terça-feira, 5 de junho de 2012

Corpus Christi


Corpus Christi:  oportunidade para repensar o mistério da Eucaristia

Na próxima quinta-feira, dia 7 de junho, a Igreja Católica celebrará a solenidade de Corpus Christi. Creio que tal celebração deveria ser revertida num momento para se repensar com toda seriedade possível o mistério da Eucaristia. Deveríamos sair das pompas, ostentações e luxo e nos voltarmos para o silêncio contemplativo e reflexivo.
O primeiro momento deste processo reflexivo deveria ser um repensar a própria solenidade de Corpus Christi. Sabemos que esta festa surgiu no auge de uma violenta crise pela qual passava a Igreja Católica. A liturgia havia se sofisticado e se distanciado do povo. Era celebrada em latim, língua não mais falada pelas comunidades. Além de serem celebradas numa língua incompreensível, as liturgias eram pomposas, luxuosas, uma verdadeira afronta aos pobres. Tinham se tornado uma coisa para o clero, pois o povo fora reduzido a mudo espectador. Neste contexto corria solta a simonia: a celebração dos sacramentos, especialmente da Eucaristia, dependia de muito dinheiro. Assim, por exemplo, o preço da missa dependia do modo como o padre erguia a hóstia consagrada durante a anamnesis, chamada de “consagração”, e considerada o momento mais importante da missa.  Quanto mais alta a elevação, mais cara era a missa.
Por essa e outras razões a liturgia ficou reduzida a mero devocionalismo. As pessoas não mais participavam da Eucaristia e a tinham apenas como simples devoção. Iam às igrejas para adorar o Santíssimo Sacramento e não para participar da Ceia do Senhor. A situação ficou tão grave que a própria hierarquia determinou que se comungasse pelo menos uma vez por ano, durante o período da Páscoa. Foi neste contexto que o papa Urbano IV, em 1264, fixou a solenidade de Corpus Christi: uma festa para adorar pública e pomposamente a hóstia consagrada. Portanto, a festa de Corpus Christi, como veremos a seguir, é um desvirtuamento radical do significado litúrgico do mistério do Corpo e do Sangue do Senhor. Ou, se preferirmos, uma traição do pedido do Mestre: “Tomai e comei, tomai e bebei”.
Considero a festa de Corpus Christi, na forma como ainda é celebrada atualmente, um desvirtuamento litúrgico e uma traição do mandato de Cristo por várias razões. Antes de tudo porque Jesus não deixou dito que ele queria ser adorado pomposamente num ostensório luxuoso nas igrejas e pelas vias públicas de uma cidade. Colocar a Eucaristia, sacramento do simples e pobre pedaço de pão, num ostensório de ouro é, recordando São João Crisóstomo, ofender aquele que não tinha onde reclinar a cabeça.
Em segundo lugar porque o cerne da Eucaristia está não na adoração, mas na refeição, na comida, na ceia. Ou, se quisermos, o modo correto de adorar a Eucaristia é participar da ceia, é comer do pão e beber do cálice. De fato, Jesus não disse “tomem e adorem, mas tomem e comam, tomem e bebam”. A adoração eucarística surgiu por meio do costume de se levar um pedaço do pão eucarístico para os doentes impedidos de participar da celebração litúrgica dominical. E como se acreditava que aquele pedaço de pão era o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo, enquanto ele não era levado e consumido pelo doente, era adorado como sacramento da real presença de Cristo no meio da comunidade cristã.
O hábito de consagrar hóstias apenas para trancá-las num “cofre dourado” e ser adorado pelas pessoas é um costume que nasce no contexto de crise antes mencionado, quando se havia perdido por completo a noção do mistério eucarístico. Portanto, é algo que destoa do significado da Eucaristia para a comunidade cristã. As normas para o culto à Eucaristia fora da missa, emanadas pelo próprio Vaticano, são muito claras a este respeito. Chegam inclusive a dizer que se deve evitar neste culto tudo aquilo que possa tirar da Eucaristia a sua natureza de alimento, de comida, de refeição. Por rigor de lógica as espécies eucarísticas, quando colocadas para a veneração dos fiéis, deveriam ser postas em pratos de comida e não em ostensórios luxuosos. Porém, as próprias autoridades eclesiásticas são as primeiras a não obedecer aquilo que escrevem para os outros.
Em consonância com o que acabou de ser dito, a festa de Corpus Christi deveria ser uma oportunidade para uma profunda catequese sobre o que é, de fato, a Eucaristia. Infelizmente a crise antes mencionada levou a se pensar na Eucaristia como o sacramento da “carne” do homem histórico Jesus de Nazaré. Assim a concepção comum presente na mente de bispos, padres e fiéis é que os termos “carne”, “corpo”, “sangue” se refiram exclusivamente ao corpo biológico de Jesus. A Eucaristia seria a transformação de algumas hóstias e de um pouco de vinho num amontoado de células e moléculas do corpo físico do Jesus histórico que viveu na Palestina há dois mil anos.
