quarta-feira, 29 de agosto de 2012

22° Domingo do Tempo Comum


“Acolhei com mansidão a Palavra que em vós foi implantada.”
(Dt 4,1-8; Sl 14/15; Tg 1,17-27; Mc 7,1-8.14-15.21-23)

Todos/as nós, de diversos modos, procuramos uma vida pura e imaculada diante de Deus e dos irmãos e irmãs. Para realizar este desejo ou obrigação que nos impomos, recorremos às práticas religiosas, aos terapeutas, aos médicos, aos guias espirituais, e assim por diante. Mas nem sempre conseguimos nos livrar da tentação da integridade manter somente uma aparência ou de garantir uma pureza que é mais distanciamento dos/as nossos/as semelhantes que amor e compaixão. Como se o mais característico em Deus fosse o medo que leva ao distanciamento e a não se misturar com as misérias e contradições humanas. As religiões não podem ser nos afastar das lutas e necessidades dos nossos irmãos. Tiago é contundente: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição e manter-se livre da corrupção do mundo.” Iniciando o mês da Bíblia, acolhamos com mansidão e inteligência a Palavra que nos é anunciada (cf. Tg 1,21).
“Seguem a tradição que receberam dos antigos...”
Escrevo estas linhas – sacramento de partilha e comunhão na fé e na esperança – no silêncio eloqüente e sugestivo dos Alpes franceses, neste lugar abençoado no qual Nossa Senhora se manifestou a duas crianças. Aqui nas montanhas de La Salette Maria nos revela, em seu próprio rosto lavado por lágrimas de compaixão, a beleza e a bondade de Deus. Sus lágrimas lembram aquelas de Jesus diante da morte de seu amigo Lázaro e de uma Jerusalém que recusa se converter.
Por mais que uma certa mentalidade tenha interpretado a mensagem de Nossa Senhora da Salette como ameaça de castigo, o brilho que se nasce e se expande a partir da cruz que ela traz no peito nos lembra da fidelidade de Deus: ele  mantém sua compaixão de geração em geração e não abandona seu povo, apesar dos seus pecados. É esta fidelidade de Deus que nos interpela a assumir nossa responsabilidade pelos males que ferem a humanidade e a reverter nossas prioridades.
E um dos primeiros passos neste caminho é romper com algumas práticas que adquiriram foraça de tradição e de verdade: a ilusão de que a fé pode ser vivida sem ligação com a vida concreta; a mania de tirar o corpo fora e pedir que Deus mude o mundo milagrosamente, sem nosso empenho; a hipocrisia de ostentar publicamente uma correção e uma autenticidade que não vão além da própria pele; o mito que afirma que a única saída é cada um/a cuidar de si mesmo/a...
“Ele nos gerou por meio da Palavra da verdade.”
São Tiago nos recorda que todo bem vem do Pai das luzes, e nele não há fases ou períodos de mudança. O amor manifestado em Jesus Cristo não muda. E não muda também o amor como único caminho possível para um outro mundo. “Ele nos gerou por meio da Palavra da verdade para que nos tornássemos as primeiras dentre as suas criaturas.” O batismo expressa este novo nascimento, esta vocação de sermos os/as primeiros/as que vivem o amor como princípio, como meio e como fim.
Quando falamos de amor não estamos nos referindo a um vago sentimento interior, mas a um dinamismo envolvente que encontra em Jesus sua máxima expressão e concretude: trata-se de reconhecer os outros em sua dignidade, de valorizar sua verdade e atender suas necessidades. E isso comporta decisões e ações concretas que passam longe do medo de não sujar as mãos, de envolver-se em lutas, de compartilhar sofrimentos e humilhações.
É lamentável ver que inda hoje alguns cristãos, inclusive religiosos/as e padres, estejam preocupados com a limpeza das mãos ou com a roupa adequada daqueles que se aproximam da eucaristia e sequer se incomodam com as fraturas, divisões e injustiças que ferem o corpo de Cristo no corpo dos homens e mulheres humilhados/as e excluídos/as da mesa da vida. Priorizam a limpeza das toalhas, patenas e cálices e não se importam com as atitudes verdadeiramente anti-evangélicas.
“Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos?”
