sábado, 26 de maio de 2012

Miriam de Nazaré (3)


Este texto é uma continuação da reflexão publicada nos últimos dois sábados, e faz parte do primeiro capítulo (“perfil histórico-bíblico de Miriam de Nazaré”) do ensaio do professor Bertilo Brodd, “Miriam de Nazaré: mulher-ícone cheia de graça e pedagoga da libertação”. A reflexão prosseguirá na próxima semana (ao todo, serão 15 partes).

1.2  Etapa mateana e lucana

A etapa intermediária do itinerário cronológico dos testemunhos bíblicos sobre Miriam de Nazaré é constituída pelos evangelhos de Mateus e de Lucas e pelos Atos dos Apóstolos. Os episódios e textos mais significativos foram sumariados na parte introdutória deste capítulo. Restringiremos, aqui, nossa análise histórica, literária e exegética aos “Evangelhos da Infância” (Mt 1 — 2; Lc 1 — 2), em seu todo, deixando alguns dados específicos, como o da virgindade de Miriam e o Magnificat, para ulterior investigação deste ensaio.

Lançando um olhar sinótico sobre os “Evangelhos da Infância” de Mateus e de Lucas, constatam-se, de imediato, mais diferenças do que semelhanças, o que leva a concluir que ambos os redatores finais destes evangelhos dispunham de fontes próprias e distintas, bem como escreviam para diferentes destinatários (judeu-cristãos em Mt e gentio-cristãos em Lc).

Quanto aos pontos em comum destas duas narrativas da infância de Jesus, temos o seguinte levantamento: personagens nomeados: Jesus, José, Miriam, Herodes (Mt 1,1-22; Lc 1,5); anúncio do nascimento de Jesus (Mt 1,20-23; Lc 1,26-28); a virgem desposada com José (Mt 1,16.18-20; Lc 1,27); o nome de Jesus para Messias (Mt 1,21; Lc 1,31); Miriam concebe pelo Espírito Santo (Mt 1,16-18; Lc 1,35), enquanto era noiva de José (Mt 1,18-25; Lc 1,26), mas dá à luz depois de casada (Mt 1,18-25; Lc 2,5); genealogicamente, Jesus é “filho de Davi” (Mt 1,1; Lc 1,32; 2,4-5) e não é filho de José (Mt 1,18-23; Lc 1,34-35; cf. Lc 3,32); Jesus é salvador de Israel (Mt 1,21; Lc 2,11.29.32); é luz para os gentios (Mt 2,1-12; Lc 1,78-79; 2,32) e é redentor dos pecados (Mt 1,22; Lc 1,27); Jesus nasce em Belém (Mt 2,5.10; Lc 2,4-5.11), provocando alegria e alvoroço (Mt 2,3; 2,9-10); Jesus viveu em Nazaré com seus pais (Mt 2,23; Lc 2,39).

A soma destas concordâncias, segundo o critério da múltipla confirmação, parece depor em favor da historicidade dos fatos narrados. Se atentarmos, porém, para as profundas divergências e até mesmo contradições entre as duas narrativas, a certeza sofre forte abalo. Em primeiro lugar, recomenda a cautela não tomar ao pé da letra todos os enunciados destes relatos da infância de Jesus, sabendo-se que, especialmente em Mateus, eles foram redigidos dentro do gênero literário do “midraxe”, segundo o qual histórias de nascimento ou infâncias prodigiosas são entremeadas de elementos míticos ou lendários, como o anúncio do nascimento por um anjo ou em sonho, de intervenções divinas, presságios sobre o futuro da criança etc. Cautela não significa, porém, pré-julgamento anti-sobrenatural ou rejeição a priori de qualquer intervenção divina na história humana. Mesmo admitindo teórica e filosoficamente a ocorrência de eventos taumatúrgicos, podemos proceder prudentemente na perquirição entre verdade literária e mensagem religiosa ou teológica. Esta pode ser expressa sem implicar necessariamente sua veracidade histórica, no sentido moderno da ciência da história.

Esta prudência de caráter hermenêutico decorre da natureza específica dos “Evangelhos da Infância”. Em primeiro lugar, os eventos ali narrados ocorrem somente nos dois primeiros capítulos de Mt e Lc. O “corpus” da primitiva pregação cristã, tal como está refletido nos evangelhos de Marcos e de João, nos sermões dos Atos dos Apóstolos e nos primeiros credos ou hinos litúrgicos do Novo Testamento não indicam nenhum conhecimento dos “Evangelhos da Infância”. Exemplo paradigmático temos no sermão de Pedro na casa de Cornélio (cf. At 10,36-43).

