sábado, 12 de maio de 2012

Miriam de Nazaré (1)


Tenho a satisfação de, partir de hoje e por 15 semanas consecutivas, sempre aos sábados, oferecer aos leitores capítulos de um sugestivo e provocativo ensaio de mariologia do nosso estimado amigo e familiano professor Bertilo Brod, que traz como título “Miriam de Nazaré: mulher-ícone e pedagoga cheia de graça da libertação”. Esperamos que a reflexão agrade e ajude no seguimento de Jesus Cristo e no engajamento por um mundo mais humano.


Miriam de Nazaré:

Mulher-Ícone e Pedagoga “cheia de graça” da Libertação

Por mais inusitado que possa parecer, à primeira vista, a inclusão de um estudo sobre Miriam de Nazaré num ensaio sobre Educação e Feminismo, máxime se esta investigação pretende nortear-se pelo enfoque da História e da Filosofia da Educação, não faltam, ao nosso ver, razões que justifiquem semelhante propósito. Inusitado, talvez inovador, sim; mas, despropositado ou inoportuno, não, como pretendemos demonstrar ao longo da nossa disquisição. Numa espécie de intento de arqueologia pedagógica, buscaremos encontrar em fontes histórico-bíblicas primevas o suporte necessário para nossas reflexões sobre o caráter icônico da mulher Miriam e sobre o horizonte emancipador da sua postura e ensinamento pedagógicos.
Embora se trate de fontes bíblicas, de cunho, portanto, religioso, nossas ferramentas de análise privilegiarão o método histórico-hermenêutico, inseparável de uma reflexão filosófico-racional e pedagógico-educativo. As incursões na esfera da exegese bíblica e da conseqüente elucubração teológica visam tão-somente atestar a validade e, quiçá, necessidade de uma postura transdisciplinar e de interpenetração metodológica. O foco será, porém, prevalentemente, histórico-filosófico-pedagógico, na perspectiva englobante de todas as tematizações da presente obra.
Feitas estas considerações propedêuticas, delimitaremos nossa pesquisa em torno dos seguintes tópicos: a) Quem foi Miriam de Nazaré? b) O caráter icônico e gracioso da sua feminilidade. c) O horizonte libertador da sua mensagem educativa.

