terça-feira, 12 de junho de 2012

Solenidade do Sagrado Coração de Jesus


O coração de Deus é grande e compassivo.
(Os 11,1-4.8-9; Is 12,2-6; Ef 3,8-19; Jo 19,31-37)

A tentação de imaginar Deus de forma abstrata e de propor a mensagem cristã de forma estritamente doutrinal está sempre nos rondando. O princípio de um Deus uno e trino celebrado na festa da Santíssima Trindade pode virar uma questão de matemática ou metafísica. A boa notícia recordada na solenidade de Corpus Christi pode descambar em uma discussão polêmica e inoportuna. E acabamos representando o mistério de Deus mediante figuras abstratas ou ameaçadoras, como o triângulo, a lei, o olho. Até a cruz corre o risco de passar uma idéia parcial e doentia de um Deus sádico. Imagens como a mãe, o pai, o cordeiro, a mesa e o coração não seriam mais adequadas? Na solenidade do Sagrado Coração de Jesus recordamos agradecidos/as que Deus tem um grande coração, um coração humano e compassivo. E isso não tem nada a ver com um Deus distante, abstrato e sádico.
“Eu sou o Santo no meio de ti, não venho com terror.”
Bem que o primeiro testamento proíbe terminantemente que se façam imagens de Deus. Imaginar Deus é difícil, perigoso e pode ter consequências desastrosas. Basta lembrar algumas imagens que, não obstante a proibição, o povo de Israel se fez de Deus: Senhor dos exércitos, Rei do céu e da terra, Deus altíssimo, Senhor onipotente... O caminho entre imaginar Deus nestes termos e sua cooptação pelos poderosos e opressores de plantão, em prejuízo dos pobres, é apenas um passo.
Nas últimas décadas, algumas escolas de teologia e de espiritualidade fizeram esforços significativos para refundir a noção de Deus nos parâmetros da cultura moderna. Mas o que significa concreta e existencialmente conceitos como Absoluto, Transcendente, Divindade? Correm o risco de passar mensagens ambíguas ou incompletas, como os antigos conceitos de Altíssimo, Onipotente e Senhor. E às vezes não fazem outra coisa que cavar um abismo intransponível entre Deus e ser humano...
“Eu os lacei com laços de amizade...”
Mas antes disso, no final do século XVII e meados do século XVIII, nasceu e se espandiu um movimento espiritual que quis corrigir o formalismo no qual caíra a teologia e a espiritualidade cristãs. O movimento pietista se propôs a recolocar a experiência prática e o sentimento no centro da vida cristã. Caminhou paralelamente às principais tendências teológicas, pois tinha a impressão de nada ganhar com elas. E a teologia, por sua vez, olhou para o pietismo com desconfiança, temendo a multiplicação de heresias.
É no âmbito do esfriamento das práticas de piedade, provocado pelo liberalismo, e no contexto do movimento pietista, que nasceu a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Em 1675, Jesus teria aparecido a Santa Margarida Maria Alcoque e dito,  descobrindo seu Coração:  “Eis o coração que tanto tem amado aos homens e  em recompensa não recebe, da maior parte deles, senão ingratidões pelas irreverências e  sacrilégios, friezas e  desprezos que tem por Mim neste Sacramento de Amor”.
A Sagrada Escritura nos apresenta a imagem de um Deus vivo e caracterizado pela Compaixão, e é isso que a solenidade do Sagrado Coração de Jesus deve colocar em evidência. Não precisamos ter medo de reconhecer traços antropomórficos em nossas imagens de Deus. Nunca nos livraremos disso. O que precisamos é evitar projetar na idéia de Deus elementos de uma antropologia que exclui aspectos fundamentais como a corporeidade, a relação, o sentimento e a solidariedade.
“Para dar-lhes de comer, eu me abaixava até eles.”
Como horizonte maior da reflexão deste dia, temos a experiência e a palavra do profeta Oséias. O trecho proposto é uma das mais ternas e belas páginas da experiência religiosa, e não só de Isarel. Para descrever quem é e como age o Deus de Israel, o profeta recorre aos marcantes sentimentos e às profundas  atitudes de uma mãe em relação aos filhos pequenos. A experiência masculina – e muito menos a abstração teórica e a frieza legalista – não são adequadas para falar de Deus.
Como uma mãe é incansável e criativa nos sinais do seu bem-querer, Deus toma seu povo pela mão, ensina-o pacientemente a dar os primeiros passos, envolve-o com os infinitos gestos que só o amor sabe criar. Como uma mãe se inclina para elevar seu filhinho ao peito e amamentá-lo, Deus se inclina para sustentar seu povo e fazê-lo subir. Diante do menor sofrimento de um filho ou filha, o coração de Deus salta no seu peito e suas entranhas se agitam dolorosamente. É um Deus que padece.
