quarta-feira, 30 de maio de 2012

Santissima Trindade


A Comunhão está inscrita no coração de todas as coisas.
(Dt 4,32-34.39-40; Sl 32/33; Rm 8,14-17; Mt 28,16-20)

A festa de hoje nos convida a celebrar o mistério amoroso do Deus no qual cremos. Como pessoas de fé alimentamos um pretensioso desejo de conhecer Deus e falar sobre ele. Pretensão ou ingenuidade? Deus está assim claramente à disposição da nossa ânsia de conhecer, dominar e manipular?  Anselm Gruen nos adverte que “muitos falam de Deus como se soubessem de tudo. Mas estes conversam apenas sobre conceitos. Não é um Deus que os toque por inteiro, que tenha sido experimentado por eles. Muitas vezes esse falar objetivo de Deus é até mesmo uma defesa contra a verdadeira experiência de Deus". Para falar de Deus corretamente é preciso falar a partir da experiência, começando e terminando com o louvor reverente, humilde e agradecido: Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre. Amém!
“É ele o nosso auxílio e onosso escudo.”
A teóloga Dorothée Sölle escreveu, em tom confidencial e provocativo: “Falar de Deus, é isso que eu quero e onde sempre fracasso. É isso que estou tentando fazer há muitos anos na língua das mulheres, na língua dos injustiçados e dos sofridos, na língua da minha tradição que eu amo e que inicia em Isaías e não termina com a Idade Média. E, quase sempre, dá errado esse meu falar de Deus.” Deus é sempre maior que nossas palavras, experiências e reflexões. Ele não cabe dentro dos nossos discursos.
Deus é um dos arquétipos mais fortes e influentes da vida humana. Os arquétipos são imagens e valores que mexem com o ser humano em sua profundidade: ordenam ou confundem, escravizam ou libertam. Em geral, vemos a Deus como vemos a nós mesmos. Quando nossa imagem de Deus está doente ou deformada acabamos deformando-nos e adoecendo. Quando desconfiamos muito de nós mesmos e vivemos sempre com a impressão de estarmos errados, acabamos imaginando um Deus observador e desconfiado, sempre pronto a pedir provas e julgar o ser humano.
Os testemunhos escritos pelo povo de Israel nos revelam uma permanente tensão entre, por um lado, o desejo de objetivar Deus em fórmulas, ritos, leis, imagens e lugares e, por outro, a reserva diante de um Deus que não se deixa apreender e habita nos céus, que se mostra em ações concretas mas transcende a tudo. Entretanto, em sua essência, Deus se revela como auxílio bondoso e libertador, pai dos pobres e indefesos tipificados nos estrangeiros, nos órfãos e nas viúvas.
“senhor, esteja sobre nós a tua graça, do modo como em ti esperamos.”
Falar corretamente de Deus significa falar corretamente do ser humano, ver a pessoa humana na luz certa e verdadeira. Por isso precisamos ter muito cuidado e pudor em nossos discursos sobre Deus. E a festa da Santíssima Trindade quer sublinhar substancialmente que a imagem correta de Deus não é a de um seujeito solitário, absoluto, onipotente e onisciente, mas uma imagem que lembra comunhão no amor, convergência no ser-para-os-outros, identificação na abertura e na acolhida.
Deus é o arquétipo da perfeita comunhão, uma comunhão na qual cada um recebe tudo do outro e se faz dom radical para o outro: o Pai entrega tudo ao Filho exceto sua paternidade, e se entrega inteiramente no Espírito como fonte de vida às suas criaturas; o Filho dá tudo ao Pai e se entrega a nós no Espírito Santo, no mesmo espírito de doação; o Espírito Santo é puro dom, força e dinamismo que sustenta o dom recíproco entre o Pai e o Filho e a entrega de ambos na paixão pelo mundo.
Esta comunhão na acolhida e na doação amorosa de si é também a vocação dos filhos e filhas de Deus, de todas as criaturas. Nossa vocação primordial não é ser fragmento ou indivíduo solitário, vencedor que triunfa sobre uma multidão de derrotados e vencidos. Somos visceralmente constituídos para a comunhão, para uma comunhão permanente e total com nossos semelhantes e com todas as criaturas. Não a competição mas a comunhão é a realidade original e a vocação fundamental das criaturas.
“Ele ama o direito e a justiça, da sua bondade a terra est cheia.”
