz à cultura do efêmero. A obsessão que pervade todo o documento é essa: introduzir o discurso sobre Deus numa cultura que o marginalizou ou excluiu da sua visão de mundo.
Mas também aqui o que ocorre é uma leitura tremendamente interesseira e redutiva do complexo contexto em que vivemos. Como pode um Documento da Igreja universal passar ao largo da fome de paz, de justiça e de vida que devoram e mobilizam dois terços da humanidade? Com que fundamento e legitimidade se pode dizer que o que interessa é a sede de Deus, e que o essencial é reintroduzir o conceito de Deus na atual cosmovisão?
Na verdade, em que pese uma e outra referência ao Reino de Deus, a perspectiva teológica e missiológica do Lineamenta é eclesiocêntrica,  religiosista e logocêntrica: tudo se resume em ressuscitar uma Igreja adormecida, esclerosada ou morta; em potencializar o cristianismo frente ao secularismo e ao islamismo; e em implantar de novo conceitos religiosos e teológicos no coração da cultura. E a vida que se dane, já que o importante é invocar e proclamar o nome de Deus (ou melhor, o nome de um deus branco, macho, potente e ocidental).
Um desafio hercúleo
Infelizmente, as intuições interessantes esparsas no texto acabam perdendo a relevância e a operacionalidade por causa dos pressupostos teológicos questionáveis e da perspectiva inadequada  do Lineamenta. A idéia saudosista e inaceitável de que o cristianismo tem a única resposta verdadeira e consistente às perguntas e demandas do ser humano vicia todo o Documento. Como pode ser nova uma evangelização que parta de tal presunção?
E nem quero entrar na discussão sobre a proposta operacional do Documento. Como é possível reduzir a missão da Igreja nos tempos atuais ao clássico caminho da iniciação cristã, centrada na catequese e nos sacramentos? Onde ficam os pilares conciliares do testemunho de comunhão fraterna e ecumênica, do serviço solidário aos pobres e oprimidos, do diálogo aberto e respeitoso com as culturas, do anúncio humilde e alegre do Reino de Deus, da colaboração com as boas iniciativas da sociedade, da encarnação da fé nas realidades sociais, culturais, políticas e econômicas?
Minha intenção não é emitir um juízo absoluto e completo sobre os Lineamenta, nem desistimular sua leitura. Tenho consciência que minha leitura deve muito aos meus pressupostos teológicos e opções eclesiais e políticas. Pretendo apenas polemizar para suscitar interesse e leituras possivelmente diversas. Ficarei feliz se alguém me contradisser e identificar outras perspectivas do Documento, mais promissoras e operacionais.
Em todos os casos, não se trata de discutir e melhorar apenas um texto oficial. O que está em questão é não desperdiçar a oportunidade e o grande investimento que um Sínodo representa. O que me preocupa é o Sínodo, e não o Lineamenta. Dentro das nossas possibilidades, ou criando possibilidades, fiéis ao nosso carisma missionário, participemos deste processo sinodal para que as futuras gerações não nos acusem de retrógrados ou omissos. Concordo: esta é uma tarefa para Hércules!
Itacir msf

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