quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Segundo Domingo da Quaresma

Não tenhamos medo de acolher e servir os doentes!
(Gn 22,1-18; Sl 115/116; Rm 8,31-34; Mc 9,2-10)

A vida é uma travessia, e são muitas as armadilhas que nos ameaçam a cada passo. E então o medo nos visita frequentemente, sugerindo construir tendas que nos protejam, ou mesmo voltar à segurança escravizadora do ponto de partida. Milton Nascimento nos desafia: “Nada a temer senão o correr da luta! Nada a fazer senão esquecer o medo! Abrir o peito numa procura, fugir às armadilhas da mata escura...” Façamos essa travessia esquecendo o medo, tendo a Palavra do Senhor como bússola, convictos de que, se o próprio Deus está a nosso favor e nos acompanha na caminhada, nada nos poderá impedir de seguir lutando pela realização dos sonhos que partilhamos com a humanidade. Essa travessia será feita em parceria, homens e mulheres abraçados. E não esqueçamos que a mulher, cujo dia internacional celebraremos na próxima quinta-feira, tem uma magia e uma força que nos alerta, “é a dose mais forte e lenta que ri quando deve chorar, e não vive, apenas aguenta”. E não esqueçamos que a Campanha da Fraternidade tem como objetivo despertar nossa sensibilidade para o serviço aos enfermos, integrando-os em nossas comunidades e atendendo suas necessidades.
“Mestre, é bom estarmos aqui...”
No último domingo escutamos Jesus aunciando que o Reino de Deus está próximo e que, para que se torne realidade, precisamos mudar o modo de pensar e acreditar nessa boa notícia. Esse anúncio despertou um certo entusiasmo, mas, algum tempo depois, Jesus teve que advertir seus discípulos/as: que não se iludissem, pois esse processo de mudança atrairia a rejeição, o sofrimento e a morte. E mais: aqueles/as que quisessem segui-lo deveriam estar prontos/as a renunciar a si mesmos/as, tomar a própria cruz e arriscar a vida (cf. Mc 8,27-38).
Em nome do grupo de discípulos Pedro quis afastar Jesus desse rumo e propôs o caminho do poder e do sucesso, sem rejeição nem sofrimento. Por isso ele se alegrou quando viu Jesus transfigurado e envolvido em luz. Essa atitude de Pedro espelha nossas próprias ambições e mitos: alcançar o sucesso a qualquer custo; chegar antes e sem se importar com quem fica para trás; ocultar ou eliminar o sofrimento; conquistar o poder e agir a partir dele; viver uma fé tranquila e sem sobressaltos; substituir o evangelho do serviço solidário e transformador pela ideologia da prosperidade.
“Eles estavam com muito medo...”
Ao dizer que era bom estar na montanha, envolvidos pelo brilho de Jesus, Pedro disfarça o medo e a confusão de todos. A presença de Moisés e Elias junto a Jesus, longe de trazer tranquilidade, fala da presença de Deus nos momentos difíceis e desanimadores da história. Esta presensa confirma e dá credibilidade ao caminho e ao ensino de Jesus. O evangelho da cruz, a proposta do amor que se faz humano dom de si mesmo, continua valendo. Eis a razão do medo de Pedro, Tiago e João. E de todos.
Atualmente, o medo difuso que nos envolve se evidencia, entre outros, no medo frente à doença e à morte. De tafo, vida, saúde e doença são realidades profundas, envoltas em mistério. Diante delas, as ciências não conseguem dizer uma palavra definitiva, mesmo dispondo de complexos aparatos tecnológicos. Não conseguimos realizar nosso desejo de controlar as condições da vida e de eliminar a morte, e isso provoca um medo difuso e insistente, uma insatisfação difícil de esconder.
Mas há um outro medo, socialmente fatal: é o medo de se aproximar do outro, de se tornar próximo de quem é diferente, de se envolver com quem vive uma situação de visível vulnerabilidade. Amar o próximo supõe a disposição de tornar-se frágil nas mãos dele, e isso nos amedronta. Não seria esse o medo que Pedro e os discípulos tentam desesperadamente esconder? Não seria o medo de, encarnando-se no mundo como servos, experimentar a fragilidade e o desprezo?
“Este é o meu filho amado. Escutem o que ele diz!”
Naquela experiência densa e profunda, os discípulos são envolvidos pela luz e, sucessivamente, tragados pela escuridão nebulosa. E é de dentro da nuvem –  símbolo da presença de Deus na difícil e quase interminável travessia da escravidão para a liberdade – que eles ouvem a voz de Deus: “Este é o meu Filho amado. Escutem o que ele diz.” Pedro, Tiago e João – e com eles todos/as os/as que fomos batizados/as em Jesus Cristo – devem levar a sério o que Jesus Cristo diz e faz.
Escutar o que Jesus Cristo diz significa, negativamente: não fugir diante do chamado a encontrar a vida gastando-a pelos outros; não crer nos mitos que nos dizem que somos superiores aos outros; não imaginar que o Reino de Deus cairá puro e perfeito do céu¸ não fingir que amamos quando nossas ações traduzem desprezo. Positivamente, significa: renunciar aos interesses egoístas e dedicar-se totalmente à missão de levar todas as pessoas formarem uma só família, seguindo Jesus no caminho da cruz.
A Campanha da Fraternidade nos lembra que precisamos assimilar a sabedoria e a ética do samaritano, ou seja: cuidar das pessoas que se aproximam do final da vida, proporcionando-lhes conforto e dignidade. Não podemos aceitar passivamente as mortes causadas pelos acidentes, pela pobreza, pela violência e pela falta de um adequado serviço público à saúde. Mas precisamos também de maturidade para ajudar as pessoas no difícil momento de dizer adeus a esta fase da vida.
“Vamos fazer três tendas...”
É intrigante o desejo expresso por Pedro: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.” Menos mal que as tendas eram para Jesus, Moisés e Elias, e não para aqueles três discípulos medrosos e aferrados às suas idéias. Pedro fala sem saber o que diz, somente para ‘quebrar o gelo’ e espantar o medo. As roupas brancas de Jesus falam muito claramente de martírio, e Pedro quer evitar a todo custo esse caminho.
A tenda lembra a habitação da divindade, o templo. Para a transformação e a humanização do mundo, Pedro prefere o caminho do culto e da adoração e descarta a proposta do amor que se faz dom e enfrenta o próprio martírio. Pedro se sente mais atraído pelo caminho do culto e do memorial que pela proposta da doação da vida. Chamando Jesus de mestre, e não de Filho do Homem, Pedro demonstra que sua compreensão sobre Jesus é muito semelhante à de Judas (cf. Mc 14,45).
A cena da transfiguração é muito usada para amenizar as exigências do discipulado, para substituir o sangue pelas flores e a coroa de espinhos pela coroa do sucesso. Sabendo que os discípulos tinham entendido mal ou pouco o que haviam visto, Jesus os proíbe severamente de falar da transfiguração. Esta mesma proibição aparece depois da reabilitação da filha de Jairo (cf. Mc 5,43) e da libertação do surdo-mudo (cf. Mc 7,36). Para Jesus, cultos espetaculares e publicidade escancarada não são caminhos adequados para resgatar a humanidade perdida e garantir a saúde que todos almejamos.
“Deus pôs Abraão à prova...”
Facilmente identificamos a saúde com a ausência de doenças ou o bem-estar individual. A busca do bem-estar ou da boa forma física pessoal acaba justificando muitos excessos. Precisamos vigiar para que as nossas relações interpessoais não se orientem unicamente à conquista da própria saúde, como se “saúde é o que interessa, o resto não tem pressa”. A própria prática religiosa corre o risco de se tornar uma estratégia para colocar os outros e o próprio Deus a serviço dessa finalidade.
Isaac representava a segurança que Abraão necessitava na velhice. Mas é somente quando ele renuncia a tratar o filho como tábua de salvação e o entrega a Deus que o velho Abraão recupera a segurança essencial, aquela que tem base na certeza da bênção de Deus. Abrindo mão de ser proprietário do próprio filho, Abraão se torna bênção para todas as famílias da terra. Quando pensava estar perdendo o filho para sempre , estava resgatando-o definitivamente.
Jesus Cristo, Mestre e Senhor nosso: sustenta-nos enquanto dura a travessia desta vida e acompanha-nos na caminhada rumo à terra livre, ao pleno bem-estar, nosso e de todos os povos. Ajuda-nos a sacrificar nossas frágeis seguranças, impotentes para garantir a verdadeira saúde/salvação. Abre nossos ouvidos, para que escutemos tua boa e exigente notícia e a traduzamos em ações que resgatam a dignididade tantas vezes pisoteada dos doentes, até mesmo em nossas famílias e comunidades.Não permitas que transformemos nossa Igreja numa tenda ou ilha de bem-estar egoísta e, se for o caso, reduz a pó as estruturas que nos dispensam ou impedem de amar e de servir. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A Sagrada Família segundo os Evangelhos (17)