1.     Perfil bíblico-histórico de Miriam de Nazaré.
Antes de analisar os dados bíblicos concernentes à personagem histórica de Miriam de Nazaré, necessário se faz acenar para dois problemas preliminares: critérios de historicidade e noções de crítica literária no âmbito da hermenêutica bíblica. No que diz respeito aos primeiros, releva assinalar que podemos aplicar à Miriam de Nazaré o que na historiografia bíblica moderna se costuma afirmar do Jesus histórico. A pesquisa histórica não está ainda suficientemente aparelhada para nos fornecer um quadro biográfico razoavelmente completo e confiável da realidade total de Jesus e de sua mãe Miriam. A despeito disso, com o emprego de modernos critérios de historicidade, é possível deslindar cada vez melhor os contornos contextuais, as vicissitudes pessoais e familiares e a significação histórico-simbólica de Miriam de Nazaré.
Segundo Meier[i], tais critérios são primariamente os seguintes: o critério do constrangimento ou da contradição, enfocando os atos ou as palavras de Jesus que poderiam ter constrangido ou criado dificuldades para a Igreja primitiva; o critério da descontinuidade (ou da dissimilaridade, da originalidade ou da dupla irredutibilidade), concentrando-se nas palavras ou ações de Jesus que não poderiam ser originários nem do judaísmo do seu tempo nem da Igreja primitiva; o critério da múltipla confirmação ou do corte transversal, dirigindo seu foco sobre as palavras ou atos de Jesus que são atestados em mais de uma fonte literária independente ou em mais de um gênero ou forma literária; o critério da coerência ou da consistência e conformidade, segundo o qual as palavras e atos de Jesus se ajustam bem a uma base de dados já estabelecida preliminarmente pelos demais critérios. Cabe reconhecer que nenhum destes critérios, tomados isoladamente, consegue produzir resultados inquestionáveis. Seu uso em conjunto, porém, proporciona graus variados de confiabilidade e de probabilidade histórica, mas nunca de certeza absoluta.
Algumas noções de crítica literária no ramo da hermenêutica bíblica são, igualmente, relevantes no estudo e na compreensão de textos bíblicos. A crítica literária, denominada também de crítica narrativa, concentra sua atenção sobre técnicas literárias utilizadas pelos diferentes autores bíblicos para transmitir sua mensagem. É uma espécie de vestimenta ou roupagem, ocultando ou revelando determinado conteúdo. O estudo literário dos textos bíblicos deve tomar em consideração a crítica textual, com suas regras específicas de análise lingüística, em torno de eventuais erros e variantes de códices, de tradução, a crítica literária propriamente dita em torno do modo de falar e de redigir da época, dos gêneros literários e linguagem figurada ou simbólica dos autores, do contexto que pode iluminar o texto e com atenção para o critério do paralelismo. Por último, a crítica histórica, à qual cabe determinar as circunstâncias concretas da composição dos textos e do Sitz im Leben (ambiência existencial) do autor, da mensagem da obra, dos destinatários, a causa e o objeto que levaram os autores a redigir determinado texto, sem esquecer a cronologia das fontes, das obras e dos autores.
Tendo presente estes elementos de hermenêutica bíblica de caráter geral, podemos acenar para algumas chaves de leitura dirigidas especificamente à compreensão dos dados bíblicos referentes à Miriam de Nazaré: 1º Nenhuma mariologia é plenamente satisfatória sem o patamar da Bíblia. São os textos do Novo Testamento, em especial, que constituem o primeiro degrau imprescindível para o reconhecimento da pessoa de Miriam de Nazaré e do seu significado histórico-teológico. 2º Os relatos sobre Miriam de Nazaré exigem que sejam situados na totalidade do contexto de cada livro. O retalho de cada perícope bíblica adquire seu pleno sentido dentro do texto e do contexto em que foi “costurado”. 3º O acesso à compreensão plena dos textos bíblicos marianos é possível através de uma adequada  interpretação, entendida tecnicamente como “hermenêutica”, pela qual se postula superar o fundamentalismo ingênuo de considerar os textos como reportagens jornalísticas ou como análises históricas de cunho científico moderno. 4º Um texto mariano deve levar em consideração o gênero literário do respectivo relato, discriminando o nível do significante do nível do significado. Assim, o gênero literário do “midraxe”, particularmente o “hagádico”, é, como veremos, relevante, bem como a categoria do “teologúmeno”[ii]. 5º A tarefa de qualquer hermeneuta consiste em desvelar o sentido original dos textos. Neste intuito, os textos marianos não podem perder de vista sua centralidade na pessoa de Jesus e na comunidade cristã primitiva. 6º O perfil bíblico de Miriam de Nazaré deve considerar tanto a diversidade de ótica como a convergência dos dados sobre ela. Partindo dos textos mais antigos (Paulo e Marcos), será possível reconstruir o processo de descobrimento da figura de Miriam e o crescimento qualitativo da interpretação do seu significado. 7º A busca do sentido original de um texto mariano comporta não só a assimilação ativa deste sentido como também a produção de sentido atualizado a dinâmico, num processo de releitura atualizada com a novidade original.