Em segundo lugar, quase todas as testemunhas dos acontecimentos centrais das narrativas da infância ou estavam mortas ou indisponíveis para atestar com certeza ou alto grau de probabilidade o caráter histórico dos eventos narrados. Mas, não poderia ter sido Miriam de Nazaré a fonte privilegiada da tradição destas narrativas, em sendo ela, talvez, a única pessoa que havia sobrevivido até os dias da Igreja primitiva? Veja-se Jo 19,25-27, onde encontramos Miriam junto à cruz de Jesus, e At 1,14, que nos apresenta a mãe de Jesus com os apóstolos e discípulos de Jesus em Jerusalém antes da festa de Pentecostes[i]. Em teoria, Miriam de Nazaré poderia ter sido a fonte para as tradições dos “Evangelhos da Infância”. Contudo, uma análise interna e comparativa das duas narrativas detecta incongruências em pontos-chave que colocam em xeque a opinião de que Miriam foi a fonte direta dos dois primeiros capítulos de Mt e de Lc na sua forma atual. O relato da purificação de Miriam no Templo, por exemplo, narrado em Lc 2,22-38, apresenta erros gritantes em assuntos judaicos, ao confundir alguns rituais judaicos diferentes. A conclusão a tirar é: ou Miriam não foi a fonte da história da sua purificação ou ela tinha uma memória assaz fraca para acontecimentos que envolveram Jesus e ela própria. Em outras palavras: o que encontramos em Lc 2,22-38, como nos demais relatos de Lc 1 — 2, não são as reminiscências históricas da mãe de Jesus, e sim, o programa teológico do evangelista.

As contradições e divergências entre Mt 1 — 2 e Lc 1 — 2 se avolumam quando tentamos harmonizar os esquemas geográficos que estão na base das histórias dos “Evangelhos da Infância”. Enquanto o esquema geográfico básico de Mt vai do lar original, em Belém da Judéia (cf. Mt 2,1), onde os magos encontram Miriam e Jesus ao entrarem na “casa” (cf. Mt 2,11), e não num estábulo ou gruta, indo Jesus, Maria e José estabelecer sua morada adotiva em Nazaré, depois de uma fuga, por motivos políticos, para o Egito (cf. 2,16-18), fato ausente no enredo geográfico do evangelho de Lc, o esquema deste vai na direção oposto: do lar original, em Nazaré, para uma estadia temporária em Belém, na Judéia, também por motivações políticas, para um retorno a Nazaré, na Galiléia, “sua cidade” (Lc 2,39).

Alguns pormenores de cunho histórico despertam nossa atenção nestes esquemas geográficos inconciliáveis entre Mt e Lc. Assim, ao retornar do Egito, José teme voltar à Judéia, isto é, a Belém, porque Arquelau, filho de Herodes, o Grande, sucedera o tirano, morto no ano 4 aC. Curiosamente, para fugir do perigo, vai se estabelecer na Galiléia, governada por um outro filho de Herodes, isto é, Herodes Antipas, o futuro assassino de João Batista. Estranho senso de “medidas de segurança” adotadas por José: evitando o rochedo Silas, topa com Caríbdis! (Saltando do fogo, cai nas brasas...). Em resumo, o padrão geográfico das viagens da Sagrada Família no evangelho de Mateus se apóia no percurso que vai de Belém, suposto lar originário de José, e termina em Nazaré, onde “foi morar” (Mt 2,23), em busca de refúgio. Neste esquema mateano, o próprio relato da “anunciação a José” (cf. Mt 1,18-25) pode ser pensado como se tivesse ocorrido em Belém, residência fixa de José e Miriam.

No esquema geográfico e histórico lucano, por ocasião da anunciação a Miriam (não a José, como em Mt), tanto ela, explicitamente, como seu noivo, implicitamente, se encontram em Nazaré da Galiléia (cf. Lc 1,26-27). Após visitar Isabel nas montanhas da Judéia, ela “voltou para casa” (Lc 1,56), em Nazaré. A razão encontrada por Lucas para a estada de Miriam em Belém, por ocasião do nascimento de Jesus, foi um recenseamento geral decretado por César Augusto, quando Quirino era governador da Síria (cf. Lc 2,1-2). As tentativas de conciliar este informe lucano com os registros da época que atestam que Quirino se tornou governador da Síria no ano 6 dC e que realizou um censo na Judéia, e não na Galiléia, se torna inútil e impossível. Além disso, não havia obrigação para que Miriam acompanhasse seu marido no recadastramento. Sua adiantada gravidez era um argumento a mais contra a sua viagem com José.



Após o nascimento de Jesus, Lucas apresenta Jesus publicamente no Templo de Jerusalém para o ritual da “purificação deles” e para o resgate sacrificial do primogênito (cf. Lc 2,22-24). Sabendo-se que o Templo não distava muito do palácio de Herodes que, segundo Mateus, estava fazendo todo o possível para encontrar o presumido rei dos judeus, estamos novamente diante de uma divergência inconciliável entre as narrativas da infância de Mateus e de Lucas, o que nos comprova que não estamos diante de reminiscências históricas de Miriam de Nazaré, mas de criações teológicas dos evangelistas, isto é, de teologúmenos[ii].
Bertilo Brod

[i] Considerando que uma jovem judia casava em torno dos doze ou treze anos e que Jesus estava perto dos trinta e cinco anos quando foi crucificado, Miriam estava com cerca de quarenta e oito anos por ocasião destes dois acontecimentos narrados, respectivamente, no evangelho de João e nos Atos dos Apóstolos. Ao darem suporte à opinião geral de que Miriam teria sobrevivido até os primeiros tempos da Igreja primitiva, estas duas correntes independentes conferem probabilidade a esta opinião, se não privilegiarmos a natureza seguramente teológica da redação destes evangelistas.
[ii] No sentido explicado acima, parte 1, na nota ii.

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