Conclusões
A maioria dos textos evangélicos nos quais aparece a imagem da Sagrada Família se situa nas narrativas da infância de Jesus. Neles, Jesus é uma criança que não fala nem age, com exceção do episódio Jesus no templo. Isso dificulta muito a tarefa de delinear os traços da Sagrada Família no Novo Testamento. Os textos que narram fatos familiares de Jesus adulto são poucos e, em geral, revelam um relacionamento conflitivo.
A Sagrada Família aparece como uma autêntica família judaica, herdeira fiel das esperanças messiânicas que alimentavam a vida dos pobres, guardiã fiel e praticante das orientações religiosas do judaísmo. Ao mesmo tempo, se revela como o gérmen da nova família humana, sustentada e orientada pela irrupção do Reino de Deus como graça que congrega as pessoas e derruba as barreiras.
O Novo Testamento informa também que, por estar radicada em Nazaré, na Galiléia, e por desempenhar trabalhos artesanais, a Sagrada Família carregou sobre si a marca da suspeita e do menosprezo frente às famílias de Jerusalém. A moradia em Nazaré destaca a casa e a inserção da Sagrada Família no seu povo, como numa macro­família. O crescimento de Jesus ocorre nessa interação viva. Ele aprende, dialoga, ensina, se relaciona com seu ambiente, unindo a relação com Deus e a relação com os homens.
Em relação à família, Jesus foi uma espécie de transgressor. Rompeu com ela e afastou-­se da vida normal que consistia em casar, cuidar da família e lutar pela sobrevivência. Vivendo o celibato, transgrediu também a obrigação de casar e gerar filhos, o que era impensável para um rabino. Viveu a partir do sonho do reino de Deus, da ‘casa do Pai’. Interessou­-se profundamente pelas pessoas simples e humildes da Galiléia, identificou­-se com seus problemas e esperanças, optou por ficar ao lado das vítimas.
A vida de Jesus, orientada pelo sonho ou êxtase do reino, pelas coisas do Pai, pela vida das vítimas, está na raiz do conflito com sua família. Seus parentes tiveram dificuldades de acreditar nele e até pensaram que ele havia enlouquecido. O desfecho deste conflito foi a ruptura com a família e uma opção por uma forma de vida itinerante. A comunidade que nasceu de sua pregação também foi muito exigente em relação aos laços familiares.
Este distanciamento de Jesus em relação à sua família, especialmente no período de sua missão pública, não significa que as experiências afetivas e religiosas positivas da família na infância e na juventude não tenham permanecido. Tudo o que ele aprendeu, amou e sonhou em Nazaré aflorou mais tarde na sua pregação: a insistência no valor das coisas pequenas e escondidas, na solidariedade com os vizinhos, no caráter paterno e próximo de Deus. As marcas do seu ambiente familiar foram decisivas e se transformaram em parte viva da sua mensagem. Em sua vida de menino e jovem, Jesus experimentou a bondade e a atenção delicada de Maria e José que, mais tarde, o ajudará a expressar sua experiência de Deus.
No que se refere a José e Maria, podemos dizer com segurança que eles realizaram de modo exemplar a participação na família nova, inaugurada pelo filho Jesus Cristo, em obediência ao Pai. Também eles cumpriram com prontidão a vontade do Pai. A Sagrada Família, marcada pelo ambiente simples e desprezado de Nazaré, foi protagonista modelar na busca e no cumprimento da vontade do Pai.
Jesus ocupa um lugar central na Sagrada Família. Sua presença se irradia sobre Maria e José: eles se comovem, se impressionam e se maravilham diante da novidade; acolhem e recebem seu mistério sem o limitar, embora, por vezes, fiquem atrapalhados e desorientados. Jesus transcende seus próprios pais, e isso os estimula ao crescimento na compreensão do mistério do Reino.
A Sagrada Família que nos é dada a conhecer pelos evangelhos é também o espaço onde a misericórdia e a bondade de Deus encontram acolhida, se fazem carne e se transformam em resposta generosa. É o lugar onde a divindade e a humanidade vivem uma aliança profunda e indissociável, que possibilita à humanidade entrar no dinamismo do reino e ao mistério de Deus se encarnar na história.
A Sagrada Família se revela, enfim, como um espaço de cultivo e amadurecimento humano e religioso: neste ambiente, não só Jesus, mas também José e Maria, progressivamente, se abrem à manifestação e acolhida do plano de Deus e, pela meditação paciente, a compreendem com uma profundidade crescente.
Pe. Itacir Brassiani msf