Nossa primeira atitude diante do Mistério de comunhão que é a essência de Deus e das criaturas, antes do espanto reflexivo, é a adoração agradecida. “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém!” A experiência de um amor que nos precede e ultrapassa, nos envolve e penetra, nos abre e plenifica, nos diminui e exalta, nos conhece e escolhe,  que enche os céus e a terra, é, antes de tudo, um irresistível convite à oração.
Adoração é a atitude própria de quem se descobre pequeno/a e impotente, ao mesmo, destinatário/a de um amor imerecido que o/a faz capaz, digno/a e grande. Assim, quando os discípulos estão diante de Jesus ressuscitado, ajoelham-se reverentes e obedientes. Esse Mistério de Comunhão e de Bondade que afirma nossa própria e indestrutível dignidade, nos põe de joelhos, eleva nossas mães, abre nossos lábios e nos faz exclamar “Glória!”
Glorificar significa honrar e fazer brilhar. E nós glorificamos a Deus porque ele mesmo nos glorifica, dando-nos o título de filhos e filhas honrados/as, conferindo-nos um explendor que nos assemelha a ele. Glorificamos a Deus quando desfazemos as imagens ameaçadoras que o identificam com um ditador onipotente, um juiz implacável, um doutor onisciente e um ser sem coração e proclamamos com a boca e com a vida sua misericórdia, sua compaixão e seu amor pela justiça e pelo direito.
“Ide, pois, fazer discípulos entre todas as nações...”
Já nos primeiros séculos do cristianismo, Santo Irineu intuía e ensinava: “A glória de Deus é o ser humano vivo e a vida do ser humano é a visão de Deus.” Uma correta visão de Deus é semente de vida, e uma visão distorcidade de Deus é veneno mortal, para nós mesmos e para os outros. Em outras palavras, a experiência mística do amor de Deus nos envolve necessariamente na missão de amar e de promover a vida plena das criaturas de Deus.
Iluminados e regenerados pelo Espírito Santo, os discípulos descobrem-se chamados e enviados: “Vão e façam com que  todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês.” É uma missão a todas as nações, que desconhece fronteiras e muros que dividem. É também uma missão inadiável e em rota de colisão com as prioridades impostas pelos impérios. É uma missão centrada na prática do amor.
A comunhão é a origem e, ao mesmo tempo, a meta da missão. O batismo que se segue ao ensino é a assinatura de uma nova lealdade, não mais aos doutores da lei e ao imperador e seus acólitos, mas ao Deuns Uno e Trino, à Divina Comunhão, da qual a Eucaristia é sacramento e celebração.  Essa lealdade ao Arquétipo de Comunhão presente em nós como vocação é tudo o que Jesus ensinou e ordenou aos discípulos: o mandamento do amor.
 “E, se somos filhos, somos também herdeiros...”
Somos filhos e filhas do universo, irmãos e irmãs devedores às estrelas, à luz, ao ar e à terra, pois todos esses elementos habitam e cooperam em nós. É mais ou menos isso que Paulo lembra quando diz que somos filhos e herdeiros de Deus em Jesus Cristo. Somos filhos e filhas da comunhão que coopera em todas as coisas, herdeiros de uma comunhão a ser resgatada e potencializada. “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus.”
Quem é filho/a de Deus e tem a comunhão no seu DNA descobre-se liberto/a da necessidade escravizadora de ser o/a primeiro/a e o/a maior, do medo que leva a dominar e escravizar os outros. A pessoa que é guiada pelo Espírito de Deus e se descobre filha que recebeu tudo dos outros, adquire consciência de que traz estampada no seu rosto a imagem da Comunhão Trinitária e de que pertence a uma famíla cujas fronteiras desconhece.
Deus amável, mistério de comunhão sem limites, regaço de onde partimos e para onde desejamos retornar: envia teu Espírito para que ele grite em nós, nos ensine a anuncar que és pai e mãe, nos ajude a proclamar que todas as criaturas são nossas irmãs. Abre, Amor paterno, materno e fraterno, o nosso ser profundo à ação do teu Espírito de comunhão, a fim de que ele nos transforme em pessoas livres e solidárias, agentes da liberdade no mundo, anunciadoras e criadoras fecundas da comunhão que associa todas as criaturas e faz  brilhar nelas o teu insondável mistério de comunhão. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