Não se trata de acrescentar leis e doutrinas aos muitos fardos que os filhos e filhas de Deus já carregam sobre as costas. Deus não se compraz em escrever doutrinas e tratados jurídicos e morais mas quer propor uma via que assegure a todos/as liberdade e vida plena. Ele propõe uma prática concreta para que todos/as vivam bem na terra que criou para eles/as. Ele faz questão de mostrar-se um Deus próximo e defensor dos últimos. “De fato, que grande nação tem um Deus tão próximo, como Javé nosso Deus, todas as vezes que o invocamos?”
O grande problema das Igrejas e da sociedade de hoje é a tendência de transformar as propostas que conduzem a uma vida livre em leis que garantem privilégios. A aliança tinha mandamentos sim, mas seu objetivo era evitar posturas egoístas e fechadas. “Que grande nação tem estatutos e normas tão justas como toda esta lei que eu lhes proponho hoje?” Eram justas porque tinham como objetivo ajudar a conquistar a terra e a viver nela de forma solidária.
Mas a lei que os legistas e fariseus defendem diante da liberdade de Jesus e dos seus discípulos é bem outra coisa. “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, pois comem o pão sem lavar as mãos?” Não lhes interessava a partilha dos pães e peixes que alimentara uma multidão, mas o fato de que os discípulos e todo o povo tinham comido sem lavar as mãos. Como aqueles/as que hoje querem salvar as (funestas) leis do mercado à custa da fome que mata milhões.
“Vocês abandonam a lei de Deus para seguir a tradição dos homens.”
A verdade é que alguns costumes irrelevantes vão conquistando uma importância cada vez maior e acabam aparecendo à nossa consciência religiosa como expressões da vontade de Deus. Quanta discussão sobre se é permitido receber a hóstia na mão ou não. E quanta polêmica em torno da prática de chamar leigos e leigas a proclamar o Evangelho numa celebração eucarística. E sem falar na questão da comunhão aos casais separados ou recasados...
Quanto esforço para filtrar um mosquito sem perceber que estamos engolindo dezenas de camelos e que os fardos que impomos oprimem a vida de milhares de pessoas frágeis e inocentes! Quanto esforço para limpar as coisas por fora sem olhar para o que é mais importante! Quantos costumes pouco importantes e até ridículos são alçados ao patamar de lei de Deus. “Vocês abandonam a lei de Deus para seguir a tradição dos homens.”
Jesus estabelece um princípio que orienta nosso discernimento de cada dia e em todos os casos: “O que vem de fora e entra na pessoa não a torna impura; as coisas que saem de dentro da pessoa é que a tornam impura.” O que nos torna puros ou impuros não é nossa condição social, nosso pouco estudo, nossos poucos recursos, nossa orientação sexual ou nossa pertença religiosa, mas as ações e decisões que tomamos, as relações que estabelecemos.
“É de dentro do coração das pessoas que saem as más intenções...”
Em síntese: não se trata de maquiar a realidade ou de manter as aparências, mas de purificar nossa percepção e reorientar nossos interesses. “Pois é de dentro do coração das pessoas que saem as más intenções, como a imoralidade, roubos, crimes, adultério, ambições sem limites, maldades, malícia, devassidão, inveja, cobiça, orgulho, falta de juízo...” E poderíamos completar a lista por nossa própria conta. É aqui que deve se concentrar toda a nossa atenção.
Jesus, Palavra viva e libertadora na carne dos homens e mulheres e nos altos e baixos história. Hoje tu nos convidas a escutar a advertência do profeta Isaías, que nos pede para não substituamos a Boa Notícia que liberta por nossas próprias doutrinas e interesses. Tu nos ensinas que não são os aspectos externos e sociais, muitas vezes injustamente sofridos, que nos fazem bons ou ruis aos olhos do teu e nosso Pai. Abre nossos olhos, nossos ouvidos e nosso coração à desestabilizadora Boa Notícia da tua vida. Ajuda-nos a reinventar evangelicamente tua Igreja, tão devedora de tradições fossilizadas. Guia-nos pelos caminhos da justiça, mantém nossos passos na tua verdade, livra-nos so suborno e da busca de vantagens. E não permitas que o orgulho patriótico se sobreponha à humana solidariedade, que desconhece fronteiras. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Espiritualidade


