sábado, 14 de julho de 2012

Maria de Nazaré (10)


Este é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do ensaio, que ensaia uma reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.


3.2 Dimensão auto-educativa da pedagogia de Miriam de Nazaré (2)

Após analisar exegeticamente duas citações que refletem o tom questionador da pedagogia de Miriam de Nazaré, importa investigar algumas situações dos evangelhos em que se enfatiza a postura reflexiva e meditativa da mãe de Jesus, numa experiência de auto-educação.

c) “Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação” (Lc 1,29). Estamos no contexto do relato da anunciação (Lc 1,26-38). Já vimos acima a estrutura redacional e o gênero literário da perícope lucana. O gênero literário de base é, sem dúvida, o midráxico-hagádico[i], mas enriquecido dos gêneros do “anúncio”, do ritual da aliança e da vocação. Todos “têm em comum a iniciativa divina, a resposta humana e a realização de algo novo na história, em vista da concretização do projeto aberto de Deus sobre a humanidade” (MURAD, 1996, p. 89).

A iniciativa divina é apresentada pelo evangelista com a saudação do anjo Gabriel a Miriam: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1,28). As locuções “Alegra-te” e “cheia de graça” (em grego: chaíre e kecharitoménè) expressam mais do que uma saudação corriqueira. Elas proclamam que Miriam representa o povo de Israel, como a “Filha de Sião” e que Deus contemplou-a gratuita e amorosamente. Diante deste apelo à alegria messiânica da iniciativa divina, Miriam “ficou intrigada” (Lc 1,29). O verbo que expressa a perturbação de Miriam (em grego: dietaráchtè, do infinitivo diatarássô) reflete não apenas um estado de espírito de natureza psicológica ou moral, mas a surpresa de se encontrar num contexto de teofania, de revelação divina, e faz com que sua atenção se volte ao significado das palavras do anjo, isto é, do anúncio revelador da presença de Deus. O anúncio é perturbador demais para deixar de ser objeto de reflexão e profundo ensimesmamento.

A expressão “cheia de graça”, na sua forma grega de particípio do perfeito passivo, significa que Miriam se tornou objeto da benevolência e do amor que não começa agora, mas que tem sua origem na eternidade de Deus. Miriam se move num processo de busca de autocompreensão dessa nova dimensão ontológica de objeto da predileção divina que a intriga e surpreende. Apesar do convite à alegria e exultação, diante da boa nova do anjo, Miriam, como resultado da novidade perturbadora, prefere uma atitude auto-reflexiva e de busca do significado mais profundo e mais abrangente da sua vocação. Procura ilustrar-se auto-educativamente a respeito do mistério do desígnio de Deus a seu respeito. É a postura da verdadeira pedagoga que primeiro se educa para receber a grande nova: “Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus” (Lc 1,31). O gênero literário de anúncio é inconfundível neste versículo e algo totalmente novo ocorrerá na história humana por iniciativa de Deus e com a contribuição da resposta humana, prefigurada na postura, primeiramente reflexiva e pensativa e, depois, no seu “sim”, no “fiat” (“faça-se”) humilde, mas resoluto: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua vontade” (Lc 1,38).

“Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que diziam dele” (Lc 2,33). Este curto versículo nos apresenta uma outra atitude pedagógica de Miriam de Nazaré, dessa vez, solidarizada também por José, a da admiração diante das palavras proféticas de Simeão, por ocasião do episódio da apresentação de Jesus no Templo, quarenta dias após o parto (cf. Lc 2,22-39). Já apontamos acima para as incorreções históricas e jurídicas apresentadas por Lucas nesta perícope relativamente aos costumes rituais judaicos. Na verdade, a família de Nazaré devia observar três ritos codificados pela Lei mosaica: a circuncisão (oito dias após o nascimento), a consagração (resgate) do primeiro filho homem e a purificação ritual da mãe, e não dos pais, como afirma Lucas (“Quando se completaram os dias para a purificação deles”: Lc 2,22). Pertencendo sociologicamente ao estrato pobre da população, em vez da oferta ao sacerdote de um cordeiro anótino (cf. Lv 12), os pais podiam se contentar com um par de rolas ou dois pombinhos. Lucas apresenta José e Miriam como fiéis observantes das prescrições religioso-cultuais dos judeus, enfatizando, assim, que fazem parte do povo fiel.