Festa da visitação de Nossa Senhora


Que alegria receber em minha casa a Mãe do meu Senhor!
(Sof 3,14-18; Is 12,2-6; Lc 1,39-56)
Maria é, antes de tudo e sempre, discípula, aprendiz, servidora, mãe e mestra no caminho do seguimento de Jesus Cristo e na aventura da resposta a Deus. No último dia deste mês dedicado à sua memória temos a oportunidade de contemplar sua visita a Isabel e acolher as lições que este gesto nos propõe. Esta visita de Nossa Senhora sublinha um aspecto frequentemente lembrado pelos evangelhos: através de personagens concretos, Deus visita e liberta seu povo. No cântico que elevou quando, após o nascimento de João Batista, seus lábios se abriram, Zacarias proclama: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu seu povo!” (Lc 1,68). Depois de testemunhar a ação de Jesus em benefício de um filho e uma filha de pais pagãos, o povo glorifica a Deus dizendo: “Um grande profeta apareceu entre nós, e Deus veio visitar o seu povo” (Lc 7,16).
“Javé está no meio de vocês!”
São simplesmente comoventes as palavras do profeta Sofonias. Num contexto de ameaça de dominação externa, de sedução exercida pelo poder e pela riqueza sobre os líderes oficiais e de profunda divisão interna do povo de Israel, falando em nome de Deus Sofonias joga todas as cartas no protagonismo renovador de um pequeno “resto de gente” pobre e fiel a Javé. Esta é uma regra fundamental da gramática de Deus: ele sempre fala e age através das pessoas e grupos mais humildes.
É a este pequeno resto, atordoado pela política dos grandes e ameaçado pela expectativa de um “dia de vingança de Deus”, que o profeta se dirige: “Grite de contentamento!... Fique alegre e exulte de todo o coração! Javé está no meio de você! Não tenha medo, Sião! Não se acovarde! Por causa de você, ele está contente e alegre e renova o seu amor por você! Está dançando de alegria por sua causa, como em dias de festa!” Podemos imaginar palavras mais alentadoras?
Os sinais de que Deus está presente no meio de nós não são evidentes nem potentosos, não se impõem por si mesmos. O que o profeta faz é um convite a olhar mais longe e mais fundo; a perceber as grandes coisas que estão sendo gestadas nos pequenos sinais; a levantar o manto do medo que cobre os pobres; a superar a imagem de um Deus punidor ou indiferente à sorte dos sofredores; a reconhecer a ação libertadora de Deus que está em curso mediante as ações de pessoas humanas como Maria.
 “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor venha me visitar?”
As visitas são momentos cheios de colorido e de graça que rompem com o – às vezes! – cinzento e monótono cotidiano. E são mais significativas ainda quando ocorrem de forma inesperada e gratuita. “Você aqui?.. Que alegre surpresa!...” Visitas são oportunidades ímpares para recordar o passado, compartilhar o presente, traçar rumos futuros, reforçar laços e celebrar alianças. Por isso, no final de cada visita, repetimos com sincero desejo o refrão: “Vai com Deus! Volte sempre!”
Hoje contemplemos Maria percorrendo apressada a estrada que leva à casa de Isabel. “Como são belos teus pés, ó Maria: descendo os montes, paz anuncias!” Ela entra na casa sem bater e, quando saúda Isabel, seu corpo estremece e até João participa a seu modo desta alegria. É uma alegria que brota do reconhecimento de Maria como a “Arca da Aliança”, como a mulher que traz no seu corpo Aquele que é em pessoa e ação a visita de Deus à humanidade. “É bendito o fruto do seu ventre!...”
Numa visita, a alegria não é privilégio de quem acolhe. Também a pessoa que é acolhida tem sua quota de satisfação. Maria ouve dos lábios de Isabel o elogio que ressoa até hoje no mundo inteiro: “Você é bendita entre as mulheres!... Bem-aventurada aquela que acreditou, porque vai acontecer o que o Senhor lhe prometeu”. E a alegria é tanta que a bela e discreta Maria irrompe num cântico no qual ressoam as mais belas utopias dos pobres de Javé.
“Ele olhou para nossa humilhação...”
Visitas inesperadas provocam surpresa e alegria, mas também rebuliço e mudança. A visita de Deus, possibilitada e realizada na vida de Maria de Nazaré e tantas outras marias, não é coisa superficial e passageira. De acordo com o próprio hino cantado por ela ao ritmo do coração, onde e quando Deus chega começa um processo de reversão no qual o que parecia impossível se torna realidade: o deserto se transfigura em jardim, a estirilidade é transformada em fertilidade...