Profetas, romeiros e migrantes

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Desloco-me para Juazeiro do Norte – CE, para uma espécie de leitura orante do já bem conhecido episódio do profeta Elias (1 Reis, 19,4-8), no espírito e na memória do Pe. Cícero Romão Batista. Leitura que ganha maior relevância com a nova postura da Igreja e da Pastoral da Romaria, especialmente na pessoa de Dom Fernando Panico, bispo da Diocese de Crato, na tentativa de reabilitar a figura e a santidade do “Padim Pe. Ciço”. Mas também com o empenho de representantes do mundo acadêmico e do poder público, além de outras entidades e organizações da região. Também ganham maior visibilidade as dores e esperanças dos romeiros que, em sua fé e devoção, acorrem à cidade de Juazeiro. No pano de fundo de uma espiritualidade do caminho e do templo, recíproca e complementar, convém sublinhar alguns pontos.

1.        O cansaço do profeta/romeiro

O romeiro é profeta e é caminhante, como Elias. Como este, move-se e faz mover a história. O simples fato de marchar contribui para abrir novas veredas e novos horizontes, diante dos tiranos que pretendem controlar o tempo. Memória e profecia são as armas subversivas do romeiro e do migrante. Memória do paraíso perdido, profecia da terra prometida. No caminho, um passo após o outro, num cotidiano que não poupa sofrimento, mas que também reforça a fé. Muitas possibilidades se abrem quando o romeiro se põe em marcha, rompendo o curso da história.

Ainda como Elias, o romeiro sente cansaço, por vezes até revolta e perplexidade diante dos desígnios ocultos de Deus. Por que tão dura é a vida e a lida? Por que tão caro em suor e lágrimas é o pão de cada dia? Por que a seca e a injustiça, o abandono e a fome? Por que a indiferença dos poderosos e do governo? Por que o céu permanece aparentemente mudo? O que quer de nós o Senhor do mundo e da história? O sentimento de revolta ameaça tomar o coração e a alma.

Perguntas sem resposta, males sem remédio. Prevalece o silêncio e o mistério. Valha-nos o Pe. Cícero e Nossa Senhora das Dores! Em seus braços colocamos nossos rostos batidos pelo sol e pelo vento, nossos corpos arqueados sob pesados fardos, as tribulações e turbulências de nossa trajetória. O desânimo bate à porta, os pés se recusam a caminhar. Torna-se inevitável uma prostração crescente e, não raro, desesperadora.

2.        A árvore como templo

Sorte que pelo caminho, o peregrino encontra uma árvore amiga, um juazeiro, por exemplo. Pode descansar na sombra, contar com um pouco de água fresca. Encontra outros irmãos de peregrinação. As conversas se estendem noite adentro, misturando tristezas e angústias, alegrias e esperanças. Histórias se cruzam e se entrelaçam na dor e na busca. Ali, à sombra da árvore, o peregrino agradece as graças recebidas, entoa seus benditos, e coloca novos pedidos nas mãos de Deus, através do “Padim Ciço”. A sombra é refrigério para o sol inclemente, espaço de encontro e intercâmbio. A condição de um é a condição de todos, a luta de um é a luta de todos. As palavras ditas e ouvidas aliviam o peito, trazem novo respiro à vida, tornam mais leve a carga.

Se a árvore fornece sombra e água, louvado seja Deus. Mas se, além disso, tem uma palavra amiga, um abraço fraterno e uma mão estendida, então o romeiro sente-se na própria casa. A espiritualidade do caminho encontra abrigo na espiritualidade do templo. Ambas se complementam, se mesclam e se interpelam. Ambas se enriquecem mutuamente. O juazeiro com sua sombra se transforma em santuário e morada da fé. Referência para os que sofrem, mas seguem na busca. Nesse clima de acolhida e solidariedade refaz as forças para lançar-se novamente ao caminho.

O peregrino, quanto mais caminha mais depura a mala e depura a alma. Purifica a existência daquilo que é inútil ou superficial. Atém-se ao essencial. Focaliza o foco de suas andanças num horizonte bem determinado. Caminhar é relativizar tudo que é secundário, apegando-se ao absoluto. Torna-se evidente a transitoriedade da existência e das coisas, ao mesmo tempo que se reforça a relação com as pessoas e com Deus. Pe. Cícero faz a ponte entre a terra que pisamos e a terra que buscamos. Os espaços do santuário também se relativizam, na medida em que se colocam a serviço das pessoas que chegam, e não das estruturas. Caminho e templo se purificam reciprocamente, na memória do Patriarca de Juazeiro.