Na oportunidade da apresentação de Jesus no Templo, entram em cena Simeão e Ana. O primeiro toma a criança em seus braços e profere o hino “Nunc dimittis” e profetiza que Jesus será “sinal de contradição” e que uma “espada traspassará a alma” da mãe de Jesus. É neste contexto que “seu pai e sua mãe estavam admirados”. A admiração experimentada por Miriam não se restringe ao “estupor” e “admiração” dos gregos (tháuma), como início de reflexão filosófica diante da realidade, mas também como a postura de busca de discernimento e de preparação para a missão para a qual fora vocacionada pelo anúncio do anjo do Senhor. A faculdade admirativa não é só filosófica e prática. É também pedagógica e auto-educativa. Saber admirar nossa existência como um desafio a ser vivido é um patamar pedagógico para a própria concretização da finalidade da existência humana. Miriam é, também aqui, mestra e pedagoga a nos ensinar o valor da admiração.
“Miriam, contudo, conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração” (Lc 2,19). “Sua mãe, porém, conservava a lembrança de todos esses fatos em seu coração” (Lc 2,51b). Estamos no ápice do comportamento auto-educativo e pedagógico de Miriam de Nazaré. O primeiro versículo (Lc 2,19) ocorre no contexto do relato lucano do nascimento de Jesus em Belém, cuja narração, de beleza ímpar, é bem conhecida em seus pormenores. A atitude de Miriam diante dos acontecimentos natalinos é descrita através de dois verbos gregos de profundo significado: “syntèrei” (“conservava”, “guardava”) e “symbálousa” (“meditando”, “conferindo”, “interpretando”, “comparando”). Ambos os verbos se completam em seus significados. O primeiro (syntèrein) que dizer: conservar na memória, retendo com atenção e continuar averiguando. Procura descrever o estado de ânimo de uma pessoa tomada de certa perplexidade, que procura compreender o significado profundo de uma coisa, de um acontecimento ou de uma palavra. Já o verbo “meditar” (em grego: symbállein” – proveniente da união da preposição syn [“com”] e de bállein [“lançar”]) tem o significado de combinar as diversas coisas que se ouviu, viu ou lembrou. Em outros termos, significa “pôr em confronto” os diversos elementos ou aspectos de uma situação um tanto enigmática, em vista da sua interpretação, correta explicação ou exegese da mesma. Na literatura grega e helenística, o mesmo verbo symbállein era empregado para designar a função de cresmólogo, isto é, do intérprete de oráculos, para o esclarecimento dos mesmos. Nos evangelhos, o termo symbálousa, na sua forma de particípio feminino, é exclusivo de Lucas. Aproxima-se do verbo “simbolizar”, no sentido grego de “colocar junto”, de agitar os dados no côncavo da mão, para decifrar um enigma e harmonizar extremos aparentemente opostos. Miriam, segundo Lucas, agita “no seu coração” (em grego: en tè kardía autès) palavras e acontecimentos (rèmata), provocando uma memória dinâmica e atualizante dos mesmos e procurando clarear aspectos obscuros ou difíceis com o auxílio divino[ii].

O versículo de Lc 2,19, especialmente quando harmonizado com Lc 2,51b, expressa que a mãe de Jesus não percebeu, de imediato, todo o alcance e significado do que ouviu e presenciou, mas que estava atentamente à escuta, mergulhando os acontecimentos em sua memória e no seu coração e extraindo progressivamente o seu sentido mais profundo e mais abrangente. Esta atitude meditativa e reflexiva de Miriam constituía, na verdade, sua maneira de rezar e não mero exercício de memorização ou de registro. Trata-se de uma memória totalizante, isto é, que abarca todo o arco da história salvífica, tal como exorta o Deuteronômio, o livro por excelência da espiritualidade do Antigo Testamento: “Presta muita atenção em tua vida para não te esqueceres das coisas que os teus olhos viram, e para que elas nunca se apartam do teu coração, em nenhum dia da tua vida (...). Ficai atentos a vós mesmos, para não vos esquecerdes da Aliança que Javé, vosso Deus, concluiu convosco” (Dt 4,9-10.23).

Para Israel, o objeto privilegiado dessa anamnese permanente é o evento libertador da saída do Egito, a primeira redenção mandada por Deus ao povo eleito e arquétipo de todas as libertações posteriores e penhor da libertação definitiva de toda a humanidade e de toda a criação, através da paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Como filha do povo de Sião do qual descende, Miriam de Nazaré “conservava” tudo “em seu coração”, numa atitude de escuta e acolhimento, repetindo o itinerário sapiencial e religioso que caracterizou a fisionomia espiritual de Israel. Ela refletia, meditava, assimilava e “ruminava”, como diziam os teólogos da Idade Média, tudo o que ouvia e via a respeito de seu filho. Assim, também ela “crescia em sabedoria”, em aprendizagem, e tornando-se “filha da sabedoria”, vale dizer, criatura que acolhe em si o projeto salvífico divino, expresso na pessoa e na vida de Jesus, a “sabedoria de Deus” (1Cor 1,24).

Conservar no coração e meditar não são exercícios amenos de erudição intelectual e muito menos um refúgio preguiçoso e saudoso no passado. Miriam conservava a memória de todas as coisas referentes ao filho e aprofundava sua compreensão, penetrando sempre mais no mistério e enigma que envolvia Jesus, na sua infância, adolescência, na vida escondida em Nazaré e na vida pública, culminando nos eventos centrais da morte e ressurreição. Seu itinerário de fé pascal, desde o dia em que Simeão havia prenunciado o destino sofredor do filho e desde o “terceiro dia” do encontro de Jesus no Templo, até o “terceiro dia” da ressurreição, Miriam, com o olhar contemplativo e o coração meditativo, com fé, esperança e amor, realizou a sua própria páscoa e se tornou, por sua vez, a “memória da Igreja” de todos os tempos.

Peregrina da fé, aprendeu pedagogicamente, rememorando e meditando, a viver em sua vida, a missão messiânica de seu filho: “Nela se cumprem antecipadamente os acontecimentos da Páscoa e antecipadamente nela ressoa a boa nova: ela está na encruzilhada dos tempos, como no lugar em que a preparação passa para o cumprimento, e o cumprimento é, ao mesmo tempo, novo início, promessa do futuro último” (FORTE, op. cit., p. 82).

Foi na postura auto-educativa e pedagógica do permanente rememorar no coração e na mente e no meditar dos mistérios divinos que Miriam se tornou a mestra da sabedoria e a pedagoga da Igreja e dos discípulos, tornando-se ela mesma cristã e membro da Igreja no Pentecostes (cf. At 1,14).

Bertilo Brod

[i] Rever o sentido dos termos em a nota ii, da parte (1) deste ensaio.
[ii] Em outros textos lucanos, pode ter sentidos diferentes: falar entre si, conversar (cf. Lc 4,15; 17,18) ou congregar-se, reunir-se (cf. Lc 14,31; At 18,27).

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