Maria descobre em sua própria história e anuncia aos quatro ventos que Deus não dá as costas à humilhação dos seus filhos e filhas e age derrubando os poderosos e orgulhosos e promovendo e empoderando os pobres. Vendo a fome de muitos, acolhe-os na mesa preparada para todos e coloca os ricos na fila de espera. Os que normalmente são os últimos da fila passam a ocupar os primeiros lugares, e os primeiros são convidados a esperar um pouco.
Na verdade, em Jesus Cristo, Deus age mostrando que o mundo não é uma casa que nos pertence com exclusividade e na qual ele é uma simples visita. Ele é Senhor desta casa, e sua visita representa a retomada dos seus direitos de senhor e o restabelecimento das normas originais, ou seja: que os ‘últimos’ sejam tratados com absoluta prioridade. De acordo com Maria, Jesus Cristo é uma visita que provoca mudanças profundas e que devem durar para sempre. E põe mudança nisso!
 “Lembrando-se de sua misericórdia...”
Isabel vivia escondida e resignada, destilando o amargo sabor de uma esterilidade interpretada como castigo. A gravidez inesperada – presente consolador numa idade já avançada – ressuscitara sua alegria e sua jovialidade, mas a visita gratuita e surpreendente de Maria faz com que ela descubra com júbilo que Deus nunca esquece da misericórdia que prometeu aos nossos pais. De fato, seu amor se estende de geração em geração sobre aqueles/as que o temem.
As boas visitas frequentemente produzem estes pequenos milagres. Na conversa que corre solta a gente se dá conta de que nem tudo é tão pesado e que, como dizia Luís Carlos Borges, vergado sob o peso da cegueira e da velhice, não há um só dia da vida em que não experimentamos o paraíso, mesmo que por um breve instante. Visitas são como o sol que nasce vitorioso e animador depois de uma noite escura e nebulosa, como a chuva que vem quando pensávamos não mais existir...
A visita de Maria faz com que Isabel lembre que Deus não se esquece de nós. Ele tem um rosto materno e feminino, com tantas faces e tantos nomes: das dores e dos prazeres; da vitória e dos aflitos; do socorro perpétuo e dos desvalidos; da boa viagem e do bom parto; da reconciliação e das graças; negra e indígena, branca e asiática... Maria da Visitação e de todas as manifestações nos lembra que Deus, como uma mãe, não esquece dos filhos que gerou.
 “A criança saltou de alegria no meu ventre...”
Assim como na visita, no cântico de Maria ressoa o clamor e a esperança dos pequenos. Uma mudança misteriosa está em curso e é levada adiante por visitadores/as que, como Maria, acreditam na Palavra de Deus e ajudam-na a fazer-se carne. Como descrever, por exemplo, a alegria e os frutos de vida produzidos pela humilde e discreta visita mensal das milhares de líderes da Pastoral da Criança às famílias pobres deste imenso país?
Alegremo-nos com Isabel e, com João Batista, saltemos de alegria no ventre da história, pois o Santo de Israel é grande em nosso meio. Sejamos dóceis ao Espírito Santo, a fim de que possamos conceber e gerar vida e amor ao nosso redor. Tenhamos livres os pés, a fim de vencermos as distâncias que nos separam. Deixemos de ser escravos/as da agenda e possibilitemos visitas que, por mais inúteis que pareçam, são sempre portadoras de uma presença que nada pode pagar, nem apagar.
Deus peregrino, visita esperada, força feminina portadora de vida e graça: entra em nossa casa, senta ao redor do fogo, entra na roda do chimarrão, ocupa teu lugar na mesa decorada com a amizade e farta da santa partilha. Tua chegada nos faz recordar os muitos sinais de misericórdia que espalhaste em nossa vida. Queremos renovar a aliança contigo, pois, nas noites escuras e nos becos sem saída,  és nossa força e nosso canto. Em Jesus e sua mãe nos visitas e vens para ficar, selando uma Aliança nova, terna e eterna. Chegas pedindo hospedagem e acabas senhor do nosso destino. Como à mulher da Samaria, começas pedindo água e espaço. Como no episódio de Emaús, aceitas nosso convite e te revelas no partir ao pão. Como no Apocalipse, nos asseguras. “Sim, eu venho em breve!”  Seja envindo!
Pe. Itacir Brassiani msf