3.    Os anjos e o alimento

À sombra amiga e à água fresca, à palavra amiga e ao sorriso aberto, a árvore pode ainda oferecer seu fruto. Alimento que sustenta os caminheiros famintos. Os anjos de Deus, tocados pelo fervor e a compaixão de Pe. Cícero, abrem as portas aos romeiros. Às dezenas, centenas e milhares, estes vão chegando de todos os lados, de longe e de perto. Vêem com seus olhares marcados pelas intempéries da vida e com seus cantos de súplica e agradecimento. Fé e esperança os movem e motivam.

Movem e motivam também a população que os recebe. Uns e outros se transfiguram na celebração da festa. Sorrisos e abraços se multiplicam pelas ruas, praças e igrejas. Feliz de quem é acolhido, mais feliz ainda quem acolhe. A lógica da graça se sobrepõe à lógica do cálculo e dos lucros e prejuízos. Todos ganham na medida em se abrem à experiência do encontro. Encontro com Deus, encontro com o outro, encontro consigo mesmo. Romaria é oportunidade de encontro e reencontro.

Saciada a sede e a fome, então sim, o retorno ao cotidiano da existência ganha novas energias. Com os que partem, vai a certeza de que sob a árvore amiga residem anjos irmãos , pessoas dispostas a receber e reanimar os romeiros. Para os que permanecem, fica a alegria de ter convertido a casa de Deus numa sombra refrescante para os pobres. Templo e caminho se dão as mãos, santuário e estrada se alimentam da presença do Espírito. Ao contrário do que aparecia na revolta do cansaço, Deus não abandona os sofredores desta pátria estrangeira. É assim que os romeiros lembram a própria condição do ser humano, hóspedes e peregrinos da terra, em busca da pátria definitiva.

4.        Retomada do caminho

Santuario Nossa Senhora dos Impossiveis (Patu - RN)
Os pés que caminham revelam e escondem um mistério. Reabastecidos de sombra, água e pão, os peregrinos encontram-se fortalecidos para retomar a estrada. Retornam a casa onde lhes espera os embates do cotidiano. No coração, a esperança de que Deus, pela intercessão de Pe. Cícero e de Nossa Senhora das Dores, Deus há de prover para que o ano seja abençoado pela chuva. Deus há de livrar as famílias das drogas, do álcool e da violência.
E há de dar forças para enfrentar os poderes do mal que violam o direito do pobre e lhe tomam os frutos do trabalho. Não, Deus não abandona quem recorre à sua misericórdia, Deus não fecha a porta a quem bate, Deus não recusa um coração que o procura. Só Nele o pobre sofredor encontra uma rocha firme e um abrigo seguro. Ele socorre os aflitos e derruba do trono os poderosos.

Mas o caminho é longo e cheio de tentações. No caso do profeta Elias e de Jesus, são 40 dias e 40 noites, lembrando os 40 anos de travessia do Povo de Deus pelo deserto. Terreno árido e cheio de perigos, como o sertão e o agreste nordestino. Mas agora o romeiro leva a benção de “meu padim Pe. Ciço”, que não esquece o povo sofredor. Tem forças para mais uma etapa de sua existência atribulada. O medo foi substituído pela fé, o desânimo pela esperança, o individualismo pela solidariedade. A sombra do santuário, a água viva da Palavra de Deus e o pão da eucaristia haverão de sustentar o romeiro e sua família.

5.        O horizonte da fé

Reabastecido, Elias marcha em direção ao monte Horeb, a montanha de Deus. Os romeiros, profetas do caminho, também retomam a direção de sua meta: a família, a comunidade e o Reino de Deus. Juazeiro do Norte constitui uma parada para repouso, parada que, a cada ano, restitui as forças para seguir buscando o farol do porto seguro. De etapa em etapa, é preciso vencer o mal escondido nas armadilhas dos filhos das trevas, e escondido também no lado selvagem do coração humano. Luzes e sombras se misturam e se confundem nas curvas da travessia e nos passos titubeantes de quem caminha.