A Sagrada Família segundo os Evangelhos (16)

João 19,25-27: Mulher, eis aí o teu filho...
O último trecho de João que analisaremos brevemente se localiza no contexto da páscoa do Messias (11,55­-19,42) e, mais proximamente, na manifestação de sua glória na cruz (18,1-19,42), cujo centro é ‘assinatura’ da nova aliança (19,28­-30), ventre no qual é gerada a nova comunidade ou nova família (19,25­-27).
O evangelista registra que, junto da cruz onde Jesus, amando e sendo fiel até o fim, revela sua glória, estavam ‘a mãe de Jesus’, sua irmã e Maria de Magdala (v. 25). É um grupo de três mulheres, três marias, que sugere a ideia de uma comunidade fiel, esposa de Jesus. Na cruz parece que o papel da mãe chega à sua meta. E no mesmo momento da cruz começa o papel de Maria Madalena. Mas lá estava também o discípulo amigo e fiel.
A comunidade da mãe de Jesus (o Israel fiel e verdadeiro) e a comunidade de Maria Madalena (o novo Israel nascido do Espírito) não se opõem, mas são irmãs. E o discípulo amigo representa a comunidade enquanto seus membros são amigos e companheiros de Jesus. Maria é sua mãe porque o Messias nasce e cresce no seio do Israel crente e fiel, que se reconhece na nova comunidade. Por isso, doravante, serão uma nova e única família.
Aqui temos uma família que se abre para acolher a novidade da ação messiânica (livre, libertadora e surpreendente) de Jesus. Uma família que, vivendo a fidelidade à aliança, se renova e acolhe como filhos todos os que seguem Jesus. Jesus mesmo se faz irmão e amigo daqueles que o seguem.
Pe. Itacir Brassiani msf

A Sagrada Família segundo os Evangelhos (16)

João 7,1-13: Os irmãos de Jesus lhe disseram: Tu deves sair daqui...

Antes de acolher e compreender o texto em questão quero me deter num breve texto do capítulo anterior (Jo 6,42), pois ele pode iluminar nossa reflexão sobre Jo 7,1-­13. Quando Jesus se apresenta como ‘pão que desceu do céu’, as autoridades o criticam e questionam: "Esse não é o filho de José? Nós conhecemos o pai e a mãe dele. Como é que ele diz que desceu do céu?" Qual é o problema das autoridades do judaísmo? O que é que provoca escândalo?
A pedra de escândalo é a humanidade concreta de Jesus. E é precisamente nesta carne e neste sangue, recebido de sua família, de sua condição humilde e de sua linhagem que está o Espírito que faz dele a presença ativa de Deus na terra. As autoridades, fixadas na Lei, separam Deus do homem e são incapazes de reconhecer um Deus encarnado, próximo e vizinho. Para eles, a condição familiar e humana de Jesus é um problema.
A perícope de Jo 7,1­-14 está literariamente situada na parte maior do ‘sexto dia’, que apresenta a obra messiânica realizada por Jesus (Jo 2­-19). Mais proximamente, se localiza na terceira seção dessa primeira parte, seção que mostra Jesus chamando à vida em mais uma festa fadada ao fracasso. E isso acontece depois da multiplicação dos pães, da autoapresentação de Jesus como pão da vida e da debandada de muitos discípulos (cf. Jo 6,66).
João nos informa que, por causa dos repetidos enfrentamentos com o judaísmo em geral e com as autoridades do templo em particular, Jesus evita andar pela Judéia e que as autoridades querem matá­-lo (v. 1). Ele prefere andar discretamente pela Galiléia, onde se sente mais à vontade e seguro. O relato diz que "os irmãos de Jesus" (a expressão grega adelphos pode ser traduzida por: parente próximo ou colateral; sua gente; seu pessoal; sua família) pressionavam-no a ‘sair’ da Galiléia e subir para a Judéia e tornar-se famoso. Parece que ‘seu pessoal’ é  gente da Galiléia, judeus de raça, que não crêem em Jesus. Contrastam com a figura da mãe, que representante do Israel que esperava a realização das promessas.
Os parentes propõem que Jesus entre na instituição velha e estéril do judaísmo e atue a partir do estreito horizonte dela. Mas Jesus sabe que o caminho que leva à vida em abundância só pode ser a sua kénosis pessoal e o ‘êxodo’ das malhas do judaísmo, esgotado e incapaz de produzir liberdade e vida. Propõe este caminho aos discípulos, e eles, com todas as dificuldades e incompreensões previsíveis, se dispõem a percorrê­-lo. ‘O pessoal de Jesus’ não pertence ao grupo dos discípulos e nada espera de Jesus, a não ser fama e sucesso, mesmo quando a popularidade de Jesus estava em baixa: fora abandonado por muitos discípulos, desacreditado pelos próprios parentes e perseguido pelas autoridades.
No final do capítulo 7, depois de um discurso empolgado e ousado dentro do templo, no dia mais solene da festa (cf. Jo 7,37­-39), algumas pessoas reconhecem o messianismo e o profetismo de Jesus. Mas levantam objeções porque sabem que ele vem da Galiléia, e isso é mau sinal e desautoriza qualquer pretensão. Lembremo-nos que os fariseus chamam Nicodemos de galileu, atribuindo­lhe com isso uma condição vulgar e desprezível (cf. Jo 7,52).
Com que traços poderemos caracterizar a família de Jesus a partir do texto analisado? É uma família que não consegue compreender e aceitar o messianismo de Jesus. Uma família que pertence ao judaísmo fechado e inflexível e está em função de sua reprodução. Uma família que está em contradição com a mãe que, representando o resto fiel de Israel, é capaz de fazer a passagem para o novo povo, nascido da nova aliança selada no corpo e no sangue de Cristo.
Pe. Itacir Brassiani msf

A Sagrada Família segundo os Evangelhos (15)

João 2,1-12: Jesus desceu com sua Mãe, seus irmãos e seus discípulos...