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Kalimantan: impressões, emoções e reflexões (4)


Palangka Raya
Igreja catedral de Palangka Raya

Num contexto de globalização cultural no qual as particularidades e identidades são trituradas e misturadas num grande liquidificador e, depois, renascem com traços de fundamentalismo e xenofobia, é surpreendentemente evangélico o que vem acontecendo na diocese de Palangkaraia: na festa de natal, dois ônibus lotados de líderes mussulmanos estaciona diante da residência episcopal para, em nome dos mussulmanos do local, saudar a minoria cristã; e, nas festas islâmicas, a modesta comunidade cristã, envia alguns veículos com seu bispo e suas principais lideranças para saudar a comunidade islâmica.
Igreja catedral de Palangka RayaQuem nos relata estes fatos é Dom Aloísio Sutrisnaatmaka msf, bispo da diocese de Palangkaraia. Ordenado bispo da diocese em 2001, Dom Sutrisna – como é chamado entre os conhecidos – tem 59 anos e está se recuperando de uma grave complicação hepática (pedras no pâncreas), que o levou aos hospitais de Cingapura, afastou-o temporariamente das atividades pastorais e deixou-o com com 57 quilos. Sua recuperação foi lenta e difícil e é cponsiderada pelos colegas praticamente um milagre.

No ano 2000 o então Pe. Aloísio fez uma breve visita à província do Brasil Meridional, e ainda recorda com alegria a oportunidade de conhecer nossos confrades em Goiânia, Ipameri, Passo Fundo, Santo Ângelo, Porto Alegre e Rio de janeiro. E diz que o que mais o impressionou nas comunidades brasileiras que conheceu foi a vivacidade das liturgias, com seus cantos animados, e a espontânea fraternidade do povo. Sente que o povo indonesiado, mais afeito ao recolhimento e à meditação, pode aprender do jeito de ser cristão no Brasil.
A diocese de Palangkaraia tem 151.000 km² de extensão (igual ao estado do Ceará!) e aproximadamente 2 milhões de habitantes, assim distribuídos: 50% são muçulmanos; 20% são cristãos evangélicos; 15% cultuam religiões tribais; 3% são católicos; 12 % pertencem a outras religiões. Os pouco mais de 61.000 católicos estão distribuídos em 21 paróquias, 5 das quais foram criadas nos últimos 10 anos, e contam com a presença e o trabalho de 43 padres (diocesanos e religiosos de diversas congregações) e 110 irmãs religiosas (pertencentes a 11 diferentes congregações).
Dom Sutrisnaatmaka diante do prédio da radio
da diocese (com Pe. Santiago e o diretor da radio)
Segundo Dom Sutrisna, os principais desafios que a diocese quer enfrentar são: desenvolver nos católicos uma fé mais profunda, que dê suporte à defesa da dignidade humana, ao cuidado com o meio ambiente e à inculturação; minorar a situação de pobreza da maioria (80%!) do povo, a maior parte do qual é seringueiro; enfrentar o baixo nível da educação, resultado de um calendário de 2 a 3 horas de aula em 3 a 4 dias por semana; superar as péssimas condições de saúde do povo, vitimado por doenças crônicas e endêmicas, como diarréia e malária. Para enfrentar este último desafio, a diocese está construindo um hospital.
Santiago, Dom Sutrisna e Itacir diante da estação de rádio da diocese
Depois de quase 10 anos de presença na diocese, Dom Sutrisna enumera alguns avanços que retém significativos: a construção de um Seminário Menor, com o objetivo de acolher os vocacionados da etnia dayak, majoritária na região, e que conta hoje com 13 seminaristas; a criação de um Insitituto Superior para a formação de catequistas e evangelizadores, que existe desde 2002; a construção da casa para encontros e convivência do clero diocesano; a manutenção de uma escola católica diocesana, que oferece cursos nos níveis elementar, médio e superior, cuja maior parte dos alunos (80%) é muçulmana.
Os Missionários da Sagrada Família estão presentes na região da diocese desde 1940, e por várias décadas foram a única presença de clero. Segundo o bispo, os bravos MSF vindos da Holanda, da Alemanha e da Polônia deixaram marcas profundas na vida do povo católico. Hoje, a diocese conta com a presença e o trabalho de 14 MSF, enviados pelas províncias de Java e de Kalimantan.
Segundo o bispo, aproximadamente 90% das paróquias da diocese têm a Pastoral da Família organizada e funcionando. Isso revela que nossos confrades, sob a coordenação e animação de Dom Sutrisna, levam a sério esta mediação prioritária do nosso carisma. A Pastoral Vocacional também recebe uma boa atenção, não obstante a falta de disciplina e de hábito de estudo dos vocacionados admitidos no Seminário Menor. Mas a formação existe para ajudar na superação destas lacunas.

domingo, 27 de maio de 2012

Vem, Espírito Santo! (7)



Invocações ao Espírito Santo

Espírito Santo,
·      Tu, que és a ebulição das águas no início da criação, dá ao universo o dinamismo que o faz faz crescer e chegar à plenitude do seu desenvolvimento.
·      Tu, que deste a Abraão a coragem de partir rumo a uma terra desconhecida, faz de cada um dos nossos dias uma nova partida rumo ao Reino de Deus.
·      Tu, que conduziste Moisés e seu povo através do deserto, sê a Nuvem luminosa que ilumina nossa peregrinação nesta terra.

Espírito Santo,
·      Tu, que destes a fé e a audácia a Davi frente ao gigante Golias, dá-nos as armas espirituais para vencer as forças do mal.
·      Tu, que destes Sabedoria e inteligência ao rei Salomão, faz de nós pedras vivas do novo Templo espiritual de Jesus Cristo.
·      Tu, que interpelaste os profetas a defender o estrangeiro, a viúva e o órfão, dá-nos a coragem de lutar contra toda forma de injustiça social.
·      Tu que, apesar das derrotas e deportações, mantiveste a esperança dos exilados, sê a esperança de todos aqueles/as que devem deixar sua casa e sua pátria.