Porém, com o auxílio de Pe. Cícero e a Mãe das Candeias, o peregrino vai iluminando os buracos escuros do caminho e do próprio coração. Aproxima-se do horizonte, que sempre se afasta, porque a caminhada não tem fim... Ano que vem, será preciso voltar à sombra do juazeiro, beber um gole de água, fartar-se do pão vivo, para vencer os novos obstáculos que hão de surgir. E assim sucessivamente... Romeiros em terra estranha, a caminho da Casa de Deus.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Kalimantan: impressões, emoções e reflexões (17)


Monumental catedral de Jakarta

Arrumando a mala…
Como a tentativa de antecipar nosso retorno a Roma foi frustrado, tivemos dois dias para descansar e fazer algumas incursões na cidade de Jakarta. Jakarta é uma cidade com mais de 10.000.000 de habitantes, uma das grandes do mundo. Como as nossas metrópoles latinoamericanas, uma bela, rica, moderna e monumental área central afasta e esconde uma periferia empobrecida, explorada e atrasada. E, no caso de Jakarta, uma periferia incrivelmente deteriorada e poluída.

Catedral de Jakarta
 
Tive a oportunidade de visitar a catedral da cidade. É um belo templo em estilo neogótico, construído em 1901. A altura máxima, assim como o comprimento, chega a 60 metros. Esta relativa imponência, que faz com que seja visível a uma certa distância – apesar dos arranha-céus que se multiplicam ao redor – é grandemente reduzida pela enorme e monumental mesquita – a maior de Jakarta – que se ergue exatamente à frente da catedral.

Visitamos também o enorme e moderno parque construído na década de 60, em pleno centro da cidade (Parque MONAS). Ali está erguido um enorme obelisco que celebra a unidade da Indonésia, sob o qual está um interessante museu que conta a história do povo indonesiano, com destaque para o processo e as lutas pela independência. Ao redor deste parque se erguem inúmeros e imponentes edifícios, que abrigam organismos do governo e sedes de grandes empresas nacionais e multinacionais.

Mesquita central de Jakarta
Se o olhar e a imaginação não conseguem romper este muro de edifícios robustos e modernos, somos iludidos pela impressão de quem estamos num centro urbano rico e moderno do primeiro mundo. Ali não há nenhum sinal da pobreza, da feiúra e do sofrimento que se escondem um pouco além. Nisso Jakarta não é pior ou melhor que todas as outras cidades, de mundos que se dizem primeiros ou de mundos taxados de terceiros.

Mas esta realidade que os urbanistas e políticos gostam de disfarçar e esconder emergiu nos últimos dias e seus sinais eram ostensivamente visíveis no parque: ali ainda estavam reunidos dezenas de viaturas e centenas de soldados que, no dia anterior, fizeram a segurança da cidade “ameaçada” por uma intensa mobilização popular contra o aumento dos combustíveis, projetada e anunciada pelos órgãos governamentais. A implementação da medida foi adiada por alguns dias.

Arrumando as malas para a viagem de volta, pergunto-me o que estou deixando e o que estou levando da Indonésia. Será que deixei, como era meu desejo, sinais claros de estima dos coirmãos que se espalham pelos outros 22 países? Será que foi humanamente perceptível minha mensagem de confirmação e apoio na caminhada missionária? Será que consegui passar a imagem de um visitante que respeita a originalidade e valoriza a hospitalidade de quem o recebe? Será que deixo, com os retalhos de papel higiênico que carregava preventivamente e que sinalizam minha dificuldade de adaptação à cultura local, as reservas, resistências e preconceitos que trazia?

Monumento da unidade indonesiana
E o que estou levando na mala, além dos objetos que trouxe comigo e dos presentes que sacramentalizam a hospitalidade? A bela notícia da convivência respeitosa e dos vínculos históricos e de sangue entre cristãos e mussulmanos? Um admirável e discreto testemunho de simplicidade e dedicação missionárias? Uma fortalecida convicção sobre a urgência inadiável de colocar a criação (o meio-ambiente) no coração da missão? Um desejo mais vivo de criar pontes e laços de comunhão e solidariedade entre povos e Igrejas? Uma consciência mais aguda da orfiginalidade e da relatividade do meu mundo cultural e eclesial?

É evidente que carrego uma mala com muitas perguntas e poucas respostas. Seja esta a minha bagagem mais precisiosa – no sentido cultural e espiritual da expressão. E que estas perguntas despertem reflexões, orientem estudos, sustentem buscas, fecundem relações, fortaleçam vínculos e fundamentem orações. E mantenham vivo o desejo de encontros sempre mais profundos. Assim seja!
Itacir Brassiani msf

Ano da fé (1)


Por uma fé que ajude perceber as dificuldades e superá-las.