Comecemos situando o relato no contexto literário. Trata­-se do episódio que abre a grande seção que explicita o caráter da obra do Messias, o grande sexto dia da criação. Em relação ao contexto mais imediato, está situado no desenvolvimento do tema do ‘dia’ do Messias e no ciclo das instituições. É o primeiro ‘sinal’ que Jesus realiza, e o autor quer mostrar que Jesus substitui e supera a antiga Aliança.  Logicamente, este sinal está a serviço da revelação da obra messiânica e nesta perspectiva deve ser entendida. Ù
Voltemos nossa atenção ao relato conhecido como casamento em Caná. Comecemos sublinhando um detalhe: a ‘mãe de Jesus’ (v. 1) não tem nome próprio. Além disso, ela não chama Jesus de ‘filho’ e Jesus não a chama de ‘mãe’. Tudo indica que neste episódio, como em todo o evangelho de João, a mãe de Jesus representa o que há de melhor no povo antiga aliança. A relação de Jesus com ela parece ser de origem, mas não de dependência ou de intimidade. Como figura feminina, a mãe aponta para a origem do Messias, o rebento que nasce do verdadeiro Israel e em quem se cumprirão as promessas.
Para se referir à mãe, Jesus usa um apelativo surpreendente: mulher. ‘Mulher’ é uma expressão que se aplica à esposa ou a uma senhora casada, mas nunca à própria mãe, mas Jesus recorre a esta expressãp com frequência e em situações diversas (cf. Jo 4,21; 19,26; 20,15). Ele está frente a um grupo de discípulos e pertence à Nova Aliança, enquanto sua mãe e sua família pertencem à Antiga Aliança.
A narração quer passar a ideia de que a mãe percebe o esgotamento da Antiga Aliança (falta vinho na hora mais importante) e reconhece em Jesus o Messias, e isso reacende a esperança. Ela não conhece os planos de Jesus, mas afitma que é preciso aceitar o seu programa sem condições e seguir suas indicações. A obra do Messias não se baseia nas antigas instituições, mas num caminho totalmente novo e inédito, e é esse novo caminho que proporciona vida abundante e alegria sem fim.
João termina o relato observando que este foi o "começo dos sinais" e que "seus discípulos creram nele" (v. 11). E registra, como arremate: "Depois disso, Jesus desceu para Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos" (v. 12). É o único episódio em que a mãe, os parentes e os discípulos de Jesus aparecem juntos.
Representando o Israel aberto e fiel, origem de Jesus, a mãe se mostra aberta à sua mensagem e finalmente é incorporada ao povo messiânico. Sua família (seus irmãos), entretanto, não apreciam sua ação e lhe é hostil, pois está apegada ao sistema e a ele acomodada. Por sua vez, os discípulos aderem a Jesus e se mostram dispostos a segui-­lo. Somente eles acompanham Jesus no seu caminho. A mãe e os irmãos parecem pertencer a um passado que, diante da pessoa de Jesus, tomará atitudes contrárias; enquanto que os discípulos, pertencem ao futuro.
Como breve conclusão, podemos dizer que encontramos aqui uma família ligada ao judaísmo e com dificuldades de entender a novidade messiânica de Jesus. Maria (e talvez José) se abre progressivamente ao mistério do reino. A nova família se mostra na comunidade dos discípulos que são convidados com Jesus para as bodas e doravante o acompanham.
Pe. Itacir Brassiani msf

A Sagrada Família segundo os Evangelhos (14)

A Sagrada Família no Evangelho segundo João

O Evangelho segundo João é uma espécie de meditação que procura desenvolver alguns aspectos catequéticos da fé da comunidade, em Jesus Cristo. A narração quer ajudar a alimentar a fé em Jesus Cristo, a fim de que as pessoas tenham vida em abundância. Segundo João, Jesus revela o amor de Deus pelo mundo e realiza a vontade do Pai doando a vida por aqueles que ama. E isso se mostra especialmente através dos sete sinais que visam despertar a fé, a adesão ao caminho de Jesus Cristo. E a meta do caminho é o amadurecimento no amor.
O quarto evangelho insiste que a revelação de Deus em Jesus traz ao mundo um julgamento. Diante de sua luz, a vida das pessoas se esclarece: as que vivem de acordo com sua vontade se aproximam; as que não a vivem se afastam e rejeitam Jesus Cristo. Ao amor manifestado pelo Pai em Jesus Cristo, que amou a humanidade até o fim, quem crê deve responder com o amor fraterno.
Do ponto de vista da estrutura literária, o Evangelho segundo João pode ser dividido em duas partes básicas: o sexto dia, ou a obra do Messias (que vai de 2,1 a 19,42); o primeiro dia da nova criação (20,1­31). Porém, podemos identificar unidades menores: prólogo, ou desígnio do criador (1,1­18); introdução, ou trajetória de João Batista a Jesus (1,19­-51); o Dia do Messias (2,1­-11,54); a nova comunidade humana (13,1-­17,26); a entrega, morte e sepultamento de Jesus (18,1­-19,42); a missão da comunidade de Jesus (21,1-­25).
Levando em consideração este esboço do projeto e da intenção teológica de São João, refletiremos brevemente sobre alguns pequenos textos de João onde há alguma referência à família de Nazaré. Além de alguns versículos mais isolados, deter­me­hei nas perícopes das bodas de Caná (Jo 2,1-­12), das tensões com a família (Jo 7,1­-13) e da crucifixão (Jo 19,25­-27).
Assim, antes de entrarmos propriamente na análise da narrativa, penso que é importante tecer algumas considerações sobre a identificação de Jesus apresentada pelo discípulo Filipe em Jo 1,45: "Encontramos aquele de quem Moisés escreveu na Lei e também os profetas: É Jesus de Nazaré, o filho de José." Filipe identifica e apresenta Jesus basicamente pela relação familiar e pelo lugar de origem. Mas dizendo filho ‘de’ José Filipe parece se referir à tribo, no contexto de Ez 37,15­28: o futuro rei, identificado com Davi, será o único libertador e pastor de todas as tribos.
Além disso, Jesus é apresentado como aquele que é descrito pelos profetas, e sua referência a Nazaré é especial e diz bem mais que sua origem geográfica (cf. Jo 18,5.7; 19,19). A identificação ‘o Nazareno’ resumirá mais tarde suas pretensões messiânicas e, por isso, as razões da prisão. Como já vimos antes, a palavra Nazaré carrega em si o sentido de rebento ou broto de Davi. Porém, a conexão entre Messias e Nazaré parece completamente inaceitável para os contemporâneos de Jesus. Não se poderia esperar um Messias procedente da Galiléia, a região periférica, a população mestiça.
Pe. Itacir Brassiani msf