Espírito Santo,
·      Tu, que enviaste João Batista a preparar os caminhos do Senhor, faz de nós testemunhas que abram os corações e mentes à vinda do Senhor.
·      Tu, que cobriste a Virgem Maria com tua Sombra para que ela concebesse o Salvador do mundo, envolve-nos com tua Presença, a fim de que possamos encarnar o Evangelho.
·      Tu, que conduziste Jesus ao deserto para enfrentar o Adversário, ensina-nos, pela oração e pelo jejum, a vencer as tentações do Maligno.

Espírito Santo,
·      Tu, que empurravas Jesus ao silêncio para encontrar o Pai, sê a fonte e o dinamismo do nosso diálogo filial.
·      Tu que, na montanha da transfiguração, abriste os olhos dos apóstolos, sê a Nuvem luminosa que ilumina e fecunda o silêncio das nossas orações.
·      Tu, que inspiraste o apóstolo Pedro a confessar sua fé no Cristo Senhor, dá-nos a inteligência do coração para reconhecer em Jesus o Verbo de Deus.

Espírito Santo,
·      Tu, que és o Consolador prometido por Jesus a todos aqueles/as que acreditam nele, atualiza em nós sua Palavra e conduze-nos à Verdade.
·      Tu, que és a seiva do Amor que vivifica toda a Igreja, vinha de Cristo, fecunda nossas ações e nossa comunhão com nossos irmãos e irmãs.
·      Tu que, na luz da Páscoa, ressuscitaste Jesus dentre os mortos, faz com que cresçam em nós as sementes da vida nova que recebemos no batismo.
·      Tu, que moveste os apóstolos a escancarar as portas do cenáculo, ajuda-nos a enfrentar com coragem os novos desafios do mundo de hoje. (p. 110-112)

sábado, 26 de maio de 2012

Vem, Espírito Santo! (6)

Com a celebração da ascensão de Jesus, iniciamos uma semana especial de oração e abertura à ação do Espírito Santo de Deus. Com a intenção de contribuir no cultivo desta abertura, ofereço diariamente uma prece extraída do livro Prières à l’Esprit Saint, de Michel Hubant (com tradução livre feita por mim mesmo). 



O chamado do teu Espírito vem de longe


Desde a primeira manhã da criação e da aurora do brilho da vida,
Desde o amanhecer da longa história da humanidade em gestação,
Teu Espírito, Senhor, é um apelo do teu Amor gratuito.

O apelo do teu Espírito vem de longe, de muito longe.
Ele atravessou a carne, o sangue, o coração
E a itinerrância de um povo peregrino,
E fez dele um incansável caminhante.

O apelo do teu Espírito vem de longe, de muito longe.
Ele atravessou os sonhos da minha infância,
Os caminhos imprevistos e as encruzilhadas difíceis
Da minha venturosa adolescência.

O apelo do teu Espírito vem de longe, de muito longe.
Ele me conduziu para além das minhas desilusões e covardias,
Dos meus ídolos de barro, dos meus medos, dos meus limites,
Das minhas derrotas, e do lento tatear da minha liberdade.

O apelo do teu Espírito vem de longe, de muito longe.
Ele me interpelou através de tantas testemunhas,
De tantos rostos amigos, próximos ou distantes,
João e Filipe, Tiago e André...

O apelo do teu Espírito vem de longe, de muito longe.
Ontem, João Batista, fixando os olhos em Jesus Cristo
Que passava às margens verdes do rio Jordão,
Dizia aos discípulos que o escutavam: “É ele...”

O apelo do teu Espírito vem de longe, de muito longe.
Hoje, depois que Jesus assumiu uma carne e um rosto humano,
Ele passa pelo sofrimento e pelo clamor dos meus irmãos e irmãs
Que sendo órfãos, não sabem mais que teu nome é Pai. (p. 41-42)

Miriam de Nazaré (3)


Este texto é uma continuação da reflexão publicada nos últimos dois sábados, e faz parte do primeiro capítulo (“perfil histórico-bíblico de Miriam de Nazaré”) do ensaio do professor Bertilo Brodd, “Miriam de Nazaré: mulher-ícone cheia de graça e pedagoga da libertação”. A reflexão prosseguirá na próxima semana (ao todo, serão 15 partes).

1.2  Etapa mateana e lucana

A etapa intermediária do itinerário cronológico dos testemunhos bíblicos sobre Miriam de Nazaré é constituída pelos evangelhos de Mateus e de Lucas e pelos Atos dos Apóstolos. Os episódios e textos mais significativos foram sumariados na parte introdutória deste capítulo. Restringiremos, aqui, nossa análise histórica, literária e exegética aos “Evangelhos da Infância” (Mt 1 — 2; Lc 1 — 2), em seu todo, deixando alguns dados específicos, como o da virgindade de Miriam e o Magnificat, para ulterior investigação deste ensaio.