Em síntese, a Bíblia não é um livro de ciência ou de história no sentido moderno dos termos. Não pretende explicar científica e historicamente os informes que fornece. Não se interroga sobre o porquê e o como dos acontecimentos narrados, mas sobre o seu sentido e significado para os ouvintes e leitores do passado, do presente e do futuro.
Subsidiados com estes instrumentos de hermenêutica bíblica, podemos traçar o seguinte esboço do perfil bíblico de Miriam de Nazaré, identificando várias etapas, em sua ordem cronológica:
- Paulo, na epístola aos Gálatas (Gl 4,4), fala da “mulher” que, na “plenitude dos tempos”, formou a humanidade de Jesus.
- Marcos (Mc 3,30-35; 6,1-6) fornece, à primeira vista, uma imagem negativa da mãe e dos irmãos de Jesus, acentuando a distância e a separação entre a família natural e a família escatológica de Jesus.
- Mateus (Mt 1 – 2; 12,46-50; 13,53-58) muda deliberadamente a cena e o contexto do episódio narrado por Marcos referente à incompreensão da mãe e dos irmãos de Jesus a respeito da missão deste, apresenta a mãe de Jesus como tendo concebido virginalmente seu filho (Mt 1,18-25) e insere, através de José, o Emanuel na linhagem davídica (Mt 1,1-17). No cap. 2 do Evangelho da Infância, relata como o Emanuel foi recebido pelos seus, utilizando o gênero midráxico hagádico, em que fala da perseguição de Herodes, após a visitação dos magos (Mt 2,1-12), da fuga para o Egito (Mt 2,13-15), do massacre dos inocentes (Mt 2,13-18) e do estabelecimento da residência em Nazaré (Mt 2,19-23). Em se tratando do gênero literário midráxico, a preocupação primária do autor não foi com a veracidade histórica destes eventos, e sim, com sua mensagem e significado simbólico-teológico.
- Lucas menciona a presença de Miriam no seu Evangelho e nos Atos dos Apóstolos. No primeiro, debuxa um retrato altamente positivo da mãe de Jesus, associando-a intimamente à obra do seu filho, com uma descrição bastante acentuada dos seus sentimentos e atitudes mais profundas, em episódios como o da anunciação (Lc 1,26-38), da visita de Miriam a Isabel (Lc 1,39-56), do nascimento de Jesus e visita dos pastores (Lc 2,1-20), da apresentação de Jesus ao Templo (Lc 2,22-40) e da perda e reencontro de Jesus (Lc 2,41-51). O autor do terceiro Evangelho, tal como fizera Mateus, ameniza o episódio, narrado por Marcos, da rejeição da missão de Jesus da parte da sua mãe e dos seus irmãos (Lc 8,19-21; cf., também, Lc 11,27-28). No Evangelho da Infância de Lucas, destacam-se, ainda, vários hinos litúrgicos, como o Magnificat, atribuído à Miriam (Lc 1,45-56), o Benedictus, referido a Zacarias (Lc 1,68-79), o Glória, dos anjos (Lc 2,13-14) e o Nunc dimittis, colocado na boca de Simão (Lc 2,29-30). Na terceira parte deste capítulo, daremos ênfase analítica e hermenêutica ao Magnificat. Tal como em Mt 1 – 2, também no Evangelho da Infância de Lucas (Lc 1 – 2) é inútil buscar uma descrição histórica, no sentido moderno, pois, lançando mão do gênero midráxico, o evangelista não pretende, em primeiro plano, incutir a veracidade histórica dos fatos narrados, e sim, anunciar sua simbologia teológica e salvífica. Já nos Atos dos Apóstolos, Lucas alude expressamente à presença da mãe de Jesus na comunidade pentecostal de Jerusalém, no contexto da oração assídua e comunitária, da união fraterna e da fração do pão (At 1,14; cf., também, At 2,42; 4,32).
- O autor do quarto Evangelho relata duas passagens clássicas, onde a presença de Miriam de Nazaré possui lugar de destaque: nas bodas de Caná (Jo 2,1-12) e na cena do Calvário (Jo 19,25-27). Ambos os episódios estão literária e estruturalmente interligados, a ponto de não poderem ser interpretados de forma isolada. Sabendo-se que o Evangelho de João é fruto de antiga tradição oral e de sucessivas redações, das quais a última deve ser datada em torno do ano 100 d.C. e tendo em vista a intenção acentuadamente teológica do autor, pode-se afirmar, com bastante segurança, que os textos joaninos estão impregnados de mais densidade simbólica pós-pascal do que de ótica histórica profana. Referência clara à mãe de Jesus temos, ainda, em Jo 6,42. É curioso observar que em Jo 7,1-10, que narra a incredulidade dos irmãos de Jesus, tal como vimos em Mt, Mc e Lc, Miriam não é nomeada, embora esteja presente, como se deduz de Jo 2,12: “Desceram a Cafarnaum, ele, sua mãe, seus irmãos e seus discípulos”.
À luz deste sumário, constatamos que o tratamento bíblico reservado à Miriam de Nazaré é sóbrio e denso ao mesmo tempo. A sobriedade induz que renunciemos a qualquer veleidade de reconstrução pormenorizada de uma “vida de Miriam”, com dados biográficos e cronológicos demarcados e com uma interpretação da sua personalidade ou de seu psiquismo definidos pelos exigentes parâmetros científicos. Já a densidade dos relatos revela a estreita conexão entre o mistério da mãe Miriam e o do filho Jesus. Tudo o que é afirmado no Novo Testamento sobre Miriam é filtrado pela experiência pascal. Isto não impede que busquemos percorrer o itinerário da sucessão cronológica dos testemunhos bíblicos, a fim de desvelar, nas sucessivas formulações e elaborações do dado originário, a riqueza e significado marianos.
Neste itinerário cronológico, identificamos três etapas. A mais antiga é representada pelos testemunhos de Paulo e Marcos. Na etapa intermediária, encontramos a leitura teológica mais desenvolvida realizada pelos evangelistas Mateus e Lucas, para chegar ao profundo simbolismo do significado teológico da terceira etapa, presente no evangelho de João.