São metáforas que procuram quase desesperadamente dar conta de um Deus que tem coração, que não descansa enquanto não vê seu povo sair da opressão, que não admite fazer justiça castigando, que não suporta dar as costas àqueles/as a quem ama. Nem de longe ele se parece com um justiceiro altivo ou um homem vingativo. Ele é Santo, radicalmente diferente, incapaz de se deixar mover pelos desumanos sentimentos de mágoa e de vingança.  É um Deus apaixonado.
 “Um soldado golpeou-lhe o lado com a lança...”
O primeiro plano do quadro da Palavra que escutamos hoje é totalmente dominado pela figura de Jesus de Nazaré. Ele pende da cruz, onde fora pregado depois de ter sido acusado, traído, condenado e torturado. Fazem-lhe companhia dois outros proscritos. O dia é soleníssimo, antecede a grande festa dos judeus. O que o fez chegar a este lugar e a este estado é de domínio público: ousou desafiar uma certa imagem de Deus, afirmando que ele é, antes e acima de tudo, Amor.
Sabemos que o coração de Jesus bate forte pelos últimos da escala social, pelas pessoas arruinadas por causa de escolhas mal feitas ou de sistemas que excluem. Longe de cair na armadilha de uma generosidade ingênua, Jesus escolhe muito bem aqueles a quem dirige seu amor preferencial e ocupam um lugar nobre no seu coração. Ele vai premurosamente ao encontro das pessoas perdidas, reconduz as desgarradas, cuida das machucadas, fortalece fortalece as doentes, defende a dignidade de todas.
No alto da colina da caveira, o corpo pendente da cruz proclama em alto e bom som que Deus tem um coração: ele ama a justiça, estende sua misericórdia de geração em geração, aproxima-se de todos/as os/as necessitados/as com ternura de pai e mãe. Seu coração é de carne e jorra sangue, e não de pedra fria, feita de leis impostas e apllicadas sem condecendência. É para que seu peito não retenha este coração que suas pernas não são quebradas. É disso que nós somos beneficiadas testemunhas!
“Assim, conhecemos o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento.”
Paulo fizera uma experiência paradoxal: sendo fariseu de estrita observância e implacável perseguidor dos seguidores de Jesus, descobre-se amado e escolhido para testemunhá-lo como Messias de Deus e salvador da humanidade. Um amor e uma missão absolutamente imerecidas. O conhecimento e a observância da lei o havia fechado em si mesmo e feito dele um homem frio e orgulhoso. O conhecimento de Jesus Cristo o faz homem livre e frágil, próximo e servidor da humanidade.
Paulo tem a impressão de que a grandeza dessa experiência não cabe nas palavras. Escrevendo aos cristãos que vinham do paganismo e amargavam duras experiências de exclusão, Paulo faz de tudo para anunciar a eles a “riqueza insondável de Cristo”. O desejo de Deus sempre foi que, pela fé e pela adesão a Jesus Cristo, todos sejam livres para se aproximar de Deus com confiança. É este o mistério que antes estava escondido e agora deve ser anunciado sem meias-palavras.
Paulo prossegue, implorando de joelhos, que nossa humanidade amadureça e se desenvolva, enraizada e alicerçada em Jesus Cristo. Assim, teremos condições de “conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento”, de entender “a largura, o comprimento, a altura, a profundidade” desse amor gratuito e imerecido. E quem experimenta e compreende esse amor, não pode senão testemunhá-lo nas ações, relações e projetos concretos de compaixão e solidariedade.
 “O Senhor é minha força e meu alegre canto!”
Jesus crucificado, terno coração de um Deus que é pai e mãe, sofrido coração de um homem que é incapaz de ser indiferente às dores e dramas humanos: neste dia em que tua Igreja proclama a sacralidade transcendente do amor, de todo amor, dobramos os joelhos diante de ti e pedimos que o teu Espírito nos inunde, renove e guie nos caminhos do amor terno, despojado e serviçal. Acolhendo no teu coração sagrado o inteiro anúncio do Reino, dispo-mos a ser como és e a ir onde estás. Faça com que nosso instável coração adquira a altura, a profundidade e a largura do teu amor. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

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