As comunidades católicas estão fazendo memória dos 50 anos da realização do Concílio Vaticano II. Efemérides como esta são importantes, e não apenas para recordar o passado. O Papa Bento XVI anunciou um modo concreto de celebrar este acontecimento: convocou a Igreja a celebração do Ano da Fé, a ser iniciado no dia 11 de outubro de 2012 e concluído no dia 24 de novembro de 2013. E apresenta as razões, motivações e objetivos na carta motu proprio ‘A porta da fé’, de 11 de outubro de 2011.

A algumas convicções muito particulares moveram o Papa a propor este programa:  que a fé não pode ser pressuposta, pois não existe mais um tecido cultural nela inspirado; que fé enfrenta sérios questionamentos, especialmente por uma mentalidade que só aceita as verdades da ciência e da tecnologia; que o mundo de hoje tem especial necessidade do testemunho de pessoas capazes de abrir o coração e a mente do homem de hoje ao desejo de Deus e da verdadeira vida (cf. A porta da fé, 12; 15).

Entre os vários aspectos inegavelmente positivos desta iniciativa de propor o Ano da Fé, preocupa-me a intenção de dar centralidade ao Catecismo da Igreja Católica, como se fosse ele o fruto mais importante do Concílio e o instrumento mais adequado para devolver dinamismo, entusiamo e alegria à fé dos membros da Igreja católica. Pergunto-me se os 20 anos da publicação do Catecismo não é, de fato, o motivo principal da convocação do Ano da Fé. Apresso-me em esclarecer que não tenho nada contra o Catecismo, mas ele representa apenas a fé objetivada em forma de doutrina, e não a fé enquanto dinamismo espiritual, existencial e histórico.

O horizonte teológico que moveu o Concílio considera a Fé de outro modo. A Gaudium et Spes, expressão da nova relação que a Igreja quer estabelecer com o mundo cultural e político, diz que “a fé ilumina com sua luz tudo que existe e manifesta o propósito divino a respeito da plena vocação humana, orientando assim o espírito para as verdadeiras soluções” (GS 11). A fé é doutrina/luz que possibilita compreender profundamente a realidade e, ao mesmo tempo, dinamismo/orientação que ajuda a encontrar soluções concretas e eticamente aceitáveis para os problemas humanos.

Na perspectiva conciliar, não há nenhuma oposição entre o reconhecimento de Deus e a dignidade da pessoa. Pelo contrário, “o reconhecimento de Deus é, precisamente, o fundamento da máxima dignidade humana”. Assim, o primeiro passo para enfrentar as tensões e suspeitas que se criaram entre Igreja e Cultura, seria o testemunho de uma “fé viva e madura e suficientemente desenvolvida, capaz de perceber as dificuldades e superá-las”. São os mártires que dão testemunho claro dessa fé, “cuja fecundidade se manifesta pela integridade da vida, inclusive profana, na fidelidade à justiça e ao amor, especialmente em relação aos pobres” (GS 21). Uma fé autoritária ou medrosa não serve pra nada.

Esta é a perspectiva que permite que a Igreja coloque a dignidade humana acima de toda discussão e a leva a considerar com respeito “tudo que há de verdadeiro, de bom e de justo nas mais diversas instituições sociais”. Aqui nasce uma Igreja que entende sua missão como ajudar e promover todas as instituições, “no que dela dependa e que tenha relação com sua missão”  e colocar-se  “a serviço do bem de todos, gozando de plena liberdade em qualquer regime que seja, desde que reconheça os direitos fundamentais da pessoa e da família e as necessidades do bem comum” (GS 41,42).

Há algo de errado e triste quando, por causa de tendências de restaurar instituições e formas de vida que ignoram ou contestam o Concílio, nos vemos na obrigação de lutar aguerridamente para defender posturas e declarações de meio século atrás. E quando a Igreja terá tempo de se ocupar do diálogo cooperativo com o mundo de hoje? Oxalá possamos celebrar a memória agradecida dos 50 anos do Concílio Vaticano II sem menosprezar ou trair suas intuições fundamentais.
Itacir Brassiani msf

domingo, 26 de agosto de 2012

Igreja em missão inculturada


SÉRGIO TUCANO, PRESBÍTERO DOS ÍNDIOS

No dia 19 de agosto, o distrito de Pari Cachoeira, município de São Gabriel da Cachoeira, noroeste do Amazonas, bem na fronteira com a Colômbia, celebrou um evento inédito, emocionante, inesquecível: Sérgio de Jesus Alves de Azevedo, índio Tukano (uma das vinte e três etnias do Rio Negro), foi ordenado presbítero.  Filho de José e Anita, membro de uma família de seis irmãos, residem na aldeia de São José, uma das quarenta e oito comunidades da paróquia de Dom Bosco de Pari Cachoeira.