[i] Cf. MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1992. Vol. I: As raízes do problema e da pessoa. Cap. 6: Critérios (p. 169-196). Estes critériospor Meier aplicados ao Jesus históricosão passíveis de utilização no estudo da historicidade dos informes bíblicos referentes à Miriam de Nazaré.
[ii] Para o leitor não familiarizado com a exegese bíblica, damos, a seguir, o significado geral destas categorias hermenêuticasAssimpor “midraxe” entendemos a transliteração do termo hebraico “midrash” (plural: “midrashim”), derivante do verbo “darash”, cuja abrangência de significados na Bíblia vai desde o conceito profano de “buscarsolicitar informações a respeito de algo” (cf. Jz 6,29) até o sentido religioso de “procurar Deus” (Dt 4,29) e, aindaparticularmente na época pós-exílica, o sentido de “perscrutar a Escritura a fim de encontrar ali a resposta de Deus” (Esd 7,19). O midraxe é, por conseguinte e primariamente, uma interpretação atualizante da Escrituraisto é, dirigida ao momento presente. Duas são as modalidades de midraxes: a “hagadá” (do hebraico e aramaico “aggadah”) e a “halacá” (do hebraico “halakkah”). Enquanto a “hagadá” é um midraxe que narra, recapitula e atualiza os acontecimentos salvíficos do passado, refletindo sobre a história de Israel em sua relação com Deus e interpretando esta história à luz do presentecom suas conseqüências éticas, o midraxe “halakkah” (literalmente: “andaduracomportamento”) indica as regras codificadas de agiristo é, o sistema de normas legais, fazendo com que não haja separação entre vida religiosa e vida profanaPara maiores aprofundamentos, veja-se: LIMENTANI, Giacoma. O Midraxecomo os mestres judeus liam e viviam a BíbliaSão Paulo: Paulinas, 1998 (Tradução do italiano de Bertilo Brod).
                 a categoria do “teologúmeno” é de natureza complexa e polissêmica. O conceito não significa necessariamente que o conteúdo teológico representado como narrativa histórica não possua base históricaContudosua estrutura literária de cunho histórico contém normalmente um grande teor simbólico, sinalizando para uma narrativa com intenções teológicas, independentemente da sua historicidade ou não.

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