Porém, quando nos voltamos para os textos bíblicos não é essa a compreensão que temos. O termo “corpo” (em hebraico “basar” e em grego “soma”) não significa apenas o aspecto biológico, mas a pessoa inteira na sua condição de corporalidade. Trata-se da pessoa na sua totalidade revelada em sua forma visível e em comunicação com os outros. Jesus, segundo Marcos (14,22-24), o mais antigo dos evangelhos, ao dizer na última ceia “éstin tò somá mon” (“isto é o meu corpo”) e “éstin tò haîmá mon” (“isto é o meu sangue”), não está se referindo apenas ao seu corpo biológico, às células do seu corpo físico, mas à totalidade da sua pessoa de Filho de Deus encarnado. E quando convida os discípulos a comerem do seu “corpo” e a beberem do seu “sangue” Jesus não está pensando num ritual antropofágico ou canibal, mas num gesto de comunhão e de adesão plena à sua pessoa.  
O biblista italiano Settimio Cipriani, que estudou profundamente esta questão, afirma que as palavras de Jesus poderiam ser traduzidas da seguinte maneira: “O que estou fazendo (partindo o pão e distribuindo-o) significa a oferta da minha pessoa por vocês”. De fato, nas culturas antigas, especialmente na cultura judaica, o ato de comer e de comer juntos não tem apenas o significado biológico de ingerir substâncias para saciar a fome e manter-se vivo. Comer e comer juntos tem um significado simbólico, sacramental: significa que os comensais participam da mesma sorte, estão unidos pelo mesmo destino, estão em comunhão entre si. Assim sendo, a participação na Eucaristia, na Ceia do Senhor, é um gesto sacramental através do qual o cristão e a cristã manifestam a sua adesão total à pessoa de Jesus e se dispõem a participar da mesma sorte do Mestre. Portanto, reduzir a Eucaristia a um significado meramente biológico, a um pedaço da carne biológica de Cristo (como se tem feito em alguns casos de supostos milagres eucarísticos) é desvirtuá-la completamente do seu verdadeiro significado sacramental.
Isso pode ser confirmado pelo texto eucarístico do Evangelho de João (6,51-56). Mesmo não narrando a instituição da Eucaristia, João apresenta Jesus convidando seus ouvintes a comerem a sua carne e a beberem o seu sangue. Sabemos que na Bíblia o termo “carne” (em hebraico “basar” e em grego “sárx”) não significa apenas o elemento físico, biológico, mas a pessoa humana, na sua totalidade, existindo como ser frágil e mortal. É o ser humano total na sua condição de caducidade. Por sua vez o “sangue” (em hebraico “dam” e em grego “haîma”) não significa apenas o líquido vermelho que escorre nas veias do ser humano, mas a sua vida, o seu existir pleno. O convite de Jesus feito a seus ouvintes significa um convite a entrar em plena sintonia com a sua pessoa e o seu projeto de vida. Participar da Eucaristia é aderir ao mistério do Filho de Deus que “se fez carne” (Jo 1,14), ou seja, que abriu mão da sua condição divina para viver entre nós como “simples homem” (Fl 2,7-8). Participar da Eucaristia não é participar de um rito antropofágico, no qual se come um pedaço da carne biológica do Jesus histórico, mas comungar da sua fragilidade, da sua fraqueza, da sua encarnação. Se entendêssemos isso causaríamos uma verdadeira revolução no cristianismo e contribuiríamos para o advento de uma nova humanidade.
Por fim, a festa de Corpus Christi deveria ser um momento para se pensar numa solução definitiva para o problema daquelas milhares de comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e que são privadas da celebração eucarística dominical, por falta de um ministro ordenado que a presida. Se a Eucaristia é o centro e o cerne da vida cristã, deixar uma comunidade sem celebração eucarística dominical é impedi-la de viver a sua verdadeira identidade. Soluções já existem como já tive oportunidade de mostrar, mas a hierarquia resiste e não quer adotá-las. Se a hierarquia não resolve, cabe às comunidades cristãs abandonadas encontrarem uma solução. E Tertuliano, um escritor cristão do final do II e início do III século, propôs uma solução muito simples. Mesmo reconhecendo que em circunstância normais cabe ao bispo e seu conselho presbiteral presidir a Eucaristia, Tertuliano afirmava: “Onde não há um colégio de ministros inseridos, tu, leigo, deves celebrar a Eucaristia e batizar; tu és, então, o teu próprio sacerdote, pois, onde dois ou três estão reunidos, aí está a Igreja, mesmo que os três sejam leigos”. 
José Lisboa Moreira de Oliveira

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