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

1° Domingo da Quaresma

Simplifiquemos nossos hábitos em vista do bem viver.
(Gn 9,8-15; Sl 24/25; 1Pd 3,18-22; Mc 1,12-15)
Na última quarta-feira, enquando recebíamos um punhado de cinza sobre a cabeça, escutávamos contritos e atentos a interpelação: “Convertam-se e acreditem no Evangelho!” Exatamente nessa ordem: primeiro, converter-se; depois, acreditar no Evangelho. A proposta apresentada e o caminho aberto por Jesus Cristo são portadores de uma novidade tão radical que, para acolhê-la, precisamos mudar nossos esquemas mentais. O período de cinco semanas que hoje iniciamos é um percurso que realiza passo a passo a necessária conversão que nos possibilita acreditar na Boa Notícia da humanidade de Jesus. Calcemos as sandálias, preparemos a mochila e aventuremo-nos nessa peregrinação, recordando que a Campanha da Fraternidade nos convida a desenvolver hábitos de uma vida saudável, na perspectiva do sonho nativo do bem viver.
“O Espírito impeliu Jesus para o deserto.”
O evangelista nos diz que, logo depois do batismo no rio Jordão, quando se descobre filho amado do Pai e servo enviado aos irmãos e irmãs, Jesus é conduzido pelo Espírito ao deserto. Seu batismo assinala claramente um novo começo, mas com seu retiro no deserto esse início parece ser adiado. Na verdade, Jesus se retira do palco e se subtrai aos refletores para aprofundar o sentido da missão que descobriu no batismo. E o faz sem temer a ameaça dos animais selvagens.
Jesus é levado ao confronto consigo mesmo e com as diversas possibilidades e tentativas de viver sua condição de filho amado do Pai. Ele faz a experiência das tentações que acompanham aqueles/as que se empenham no serviço a Deus e ao seu povo. A tentação das soluções fáceis, miraculosas e espetaculares (cf. Mc 8,11). A tentação do legalismo e do casuísmo para beneficiar apenas algumas pessoas (cf. Mc 10,2). A tentação de disputar o poder (cf. Mc 12,15). A tentação de identificar a vontade de Deus com seus próprios medos e vontades (cf. Mc 14,32-38).
“E Jesus ficou no deserto durante 40 dias...”
Os 40 dias de deserto recordam simbolicamente que Jesus foi frequentemente tentado e venceu as tentações guiando-se pelo Espírito. Ele teve que clarear o núcleo do Boa Notícia que deveria anunciar aos pobres. Por isso, o deserto foi um tempo forte de purificação, discernimento e amadurecimento que, de alguma forma, se estendeu por toda a sua vida. O amadurecimento costuma se oferecer na discrição, no silêncio e na margem, longe dos holofotes e da publicidade.
Assim é o tempo quaresmal que hoje iniciamos: um tempo para sair do centro das atenções, para deixar de lado os papéis decorados que encenamos, para vencer a comodidade de ficar na superfície e na periferia de nós mesmos, para penetrar no núcleo mais secreto e vivo do nosso ser. E ali dar nome e enfrentar cada uma das tentações e tentativas que nos levam fugir de nós mesmos e da missão irrenunciável que nos cabe nesse momento irrepetível da nossa história.
“Estabeleço minha aliança com vocês.”
Nesse percurso de 40 dias, sem a ajuda das muitas muletas e subterfúgios aos quais costumamos recorrer, olhando de frente o pó ou o pouco que somos, descobriremos a nossa verdadeira grandeza. Ouviremos então o próprio Deus falando-nos ao coração: “Eu estabeleço minha aliança com você e seus descendentes... E nunca mais haverá dilúvio para devastar a terra...” Deus não se compraz em provocar uma adesão motivada pelo medo. Ele não gosta de conjugar os verbos punir e destruir.
Nesse deserto descobrimos que Deus conjuga os verbos criar, amar e salvar em todos os tempos e pessoas. E sua aliança não se restringe às pessoas consideradas justas e corretas, e nem mesmo aos seres hummanos. “Eu me lembrarei da minha aliança com você e todos os seres vivos...” Os quarenta dias de deserto e quaresma ativam o dinamismo de aliança de tudo com todos e a superação das divisões, hierarquizações e fragmentações que só geram dominação. A beleza do arco-íris não nos deixará esquecer esta promessa de Deus.
“O tempo já se cumpriu e o Reino de Deus está próximo.”
Quem, como Jesus, é capaz de entrar no próprio deserto e vencer as tentações, não teme a doença nem a morte. Assim, ao saber da morte de João Batista, Jesus deixa o deserto, volta à sua terra e veste o manto do profeta perseguido. A mensagem profética que Herodes procurara controlar e calar ecoa na voz inconfundível de Jesus. O evangelho vivo que tentam calar assassinando Luther King, Romero ou Dorothy ressuscitam em mil outras vozes serenas e indomáveis.
O anúncio que Jesus acolheu, aprofundou e  reformulou no seu deserto não comporta ameaças ou imposturas. É pura Boa Notícia. “O tempo de espera se cumpriu e o Reino de Deus está próximo.” Aquilo que era esperança faz-se realidade, aquilo que estava distante agora está inexoravelmente próximo. É o tempo de graça do Senhor, da assinatura de um novo pacto com seus filhos e filhas e com toda sua criação, da justiça vindo como chuva e da paz correndo como rio...
É para isso que vivemos a quaresma, que jejuamos, rezamos e fazemos penitência: para não passarmos ao largo ou relativizarmos a única coisa que vale a pena, o único bem que vale o nosso empenho, a única luta que merece nossa vida: o novo céu, a nova terra, um país sem miséria, uma cultura que enfatiza a relações harmoniosas entre as gerações, entre os grupos sociais, com a natureza e até com a morte, parte insuprimível da vida.
“Convertam-se e acreditem nessa Boa Notícia.”
Em tempos de crises globais – crise alimentar, crise energética e crise financeira – desconfia-se de quem anuncia boas notícias. Ou melhor: duvida-se de que ainda haja boas notícias. Depois de nos ensinarem que seria impossível construir um mundo diferente do atual, regido pela competição predatória, os formadores de opinião e defensores da mercantilização da vida querem agora nos convencer de que a crise não tem saída, ou se resolverá por si mesma e mediante uma operação de salvamento dos bancos.
Quantas são hoje as pessoas, inclusive católicas e lideranças religiosas, que não acreditam em nenhuma mudança ou melhoria nas relações humanas e sociais? Jesus Cristo teria nos enganado? Ou somos nós que esvaziamos sua mensagem, amordaçamos sua Palavra, esterilizamos sua força transformadora, privatizamos sua esperança utópica e convertemos a comunidade cristã num  sistema repressivo?
O tempo quaresmal serve para converter a mente, para acordar a fé adormecida. E aqui trata-se de fé na possibilidade de mudanças possíveis e no realismo evangélico, como nos lembra o octogenário e lúcido Dom Pedro Casaldáliga: “Milhões de pessoas na Igreja sonham com a ‘outra Igreja possível’, a serviço do ‘outro Mundo possível’... Na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de nenhum modo podemos renunciar.”
“Mostra-me, Senhor, os teus caminhos!”
Jesus percorre caminhos que o levam do rio Jordão ao deserto e do deserto à Galiléia. Caminhos que o afastam dos palcos e aproximam da margem. Estradas que levam ao encontro do povo cansado e abatido para anunciar-lhe a Boa Notícia da chegada do Reino de Deus, da renovação da sua aliança no amor e na compaixão. “O Senhor é bondade e retidão. Ele encaminha os pobres conforme o direito, ensina aos pobres seu caminho.”
Eis o rumo que seus discípulos e discípulas precisamos seguir. É apenas um rumo, e não uma estrada bem sinalizada. Os caminhos concretos somos nós que devemos inventar. A partir da conversão de uma mente incapaz de aceitar mudanças e novidades, fechada à esperança de que um outro mundo possa ser engendrado, somos convidados a traçar e percorrer as sendas de uma travessia inadiável: do eu para o nós, da nação para o mundo; de Deus para o ser humano; do ser humano para as demais criaturas...
Senhor! Que a oração seja o ar que oxigena nossa fé. Que ela nos mantenha abertos/as  às tuas promessas. Que o jejum nos ajude a perceber nossos limites e potencialize nossa fome e sede de paz e de justiça. Que a partilha com os mais pobres seja semeadura de novas relações, fecundadas pelo amor e novos estilos de vida. E que nossas celebrações comunitárias nos mantenham numa atitude vigilante e nos sustentem na necessária conversão. Não permitas que o cansaço ou a pressa nos prendam aos velhos hábitos e nos impeçam de caminhar rumo ao bem viver solidário e global. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Quarta-feira de Cinzas