A escola de ensino fundamental e médio do Distrito, que reúne mais de duzentos e cinquenta alunos das aldeias vizinhas, suspendeu as atividades durante uma semana para ajudar as famílias a preparar esta festa. Foi montado um palco artisticamente ornamentado com peças do artesanato local. As famílias da sede organizaram-se para acolher e hospedar os numerosos “parentes” (para os índios, o índio de qualquer etnia é um parente!) que começaram a chegar quatro dias antes para participar do tríduo preparatório. Depois das orações havia apresentações culturais com encenações, cantos e danças.

No dia 16/08, às 05:30 da manhã,  a bordo do barco “Pérola Negra”, vinte navegantes: padres, irmãs, cristãos leigos e leigas e o bispo, partimos da cidade de São Gabriel da Cachoeira. Navegamos pelos rios Negro, Uaupés e Tiquié durante 53 horas. Extasiados contemplamos a beleza das cachoeiras, a variedade das árvores com o verde de todos os matizes, as aves que fugiam amedrontadas pelo barulho do motor. Ao entardecer, celebrávamos agradecidos a Santa Eucaristia.  E dormíamos acalentados por mãe negra, a noite, pontilhada de estrelas e iluminada pelos tênues raios da lua minguante.

A Celebração da Ordenação iniciou, às 09 horas, com o rito de purificação do ambiente realizado pelo Pajé com seu tradicional bastão e o perfumado “incenso” nativo.  A procissão de entrada foi precedida pela dança de acolhida “cariçu” realizada por um grupo de casais com vistosos enfeites e pinturas corporais. Eles voltaram depois para a dança do “dabucuri” : os homens tocando flautas e as mulheres carregando as ofertas para a Eucaristia. Um grupo de jovens dançou acompanhando a entronização da Bíblia carregada por uma indiazinha dentro de uma canoa transportada nos ombros de dois robustos jovens.

Comoveram a todos os testemunhos das pessoas que acompanharam a formação do Sérgio. O Pe Ivo Trevisol, o pároco que apoiou e encaminhou o jovem quando manifestou o desejo de ser padre. O Pe Jorge Gonçalves que o acolheu no Seminário em São Gabriel em 2001 e o seguiu de perto durante dez anos. A Professora Ana Cleide que o conheceu como colega de estudos e colaborou com ele no mistério diaconal. Destacaram a simplicidade, a cordialidade, a alegria, a prontidão para servir, a confiança com que se entrega nas mãos de Deus e a generosidade com que abraça o ministério. Lamentamos a ausência do Pe Olindo Furlanetto, reitor do Seminário de Manaus que, por motivo de compromissos inadiáveis, não pode estar conosco.

Com a exceção de dois cantos da celebração, os demais foram todos cantados em Tukano. Inclusive a Ladainha de Todos os Santos. Depois da invocação dos Santos, entre os quais Nossa Senhora de Guadalupe e o índio S. Juan Diego, o povo entoava: “Uhsãre koteya” (rogai por nós) ou “Ayuseré oyá (intercedei por nós). Já que você ficou curioso, apresento-lhe também a versão do Sinal da Cruz com a melodia do “Amém Aleluia” que costumo cantar. “Paku ye wamé merâ! Maku ye wamé merâ! Bauhtigu ayu Yurugu ye wamé merã!  Toho werã ekatirã, Ayurõ ekatirã, Ayurõ merã! Tudo a ver com o nosso português, não lhe parece!?

Os textos bíblicos, escolhidos pelo Sérgio, iluminam a missão de profeta, pastor e sacerdote que ele assume com o sacramento da Ordem: Jer  1, 1-10; Salmo 23; Heb 5, 1-6; Mt 18, 10-14. Do Evangelho de Mateus, ele tirou também o lema de sua vida e ministério: “Não desprezeis nenhum desses pequeninos, porque eu vos digo que os seus anjos nos céus vêem  continuamente  a face de meu Pai que está nos céu... A vontade do Pai é que não se perca nenhum destes pequeninos” (Mt 18,10 e 14).

