sábado, 21 de janeiro de 2012

A Sagrada Família segundo os Evangelhos (11)

Marcos 3,31-35: Chegaram a mãe e os irmãos de Jesus...

Uma reflexão séria e equilibrada sobre a Sagrada Família na Sagrada Escritura não pode se limitar às narrativas da infância de Jesus. É absolutamente necessário contemplar também os atos da sua vida pública, especialmente aqueles relacionados a Nazaré, onde ele teve sua concepção, formação e crescimento. Vejamos, pois, brevemente dois textos sobre a Sagrada Família no Evangelho segundo Marcos.

Marcos escreve seu Evangelho para responder à pergunta que interroga ‘quem é Jesus?’ Os relatos das ações, movimentos e  palavras de Jesus servem para responder a essa pergunta. Sob a convicção de que Jesus é o Messias e Filho de Deus, Marcos mostra como a prática de Jesus realiza o reinado de Deus e transforma radicalmente as relações humanas: do poder ao serviço; do comércio à partilha; da alienação à atitude de escuta e envolvimento com a realidade; etc. Depois de uma breve ‘apresentação do messias’, o evangelista descreve a cegueira e a resistência das autoridades (1,14-­3,6), a cegueira e a resistência do mundo (2,7-6,6), a cegueira e a resistência dos discípulos (6,7-­8,26), o caminho do discipulado (8,27­-10,52), o conflito decisivo com a ideologia do templo (11,1­13,36) e o desfecho do conflito (14,1­-16,8)

Dentro da seção ‘cegueira e resistência do mundo’ (cf. Mc 2,7-6,6) ou do ministério de Jesus na Galiléia, temos a perícope que retrata um momento tenso entre Jesus e seus familiares (3,31-35). De volta para casa, depois de alguns dias de intensa e tensa atividade em favor dos excluídos da cidadania de Israel, Jesus não tinha tempo sequer para se alimentar, muito menos para ficar com sua família. A multidão invadia a casa e perturbava o convívio familiar.

A ação de Jesus desconcertava e provocava tanta surpresa que a rejeição foi crescendo e até seus familiares ficaram contrariados (v. 21). Sua família temia que ele estivesse fora de si. (O evangelista João também registra a suspeita, levantada pelas autoridades de Jerusalém, de que Jesus tivesse enlouquecido: cf. Jo 7,20; 8,48.49.52). e receava pela sua segurança. Queria pedir para que ele abandonasse a missão. Entretanto, a cautela dos familiares chegou tarde, pois os investigadores do governo já tinham vindo da capital e estavam prontos a levantar calúnias e acusações. Acusavam­no de estar possuído por um demônio.

O v. 31 informa que "chegaram a mãe e os irmãos de Jesus" (literalmente, "os que pertenciam a ele"). É uma referência clara à sua família, mas não podemos esquecer aqui que o conceito judaico de família é mais amplo que a família nuclear moderna. Eles estão impressionados com a rigidez mental (ou obsessão) de Jesus em relação à missão. A família tinha a impressão de que Jesus estava preparando a própria ruína e sentia necessidade de defender a reputação da família.

Não esqueçamos que a família era um dos eixos centrais da sociedade judaica, na medida em que determinava a personalidade e a identidade dos seus membros, controlava a vocação e facilitava a socialização. Mas o parentesco era também a coluna dorsal da própria ordem social que Jesus luta para derrubar. Por isso o estranhamento entre Jesus e sua família era mútuo: a família não aceitava sua missão e Jesus se recusava a aceitar o parentesco como limite.

O texto informa também que os familiares de Jesus "ficaram do lado de fora e mandaram chamá­lo" (a expressão original é mais forte, e traduz a idéia de "prender", e é a mesma expressão que encontramos em Mc 6,17; 12,12; 14,1.44.46.49.51), enquanto havia um outro grupo de pessoas que "estavam sentadas ao seu redor". É uma alusão ao grupo dos que não aceitam sua mensagem e sua ação e ao grupo dos que aderem a ele e se fazem discípulos. Os familiares nem sequer se aproximaram, e mandaram recado através de terceiros. Jesus, por sua vez, não os atendeu nem respondeu diretamente, revelando um tratamento rude e desconcertante.

Na sua resposta, Jesus afirma um círculo familiar mais aberto e amplo. Olhando para as pessoas que estavam sentadas ao seu redor, declarou: "Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe" (v. 35). Sua verdadeira família é formada por aqueles que realizam na própria vida a vontade de Deus, que prosseguem sua missão. A família deve ser como um porto de onde o navio parte e não como uma doca onde lança raízes e se amarra. Jesus propõe um novo modelo familiar, baseado na obediência a Deus e não ao patriarca; repudia a velha instituição familiar patriarcal e abre caminho para uma nova família. A unidade fundamental do reino de Deus será a nova família, a comunidade dos discípulos e discípulas.

Os familiares de Jesus (sua mãe inclusive) precisam aprender com ele que a própria vida familiar está em função do estabelecimento do Reino de Deus, e não há nada mais urgente e importante que a aceleração da sua vinda. Aqui a família de Nazaré é interpelada à conversão, convocada ao discipulado, chamada a sentar ao redor de Jesus e centrar-se nele, escutar e praticar sua palavra, a aprender com a comunidade daqueles que acreditam.
Itacir Brassiani msf

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