Que a saúde se difunda sobre toda a terra!
(Jl 2,12-18; Sl 50/51; 2Cor 5,20-6,2; Mt 6,1-6.16-18)
O ritmo alegre do carnaval ainda ecoa na nossa mente e balança levemente nosso corpo cansado. E já começamos a ser interpelados/as por uma música diferente, em tom menor: “Tu que vieste para que todos tenham vida, cura teu povo dessa dor em que se encerra; que a fé nos salve e nos dê força nessa lida, e que a saúde se difunda sobre a terra.” A Campanha da Fraternidade faz da quaresma um convite e uma possibilidade. É um convite a olhar responsavelmente para frente e para além dos nossos interesses imediatos, a superar uma exclusiva e doentia preocupação apenas conosco mesmos/as, com nossa boa forma física ou com o que passou. Abre-se o tempo de preparação da Páscoa do Senhor na páscoa da história, e esse tempo nos chama à responsabilidade de lutar para que todo o povo brasileiro, sem distinção de classe, idade ou condição econômica, tenha acesso a bons serviços de saúde.
“Voltai para mim de todo coração!”
A tempo quaresmal é positivamente um tempo de concentração e de busca do essencial. Tantas vezes no correr do ano as coisas urgentes furam a fila e se colocam à frente daquelas que são essenciais. A Quaresma nos convida a voltar a Deus, a vencer a tendência à fragmentação, a verter todas as energias ao único objetivo realmente decisivo: construir relações fraternas e uma sociedade justa, comprometer-se responsavelmente com um estilo de vida simples, soliário e sustentável.
Assim, o essencial da espiritualidade quaresmal não é fazer penitência para reparar os abusos que teriam sido cometidos do revelion ao carnaval, mas exercitar a convergência da mente, do coração e das mãos na intensa e exigente tarefa de refazer as relações humanas, de superar os estreitos horizontes dos interesses mesquinhos e imediatos e de elevar o olhar para o amplo horizonte de um sonho de bem viver, em harmonia com todos os seres, inclusive com as inevitáveis doenças e com a morte.
“Rasgai os vossos corações, não as roupas!”
A palavra forte e direta do profeta Joel proclama a bondade e a compaixão de Deus, desperta das ressacas da vida e chama a superar o velho costume de mudar apenas as aparências. “Rasguem o coração e não as roupas! Voltem para Javé, o Deus de vocês, pois ele é piedade e compaixão, lento para a cólera e cheio de amor...” Nada de trocar apenas as máscaras, de renovar somente o guarda-roupa! Novas roupas seriam capazes de esconder nosso descaso com a dor e o abandono dos irmãos e irmãs?
O profeta Joel lembra a necessidade de mudanças mais reais e radicais. Quando fala em rasgar o coração, ele não pretende centrar a atenção nos sentimentos, mas interferir na raiz das nossas decisões e ações. Ele ensina que os gestos externos de arrependimento e de mudança não são suficientes. A verdadeira mudança se revela nas opções, ações e relações. Palavras de efeito, discursos de ocasião, campanhas que duram algumas semanas podem ser apenas cortinas de fumaça para desviar a atenção.
A tradição das comunidades cristãs privilegiou três ações que expressam a mudança de direção e a convergência das forças próprias do tempo quaresmal: a esmola, a oração e o jejum. Mas Jesus Cristo nos convoca à vigilância e à auto-crítica, pois nem mesmo estas ações estão livres da falsificação e do faz-de-conta: elas podem ser motivadas apenas pela busca de aprovação, estima e reconhecimento. De que serve abseter-se de carne e fazer jejum num dia e, nos outros, mergulhar no consumismo doentio?
“Quando derdes esmola, não mandes tocar trombeta...”
Jesus não despreza a costumeira prática da esmola, mas também não se deixa enganar por ela. O que ele pede é que verifiquemos a motivação e a disposição com as quais a fazemos. Ele levanta a questão do horizonte maior no qual esta prática se insere. “Não mande tocar trombeta na frente... Que a sua esquerda não saiba o que a sua direita faz.” Uma esmola prepocupada com publicidade beneficia mais quem a faz do que quem está em necessidade. Seria como recitar um papel num filme ou novela.
O sentido profundo da esmola é a solidariedade e a partilha com os mais pobres. Antes que dar daquilo que sobra ou não faz falta, trata-se de partilhar aquilo que é fruto da terra e do trabalho da humanidade e, por isso, não é nossa propriedade absoluta. A partilha que se sacramentaliza na doação de bens ou no engajamento pela saúde de todos é um sinal externo do desejo voltar nosso coração inteiramente para Deus e centrar nossa vida naquilo que é essencial e urgente.
“Quando orardes, não sejais como os hipócritas...”
Em todas as religiões a oração goza de um apreço privilegiado como expressão da fé e da comunhão com a divindade, e no judaísmo que Jesus conheceu não era diferente. Até hoje não faltam grupos e pregadores que insistem na necessidade de rezar muito, de multiplicar terços, ladainhas, missas e promessas, como se isso bastasse para estar de bem com Deus. Infelizmente, este tipo de insistência acaba desviando a atenção de algo mais essencial e mais profundo.
No Evangelho de hoje Jesus não insiste na quantidade mas na qualidade e na motivação da oração. E começa criticando a postura das pessoas que rezam como se recitassem um papel, disfarçando o desejo de que os outros percebam que estão rezando. A verdadeira oração não vai de mãos dadas com a busca de publicidade. A audiência dessa oração é feita de um só expectador, de um Deus habituado a reconhecer quem não costuma ou não gosta de aparecer.
A oração é abertura radical a Deus e à sua vontade, é superação dos estreitos limites dos nossos gostos, preferências e necessidades. A oração se caracteriza pelo diálogo íntimo e amigo com Aquele que quer nosso bem e que não descansa enquanto todos os seus filhos e filhas não vivam bem. A oração quaresmal que expressa nossa volta ao essencial precisa ser capaz de apresentar a Deus as dores e os clamores dos doentes e idosos que padecem nas filas e são vistos como peso pelos próprios familiares.
“Quando jejuardes, não fiqueis de rosto triste...”
Depois de passar um tempo um pouco exilado da nossa cultura, um certo tipo jejum voltou a estar na moda e hoje recebe o nome de dieta. Mas quem faz dieta geralmente está muito preocupado/a consigo/a mesmo/a – com a saúde ou com a aparência – e pouco interessado/a nos efeitos ambientais do consumismo predatório. No tempo de Jesus muitas pessoas usavam o jejum, que era um sinal de arrepedimento e mudança, para impressionar os outros e aumentar a influência sobre eles.
Para o cristianismo, o jejum é um recurso pedagógico que possibilita a experiência da vulnerabilidade e das carências humanas das quais normalmente. Assimilamos o mito da satisfação plena, da vida sem fim e do poder que podemos exercer sobre tudo e sobre todos, e assim pretendemos evitar tudo o que lembra carência, fragilidade, limite, doença ou morte. O jejum desmascara essa mentira e nos coloca cara a cara diante da realidade.
Na espiritualidade quaresmal o jejum está a serviço da renovação e da preservação da vida em todas as suas expressões. E essa renovação se expressa na abertura humilde e reverente a Deus, o único absoluto, na consciência da nossa interdependência em relação aos nossos irmãos e irmãs, na relação de interdependência com o Planeta e na partilha dos alimentos que deixamos de consumir. Por isso, o jejum precisa ser acompanhado pelo perfume da alegria estampada em todo o nosso ser.
“Em nome de Cristo, vos suplicamos: reconciliai-vos com Deus!”
Reconciliar-se com Deus significa reconhecê-lo como horizonte maior das nossas opções, como Caminho que, mantendo-nos abertos/as e solidários/as, nos leva ao encontro dos irmãos e irmãs. Reconciliar-se com Deus implica em voltar às nossas próprias raízes e ali encontrar não apenas um ‘eu’, mas também um ‘outro’ e um ‘nós’. Significa ouvir os clamores e perceber as dores de milhares de doentes e idosos que mendigam atendimento e saúde, um direito que lhes é assegurado constitucionalmente.
Espírito Criador, tu sopras chamando à vida e sustentanto todos os seres, e falas nas palavras aparentemente ininteligíveis dos clamores dos idosos e doentes: penetra nossa mente e guia nossos passos durante este tempo quaresmal, ensinando-nos a cuidar da vida, e não apenas da nossa. Ajuda-nos a transformar a esmola em solidariedade, o jejum um ato de responsabilidade ambiental, a oração em peregrinação para além dos estreitos limites do bem-estar da nossa geração.  E que a tua luz faça vir à luz nossa verdadeira dignidade, escondida e amordaçada por tantas máscaras. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

