terça-feira, 12 de junho de 2012

Miriam de Nazaré (5)


2)    Questões cruciais de mariologia bíblica (1)

Deslindados os principais textos do Novo Testamento que fornecem um quadro geral do perfil bíblico de Miriam de Nazaré, importa investigar alguns aspectos específicos particularmente problemáticos e cruciais do ponto de vista hermenêutico. São questões de gênero que giram em torno do ser-mulher de Miriam, sua maternidade e sua virgindade

Na investigação do perfil bíblico geral de Miriam de Nazaré, em dois momentos significativos, encontramos a expressão ou o apelativo “mulher” endereçado à mãe de Jesus. O primeiro ocorreu em Gl 4,4, onde se afirma que Deus, na plenitude dos tempos, enviou seu Filho, “feito de mulher” (em grego: genómenon ek gynaikós) para significar que o Filho de Deus assumiu a condição humana no seio materno de Miriam. Nada permite supor que o autor da epístola aos Gálatas quisesse atribuir um papel especial a Miriam na filiação divina. O que se afirma se reduz ao seguinte: uma mulher assegurou a entrada do Filho de Deus na história humana. A verdadeira humanidade de Cristo se deveu a uma “mulher”. O apóstolo, ao traçar a estrutura fundamental do mistério da encarnação, deixou-nos o princípio de toda mariologia: a maternidade humana de Miriam na encarnação e missão do Filho de Deus. Nascido ou feito de mulher, o Filho de Deus entrou em profunda comunhão e intercâmbio com a precariedade da natureza humana, tornando-se homem como nós, histórico, sujeito às vicissitudes da condição humana.

Vamos encontrar novamente o apelativo “mulher” dirigido por Jesus à sua mãe no evangelho de João, tanto no relato das bodas de Caná (Jo 2,1-12), como na cena do Calvário (Jo 19,25-27). Por que utilizou Jesus tal apelativo, referindo-se à sua mãe, sabendo-se que não era comum na linguagem de um filho em relação à própria mãe? No âmbito da exegese bíblica, muitas foram as respostas aventadas para a questão. Na perspectiva do autor do quarto evangelho — essencialmente um trabalho de teologização da pessoa e da missão de Jesus —, a expressão “mulher”, tanto em Caná como na cruz, aproxima duas perspectivas. Por um lado, Miriam é a mãe carnal de Jesus, tal como texto Paulino aos Gálatas. Por outro lado, ela é a figura, o símbolo, o ícone que “reassume e sintetiza em si toda a esperança messiânica de Israel e em íntima união com seu Filho intercede para que os povos, o novo Israel já presente nela, sejam partícipes do vinho novo do Espírito” (AUTRAN, 1992, p. 136).

Pelo título “mulher” (em grego: gynè), Jesus revela que estava vendo sua mãe acima das meras relações familiares, dando a entender que não pode mais ser considerado apenas como o filho natural de Miriam e que esta ultrapassou seu estágio de mãe humana de Jesus para se tornar a “Mater Sion”,  mãe-Sião, a representante da coletividade do povo de Deus nos tempos messiânicos. A “mulher” Miriam, a Sião messiânica ou escatológica, simboliza, em Caná, a passagem do povo judaico ao povo messiânico e, na cruz, a passagem do povo messiânico ao povo de Deus da Igreja cristã. Na cena da cruz, a mãe-“mulher” que acolhe o discípulo amado se torna o tipo da Igreja. Em Jo 19, 25-27, o termo “mulher” aplicado a Miriam tem uma ressonância comunitária eclesial. Na Miriam, Jesus mostra a personificação da nova Jerusalém-mãe, isto é, a Igreja-mãe. Se, na antiga Jerusalém,  o profeta dizia: “Eis os teus filhos reunidos juntos” (Is 60,4), agora Jesus diz à sua mãe: “Mulher, eis o teu filho” (Jo 19,26)[i].

A iluminação retrospectiva que provém do texto de Isaías sobre a reunião dos dispersos confere uma dimensão eclesial e ecumênica à maternidade da “mulher” aos pés da cruz. Na impostação teológica do seu evangelho, João evidencia a presença de Miriam com uma finalidade bem evidente: ela se torna a tipologia da Igreja porque celebrou o culto “em espírito e verdade”, seguindo seu filho, imitando-o na dor e entrando no diálogo entre o Pai e o Filho. Jesus mostra na sua mãe a “mulher-mãe” de todos os seus discípulos. Isto significa que ele pretende propô-la à sua Igreja como modelo-exemplo-tipo-forma de vida evangélica. É este o caráter paradigmático e icônico da maternidade de Miriam de Nazaré, tal como emerge da teologia joanina.
É precisamente esta maternidade humana da mãe de Jesus que caracteriza por excelência o ser-“mulher” de Miriam de Nazaré, como aliás de toda mulher. Neste sentido, a maternidade de Miriam é mais importante que a sua virgindade, como adiante analisaremos. Não sem razão o Novo Testamento privilegia o título de mãe de Jesus ao de virgem. Este último título ocorre somente duas vezes (Mt 1,23 e Lc 1,27), ao passo que o de mãe é referido vinte e cinco vezes.

