segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A Sagrada Família segundo os Evangelhos (9)

Lucas 2,41-52: Meu filho, por que você fez isso conosco?...

A única informação que temos sobre o período que vai entre o nascimento e os primeiros dias de vida e o início da vida pública de Jesus Cristo é a que Lucas nos oferece neste relato. Encontramo-noss diante da narração da primeira ação consciente e da primeira palavra de Jesus, segundo Lucas. Estando tematicamente referida ao passado, essa narrativa aponta para o futuro. Como nos outros textos da infância, a ênfase não é biográfica ou histórica, mas teológica: tendo crescido em sabedoria, Jesus vai à casa do Pai.
Com 12 anos os filhos se tornavam "filhos da Lei" (bar Mitzvah) e assumiam algumas obrigações das quais estavam dispensados até então. Entretanto, havia um costume, difundido entre as famílias judaicas, de levar os filhos ao templo alguns anos antes, para que participassem ativamente dos acontecimentos lá desenvolvidos. Por residir a mais de 35 km de Jerusalém, a Sagrada Família não era obrigada a peregrinar anualmente a Jerusalém.  Mas a festa da Páscoa era especialíssima, e recordava o evento fundador e a esperança escatológica de Israel e, por isso, como muitos outros judeus piedosos, os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. Viajaram em caravana, junto com os parentes e conterrâneos.
Lucas silencia sobre a festa da páscoa e focaliza toda a atenção no que acontece depois. O menino ficou em Jerusalém. Não é dito que Jesus tenha se perdido. Os participantes viajavam em caravanas, na companhia de muitos amigos e vizinhos, e os pais de Jesus imaginaram que ele estivesse junto com os conhecidos que viajavam na mesma caravana, pois é normal um adolescente de 12 anos se misturar aos vários grupos da caravana. Depois de procurar Jesus com atenção e preocupação, três dias depois Maria e José o encontraram no templo. E Maria o interrogou em tom de repreensão: "Meu filho, por que você fez isso conosco? Olhe que seu pai e eu estávamos angustiados, à sua procura" (v. 48). É a reprimenda de uma mãe diante de uma atitude um tanto irresponsável de um adolescente.
O que o texto chama de templo pode ser também a sinagoga situada no interior do templo. Nela os escribas estudavam a Palavra de Deus aproveitavam os dias de festas para ensiná-la aos adolescentes que visitavam o templo. Não está sentado, como quem ensina, nem aos pés dos doutores, como um discípulo, mas de pé, como alguém que faz perguntas.  Ali Jesus demonstra seu interesse em conhecer mais Deus e sua vontade expressa na história e nas escrituras do seu povo, seu caminho para se tornar "filho da Lei". Parece que não há tensão e sim busca e diálogo, mesmo que o saber de Jesus parece impressionar, não só em Nazaré, mas também em Jerusalém.
Maria e José encontraram o filho que se separara deles e ficaram espantados. O texto original é forte e diz que eles estavam "fora de si", contrariados e não conseguiam compreender o significado da atitude do filho. De qualquer maneira, ficam muito admirados tanto por tê­lo encontrado como pelo lugar onde estava, com quem estava e o que fazia. Esta é a primeira vez que Jesus fala no evangelho de Lucas, e sua palavra reivindica a filiação divina e sua missão. Como crentes e judeus, Maria e José tiveram que aprender a conviver com o mistério que cercava o filho, mas não conseguiam compreender tudo.
A resposta que Jesus dá à reprimenda da mãe são as primeiras palavras que ele pronuncia no Evangelho: "Por que me procuravam? Não sabiam que eu devo estar na casa do meu Pai?" (v. 49). Ou então: "não sabiam que devo ocupar-me com as ações do meu Pai?" Ou ainda: "Não sabiam que devo estar à disposição do meu Pai?" Diante de José e da mãe, Jesus afirmou que tinha Deus como Pai. Ele intuía que sua missão não poderia ser reduzida pelos laços familiares. Sua missão decorria de sua filiação, do mistério de Deus e da necessidade de realizar sua vontade na história.
"Mas eles não compreenderam o que o menino acabava de lhes dizer", observa o evangelista. O que é mesmo que José e Maria não compreenderam? Eles não compreenderam não tanto a filiação divina de Jesus, mas a necessidade do seu retorno ao Pai através do caminho doloroso da paixão. Não compreenderam que Jesus por que deveria estar totalmente dedicado à vontade do Pai, a ponto de distanciar-se gradativamente da convivência e das expectativas dos seus pais e, inclusive, dos discípulos.
A incompreensão ou dissonância é entre Jesus e sua família, entre o ‘deve’ divino ao qual obedece e a limitada visão daqueles que lhe são afeiçoados reaparecerá noutros momentos. Não é para menos: na resposta de Jesus há uma clara contraposição entre os interesses do seu pai José, que o procurava, e o Pai a quem ele se sentia ligado. Aqui, Jesus reivindica uma independência absoluta em relação a qualquer pessoa, inclusive diante dos seus pais. Chamando Deus de ‘meu pai’, Jesus se emancipa dos seus e rompe com a integração na cultura religiosa de Israel que eles desejavam garantir. Na incompreensão de seus pais Lucas já antecipa a incompreensão de que será objeto da parte de todos: dirigentes de Israel, povo e discípulos.
Mas a missão de Jesus, além do seu caráter público, tem sua expressão escondida e encarnada na opacidade do cotidiano. Por isso ele voltou com seus pais para Nazaré, para o cotidiano obscuro do aprendizado e do crescimento, onde viveu com seus pais como carpinteiro. Obedeceu aos seus pais como quem se subordina às necessidades daqueles que sofrem. Mas ali ele cresceu também em sabedoria e graça.
O relato termina dizendo que "Jesus crescia em sabedoria, em estatura e graça, diante de Deus e dos homens" (v. 52). Temos apenas com estas palavras para descrever mais ou menos 18 anos da vida de Jesus, anos passados em Nazaré como carpinteiro, provavelmente como único carpinteiro da cidade. Esta espécie de silêncio que se estendeu por cerca de 20 anos foi, na verdade, um anonimato voluntário e solidário com a experiência humana, um processo lento de crescimento físico, moral, intelectual e religioso na pobreza, na obediência e no trabalho.
Neste último relato relativo a episódios da infância de Jesus encontramos uma família tipicamente piedosa que se une aos irmãos de comunidade para sair em peregrinação. Uma família que confia o cuidado do filho aos parentes. Uma família que confia no filho mas tem dificuldade de compreender sua missão. Uma família que se mostra espaço de crescimento contínuo em relação às relações humanas e à adesão ao reino.

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