Há 172 anos nascia o Pe. João Berthier


O século XVIII havia chegado ao seu fim com a fronte curvada diante o idolo ou ‘deusa Razão’ e os pés atolados no sangue dos padres e outras pessoas de bem. Desde o amanhecer do século XIX, exteriormente menos agitado mas interiormente tiranizado pelas mesmas paixões, 40 anos haviam se passado, alternando tempos de paz e tempos de luta, mas sob o sopro abrasador e ameaçador da independência, da insubmissão e da incredulidade.
Depois da queda de Napoleão a França, filha predileta da Igreja, havia visto sucederem-se no trono de São Luís o rei Luis XVIII (1814-1824), Carlos X (1824-1830) e, enfim, Luis Felipe, Duque de Orleães que, sendo oficial geral do reino, foi proclamado rei dos franceses em 1830. Era a chamada ‘monarquia juliana’, caracterizada por uma atitude ao mesmo tempo bondosa e hostil para com a Igreja, e que se estenderia por 18 anos. É sob este reino que nasceria João Berthier.
Era o ano de 1840, dominado pela luta pela liberdade de ensino, sustentada com zelo e eloquência por Dupanloup, Veuillot e Montalembert; tempo em que, noutro cenário, brilhava com todo seu esplendor o humilde João Maria Vianney; o mesmo ano em que, numa pequena vila da Bretanha, chamada S. Servan, próxima de S. Malo, um pobre vigário (Pe. Lepailleur) lançava os fundamentos da Congregação das Pequenas Irmãs dos Pobres, que hoje se espalham por todo o mundo; ano em que, em Neuville, o Pe. Libermann fundava os Missionários do Sagrado Coração de Maria; enfim, o ano em que, longe de sua pátria, um filho da França, o Beato Gabriel Perboyre, derramava seu sangue pela causa de Cristo...
Foi neste ano imortalizado por tantos fatos gloriosos que nasceu o Pe. João Berthier, aos 24 de fevereiro de 1840, em Châtonnay, pequena vila de 1800 habitantes, no departamento de Isère, França. Seus pais se chamavam Pedro Berthier, nascido aos 13 de fevereiro de 1812, e Maria Putoud, nascida aos 24 de março de 1820. Por ocasião do casamento Pedro tinha 27 anos e um caráter ardente, ativo e parcimonioso. Maria, oito anos mais jovem que ele, se caracterizava pela ternura e pela compaixão, e levou como dote de casamento uma piedade sincera e convicta que, unida à fé robusta de Pedro, faria do novo lar um modelo para os lares cristãos: uma mistura de força e de ternura, de atividade e de serenidade. Amando-se sinceramente um ao outro, Pedro e Maria dirigiam a Deus sua afeição, dando a ele o primeiro e o mais importante lugar na sua vida. (Júlio Maria de Lombaerde, Un Apôtre de nos jours, 1910, p. 23-24)

“O nome dele é João!”