Lançando um olhar sinótico sobre os “Evangelhos da Infância” de Mateus e de Lucas, constatam-se, de imediato, mais diferenças do que semelhanças, o que leva a concluir que ambos os redatores finais destes evangelhos dispunham de fontes próprias e distintas, bem como escreviam para diferentes destinatários (judeu-cristãos em Mt e gentio-cristãos em Lc).

Quanto aos pontos em comum destas duas narrativas da infância de Jesus, temos o seguinte levantamento: personagens nomeados: Jesus, José, Miriam, Herodes (Mt 1,1-22; Lc 1,5); anúncio do nascimento de Jesus (Mt 1,20-23; Lc 1,26-28); a virgem desposada com José (Mt 1,16.18-20; Lc 1,27); o nome de Jesus para Messias (Mt 1,21; Lc 1,31); Miriam concebe pelo Espírito Santo (Mt 1,16-18; Lc 1,35), enquanto era noiva de José (Mt 1,18-25; Lc 1,26), mas dá à luz depois de casada (Mt 1,18-25; Lc 2,5); genealogicamente, Jesus é “filho de Davi” (Mt 1,1; Lc 1,32; 2,4-5) e não é filho de José (Mt 1,18-23; Lc 1,34-35; cf. Lc 3,32); Jesus é salvador de Israel (Mt 1,21; Lc 2,11.29.32); é luz para os gentios (Mt 2,1-12; Lc 1,78-79; 2,32) e é redentor dos pecados (Mt 1,22; Lc 1,27); Jesus nasce em Belém (Mt 2,5.10; Lc 2,4-5.11), provocando alegria e alvoroço (Mt 2,3; 2,9-10); Jesus viveu em Nazaré com seus pais (Mt 2,23; Lc 2,39).

A soma destas concordâncias, segundo o critério da múltipla confirmação, parece depor em favor da historicidade dos fatos narrados. Se atentarmos, porém, para as profundas divergências e até mesmo contradições entre as duas narrativas, a certeza sofre forte abalo. Em primeiro lugar, recomenda a cautela não tomar ao pé da letra todos os enunciados destes relatos da infância de Jesus, sabendo-se que, especialmente em Mateus, eles foram redigidos dentro do gênero literário do “midraxe”, segundo o qual histórias de nascimento ou infâncias prodigiosas são entremeadas de elementos míticos ou lendários, como o anúncio do nascimento por um anjo ou em sonho, de intervenções divinas, presságios sobre o futuro da criança etc. Cautela não significa, porém, pré-julgamento anti-sobrenatural ou rejeição a priori de qualquer intervenção divina na história humana. Mesmo admitindo teórica e filosoficamente a ocorrência de eventos taumatúrgicos, podemos proceder prudentemente na perquirição entre verdade literária e mensagem religiosa ou teológica. Esta pode ser expressa sem implicar necessariamente sua veracidade histórica, no sentido moderno da ciência da história.

Esta prudência de caráter hermenêutico decorre da natureza específica dos “Evangelhos da Infância”. Em primeiro lugar, os eventos ali narrados ocorrem somente nos dois primeiros capítulos de Mt e Lc. O “corpus” da primitiva pregação cristã, tal como está refletido nos evangelhos de Marcos e de João, nos sermões dos Atos dos Apóstolos e nos primeiros credos ou hinos litúrgicos do Novo Testamento não indicam nenhum conhecimento dos “Evangelhos da Infância”. Exemplo paradigmático temos no sermão de Pedro na casa de Cornélio (cf. At 10,36-43).

Em segundo lugar, quase todas as testemunhas dos acontecimentos centrais das narrativas da infância ou estavam mortas ou indisponíveis para atestar com certeza ou alto grau de probabilidade o caráter histórico dos eventos narrados. Mas, não poderia ter sido Miriam de Nazaré a fonte privilegiada da tradição destas narrativas, em sendo ela, talvez, a única pessoa que havia sobrevivido até os dias da Igreja primitiva? Veja-se Jo 19,25-27, onde encontramos Miriam junto à cruz de Jesus, e At 1,14, que nos apresenta a mãe de Jesus com os apóstolos e discípulos de Jesus em Jerusalém antes da festa de Pentecostes[i]. Em teoria, Miriam de Nazaré poderia ter sido a fonte para as tradições dos “Evangelhos da Infância”. Contudo, uma análise interna e comparativa das duas narrativas detecta incongruências em pontos-chave que colocam em xeque a opinião de que Miriam foi a fonte direta dos dois primeiros capítulos de Mt e de Lc na sua forma atual. O relato da purificação de Miriam no Templo, por exemplo, narrado em Lc 2,22-38, apresenta erros gritantes em assuntos judaicos, ao confundir alguns rituais judaicos diferentes. A conclusão a tirar é: ou Miriam não foi a fonte da história da sua purificação ou ela tinha uma memória assaz fraca para acontecimentos que envolveram Jesus e ela própria. Em outras palavras: o que encontramos em Lc 2,22-38, como nos demais relatos de Lc 1 — 2, não são as reminiscências históricas da mãe de Jesus, e sim, o programa teológico do evangelista.