A maternidade se concretiza nos processos biofisiológicos basicamente espontâneos e transconscientes da ovulação, fecundação, gestação, nutrição e desenvolvimento do embrião e da parturição. No caso da mulher, estes aspectos ocorrem dentro de uma ambiência humana prenhe de emotividade, de liberdade e de consentimento. A dimensão psíquica da maternidade envolve e enriquece o mero biofisiologismo da maternidade. A relação humana que se estabelece entre mãe e filho assume uma dimensão de diálogo, de afetividade e de ternura infinitamente superior — porque livre e humana — à fatalidade natural do procriar da espécie animal. É nestes aspectos biofisiológicos e psíquicos que eclode, em plenitude, a feminilidade maternal de Miriam. O feminino entrou numa proporção profunda na constituição não só do genótipo, da herança biológica de Jesus, mas também da personalidade psicológica básica deste.

Quais são os traços do feminino que se revelam na “mulher” Miriam, na qualidade de mãe de Jesus e em que sentido sua maternidade é perceptível como dimensão tipicamente feminina, caracterizando-a como “mulher”-ícone? Talvez, a melhor resposta para esta questão seja: a feminilidade da maternidade de Miriam se expressa como radical e irradiante gratuidade, pois o seu “sim” à maternidade não só deu a vida ao filho Jesus, mas, pelo simbolismo icônico da sua presença em Caná e no Calvário, sua solicitude materna a tornou partícipe incondicional dos homens peregrinos no tempo. “A maternidade se oferece em Maria como um dar a vida, fontal e permanente, que não conhece condições ou reservas, porque é vivido na gratuidade mais total, e que se traduz, na concretude dos dias, na ternura de uma relação sempre capaz de suscitar vida e alegria em toda criatura amada” (FORTE, op. cit., p. 210).

A vocação à gratuidade irradiante da maternidade não é um princípio abstrato, mas concretude e geração da vida real, ternura próxima que se nutre da doação materna. Em Miriam de Nazaré, esta doação e esta ternura concretas da capacidade tipicamente feminina de realizar o amor estão exemplificadas nas faixas nas quais envolveu o menino (cf. Lc 2,7), na visita afetuosa a Isabel (cf. Lc 1,39ss.) e na intervenção solícita em Caná (cf. Jo 2,1-12). Nestes exemplos, a mãe de Jesus revela sua feminilidade, ao mesmo tempo simples e imediata, mas, também, paradigmática, irradiante e arquetípica.

A feminilidade e a maternidade de Miriam de Nazaré se expressam, igualmente, na nupcialidade da esposa de José[ii], símbolo e ícone da aliança esponsal entre Deus e a humanidade e das núpcias messiânicas da Igreja, novo povo da aliança. A simbologia de Miriam — esposa de José — exprime a reciprocidade e dialogicidade radicais do ser humano. A criatura humana, tal como emerge em Miriam, é chamada para a aliança, isto é, está constitutivamente orientada para a reciprocidade do encontro, do diálogo e da aliança na socialidade e profundidade da união e da comunhão. A reciprocidade da convivência masculino-feminina é condição estrutural da existência humana. O mistério da vida e da história humanas é essencialmente um mistério esponsal de aliança. A reciprocidade varão-mulher significa que todo ser humano é constitutivamente um ser dialógico: “O diálogo, encontro na palavra, manifesta a natureza mais profunda da pessoa humana enquanto chamada a tomar a iniciativa da relação com os outros, a acolher a iniciativa e a resposta deles e a integrar em unidade esse duplo movimento, de saída de si e de retorno a si, de fonte e de receptividade no amor” (FORTE, op. cit., p. 234).

Essa reciprocidade dialógica, radicalmente aberta aos outros, realizou-se iconicamente em Miriam, esposa de José e Esposa da nova aliança. Dialogou com Deus — veja-se a estrutura dialógica da narrativa da anunciação (Lc 1,26-38) e do hino Magnificat (Lc 46-55) —, com seu filho Jesus (cf. bodas de Caná: Jo 2,1-12) e com os homens, discípulos “serventes” (Jo 2,5: Fazei tudo o que ele vos disser).



[i] É nesta linha de interpretação que se orienta a reflexão de Francesco Rossi de Gasperis, em seu sugestivo livro Maria di Nazaret: icona di Israele e della Chiesa. Magnano: Qiqajon, 1997.
[ii] Não seria fora de propósito ou um anacronismo um ensaio sobre o papel de José na história da salvação — sem os exageros de uma josefologia! — e sobre a simbologia antropológica e teológica da Sagrada Família de Nazaré. Além dos estudos exegéticos pertinentes e atualizados, duas publicações antigas mereceriam ser revisitados.

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