Aquele 24 de fevereiro de 1840, um típico dia de inverno da região de Isère, conhecida como região das ‘terras frias’, foi especial para Pedro e Maria, que haviam celebrado o casamento há pouco mais de 10 meses: às 21h00 vinha à luz o amado e esperado filho primogênito, a quem dariam o nome de João Pedro.
Pedro Berthier era então um jovem ardoroso, ativo e parcimonioso que apenas havia completado 28 anos. Maria Putoud se caracterizava pela ternura e pour uma piedade firme e sincera, e alcançaria 20 anos no dia 24 de março. Assim, o pequeno João Pedro vinha ao mundo num ambiente no qual a força abraçava a ternura e a serenidade se unia ao sentido de urgência.
Na primeira hora da manhã do dia seguinte, acompanhado pelo cunhado Antônio Putoud e pelo vizinho José Rajon,  o jovem Pedro Berthier foi até oficial de registro civil de Châtonnay para comunicar o fato. O oficial Lucien Jocteur Monrozier registrou que, por vontade do pai, o recém-nascido se chamaria João Pedro.
De fato, aquele menino herdaria de São João evangelista a ternura, a bondade envolvente, a caridade transbordante e uma atraente doçura. E de São Pedro apóstolo aprenderia o dinamismo e o entusiasmo para fazer a missão, a fé indomável e uma capacidade incrível de resistir às adversidades. Amor e zelo serão o pano de fundo de toda sua história. Como o discípulo amado, um dia ele tomaria Maria como sua mãe e viveria por ela e com ela, gravando na alma suas palavras: “Meu filho, comunique isso a todo o meu povo!” (cf. De Lombaerde, Un apôtre de nos jours, p. 26).
No dia 26, apenas dois dias depois do seu nascimento, o menino João Pedro foi acolhido pela comunidade paroquial de Châtonnay e batizado pelo Pe. Champon, o qual anotou no livro: “Aos 26 de fevereiro de 1840, batizei João Batista Berthier, filho legítimo de Pedro e de Maria Putoud. Os padrinhos foram João Motèere e Maria Berthier-Motère.”
Como pais cristãos que eram, Pedro e Maria se empenharam desde cedo para que o pequeno João Pedro e os filhos que nasceriam mais tarde recebessem o batismo e fossem educados na fé católica. Mais tarde João Berthier escreveria a propósito da missão educadora dos pais: “Para fazer um bom pão é necessário ter um bom fermento. O futuro das famílias e da própria sociedade depende do cuidado que os pais dispensam aos filhos.” E, no seu típico estilo que une ortodoxia e imagens curiosas, acrescenta: “Um filho batizado é um filho de Deus e um herdeiro do céu, ao qual seus pais devem conduzi-lo... A galinha não abandona seus pintinhos. O tigre esquece sua ferocidade diante dos filhotes. Mais que isso deve ser o amor dos pais pelos filhos.” (Le prêtre, vol. I, 7ª ed., p. 211; 213).
No trajeto que vai do ofício civil à igreja paroquial, o filho de Pedro e de Maria perdeu Pedro e recebeu Batista como segundo nome. Porém, esse segundo nome não aparecerá em nenhum ato oficial envolvendo João Berthier e jamais será empregado por ele mesmo. Ele assinará sempre e apenas João Berthier, e é justo e correto que assim o chamemos. Como o velho Zacarias dirrimindo dúvidas, proclamemos: “O nome dele é João” (Lc 1,63).
Fazendo memória do nascimento e batismo do Pe. João Berthier louvemos a Deus pelo incansável missionário que ele se tornou e pelo legado catequético e misssionário que nos deixou. Não sejamos omissos frente à missão de avivar e entregar à nossa geração o mandato missionário de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, mergulhemos no mistério de amor e providência que envolve nosso próprio nascimento e nas fontes do nosso batismo, extraindo deles a força fermentadora do Evangelho. Entrando no 170° ano do nascimento e do batismo do nosso Fundador saibamos ser criativos e não permitamos que este seja um tempo vazio e estéril.
Pe. Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Feliz quem cuida dos fracos: no dia da desgraça o senhor o libertará. Velará sobre ele o Senhor, e o fará viver feliz sobre a terra.” (Sl 40,2-3)
Ação de graças pelos 25 anos de ministério do
Pe. Itacir Brassiani msf
Anchieta, 1987 – 21 de fevereiro – Roma, 2012

Jesus, filho de Maria e de José,
morador anônimo de Nazaré, jovem galileu,
amigo dos pobres e pecadores, irmão da humanidade:
um dia me chamaste para caminhar contigo.

Dei os primeiros passos neste caminho com meus pais e irmãos,
na Comunidade Nossa Senhora do Caravágio
e, mais tarde, com os jovens da paróquia Santa Lúcia.

Foi quando olhaste em meus olhos e me chamaste pelo nome
para uma dedicação pessoal a ti e ao teu povo
como Missionário da sagrada Família.
Então fui acompanhado por outros irmãos
e educado segundo o teu coração.

O profeta pede para não ter saudades do passado,
porque o teu e nosso Pai está sempre fazendo coisas novas.
Mas, ao celebrar 25 anos de ministério pastoral,
não posso deixar de recordar os sinais
do teu amor belo e exigente,
em tantas pessoas que, de mil modos,
me levaram ao encontro contigo.

Descobri que não me chamas apenas
a ser um pastor à frente do rebanho,
mas um pastor entre muitos outros pastores/as
que dedicam o melhor de si mesmos /as
para que teu povo não viva cansado e abatido,
como ovelhas sem pastor.

Hoje, consciente dos meus inúmeros limites e faltas,
sinto que me dás teu perdão e me convidas a levantar,
juntar minhas coisas e seguir em frente.
Foste tu que me ungistes
e imprimistes em mim a marca do serviço.

Por isso, te peço confiante:
não me deixes jamais caminhar solitário!
E, repassando tantos e belos momentos que me concedeste,
proclamo, com o salmista:
“Seja bendito o Deus dos pequenos,
desde agora e para sempre!
Amém! Amém!”

Pe. Itacir Brassiani msf