As contradições e divergências entre Mt 1 — 2 e Lc 1 — 2 se avolumam quando tentamos harmonizar os esquemas geográficos que estão na base das histórias dos “Evangelhos da Infância”. Enquanto o esquema geográfico básico de Mt vai do lar original, em Belém da Judéia (cf. Mt 2,1), onde os magos encontram Miriam e Jesus ao entrarem na “casa” (cf. Mt 2,11), e não num estábulo ou gruta, indo Jesus, Maria e José estabelecer sua morada adotiva em Nazaré, depois de uma fuga, por motivos políticos, para o Egito (cf. 2,16-18), fato ausente no enredo geográfico do evangelho de Lc, o esquema deste vai na direção oposto: do lar original, em Nazaré, para uma estadia temporária em Belém, na Judéia, também por motivações políticas, para um retorno a Nazaré, na Galiléia, “sua cidade” (Lc 2,39).

Alguns pormenores de cunho histórico despertam nossa atenção nestes esquemas geográficos inconciliáveis entre Mt e Lc. Assim, ao retornar do Egito, José teme voltar à Judéia, isto é, a Belém, porque Arquelau, filho de Herodes, o Grande, sucedera o tirano, morto no ano 4 aC. Curiosamente, para fugir do perigo, vai se estabelecer na Galiléia, governada por um outro filho de Herodes, isto é, Herodes Antipas, o futuro assassino de João Batista. Estranho senso de “medidas de segurança” adotadas por José: evitando o rochedo Silas, topa com Caríbdis! (Saltando do fogo, cai nas brasas...). Em resumo, o padrão geográfico das viagens da Sagrada Família no evangelho de Mateus se apóia no percurso que vai de Belém, suposto lar originário de José, e termina em Nazaré, onde “foi morar” (Mt 2,23), em busca de refúgio. Neste esquema mateano, o próprio relato da “anunciação a José” (cf. Mt 1,18-25) pode ser pensado como se tivesse ocorrido em Belém, residência fixa de José e Miriam.

No esquema geográfico e histórico lucano, por ocasião da anunciação a Miriam (não a José, como em Mt), tanto ela, explicitamente, como seu noivo, implicitamente, se encontram em Nazaré da Galiléia (cf. Lc 1,26-27). Após visitar Isabel nas montanhas da Judéia, ela “voltou para casa” (Lc 1,56), em Nazaré. A razão encontrada por Lucas para a estada de Miriam em Belém, por ocasião do nascimento de Jesus, foi um recenseamento geral decretado por César Augusto, quando Quirino era governador da Síria (cf. Lc 2,1-2). As tentativas de conciliar este informe lucano com os registros da época que atestam que Quirino se tornou governador da Síria no ano 6 dC e que realizou um censo na Judéia, e não na Galiléia, se torna inútil e impossível. Além disso, não havia obrigação para que Miriam acompanhasse seu marido no recadastramento. Sua adiantada gravidez era um argumento a mais contra a sua viagem com José.



Após o nascimento de Jesus, Lucas apresenta Jesus publicamente no Templo de Jerusalém para o ritual da “purificação deles” e para o resgate sacrificial do primogênito (cf. Lc 2,22-24). Sabendo-se que o Templo não distava muito do palácio de Herodes que, segundo Mateus, estava fazendo todo o possível para encontrar o presumido rei dos judeus, estamos novamente diante de uma divergência inconciliável entre as narrativas da infância de Mateus e de Lucas, o que nos comprova que não estamos diante de reminiscências históricas de Miriam de Nazaré, mas de criações teológicas dos evangelistas, isto é, de teologúmenos[ii].
Bertilo Brod

[i] Considerando que uma jovem judia casava em torno dos doze ou treze anos e que Jesus estava perto dos trinta e cinco anos quando foi crucificado, Miriam estava com cerca de quarenta e oito anos por ocasião destes dois acontecimentos narrados, respectivamente, no evangelho de João e nos Atos dos Apóstolos. Ao darem suporte à opinião geral de que Miriam teria sobrevivido até os primeiros tempos da Igreja primitiva, estas duas correntes independentes conferem probabilidade a esta opinião, se não privilegiarmos a natureza seguramente teológica da redação destes evangelistas.
[ii] No sentido explicado acima, parte 1, na nota ii.