Nas palavras que proferiu antes de dar a primeira bênção, afirmou que viverá o ministério como um pequenino pastor a serviço dos irmãos mais pequeninos. Lembrou que o despertar de sua vocação aconteceu quando a Ir Elizabeth, Filha de Maria Auxiliadora, convidou-o para ajudá-la a construir casas para os Hupda. “Um Tukano que sempre considerou os Hupda como seus empregados, como poderia agora colocar-se a serviço deles?”, foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu. Mas a Irmã, a primeira incentivadora de sua vocação, mostrou-lhe que na ótica do Evangelho e do seguimento de Jesus, “os últimos devem ser os primeiros” a receber nosso amor e nosso serviço. 

Anos depois, quando fez um retiro na linha da espiritualidade de Charles de Foucauld escutou estas palavras que o confirmaram nesta direção: “Jesus quando veio habitar no meio de nós escolheu de tal modo o último lugar que ninguém lhe poderá tirar”. Se o Mestre e Senhor buscou em tudo o último lugar, como pode seu discípulo desejar o primeiro? Um de seus atentos formadores afirmou que houve um Sérgio antes e outro depois deste retiro. Isto transparece na comprometedora e radical “Oração do Abandono” que ele colocou no convite de sua ordenação: “Pai a vos me abandono... Entrego a minha vida em vossas mãos... Estou pronto para tudo. Aceito tudo, contanto que a vossa Vontade se faça em mim e em todas as vossas criaturas”.

As famílias da sede preparam gostoso e abundante almoço que foi servido gratuitamente para todos. Verdadeira festa da partilha e da multiplicação. Às 14 horas iniciaram as apresentações de cantos com coreografias e belíssimas danças de jovens e adultos que se prolongaram até o entardecer.

O regresso a São Gabriel, navegando a favor da correnteza, durou trinta e nove horas. Eram 02 horas da madrugada quando vimos um bote à deriva o meio do rio Tiquié. Fomos nos aproximando devagar e vimos que era o prefeito municipal, em campanha pela reeleição,  com mais sete pessoas que pediam socorro. Embarcaram em nossa “Pérola Negra” e contaram que o motor estragou e ficaram nove horas boiando na correnteza do rio. E foram salvos pela Igreja.

Creio que um dos momentos mais felizes da vida de um bispo é quando tem a graça de ordenar um presbítero. E a cada ano o Senhor tem me concedido esta graça. No dia 15/08/10 ordenei o Reginaldo Cordeiro, SDB, Arapaso, que me acompanhou na primeira visita que fiz ao Papa. No dia 18/12/11 ordenei o José Jacinto Sampaio Alves, SDB, Desano, que está trabalhando conosco em Santa Isabel do Rio Negro.
O Pe Sérgio de Jesus, Diocesano,  permanecerá até o fim do ano em Pari Cachoeira trabalhando com o Pe Ivo Trevisol, Missionário do Sagrado Coração. Os “parentes” que o acompanharam como diácono, desejam agora vê-lo pregando o Evangelho e celebrando os Sacramentos na língua materna. Deste modo vai se concretizando o sonho da inculturação do Evangelho com a profunda inspiração: “A boa nova das culturas indígenas acolhe a Boa Nova de Jesus”.

+ Edson Tasquetto Damian
Pobre bispo do mato

sábado, 25 de agosto de 2012

Uma destruição massiva: a geopolítica da fome (1)


O Papa João Paulo II ensina que a promoção dos Direitos Humanos é um dos novos âmbitos da missio ad gentes (cf. Redemptoris Missio, 37). A ONU incluiu o direito à alimentação entre os Direitos Humanos (cf. artigo 25). É nessa perspectiva que publico aqui uma série de breves textos sobre o escândalo da fome e o direito humano à alimentação. São informações e reflexões que simplesmente traduzo e resumo do recente livro Destruction massive. Géopolitique de la faim, de Jean Ziegler, relator especial da ONU para o direito à alimentação, de 2000 a 2008. O livro foi publicado em outubro de 2011, pela editora Seuil (Paris).


Nigéria: a fome ‘fabricada’

A Nigéria é o segundo país mais pobre do planeta, e suas terras suão ricas em minérios. Possui a segunda maior reserva de urânio do mundo, mas essa riqueza é explorada pela multinacional francesa Aveva, que paga taxas irrisórias.

Em 2007 o novo presidente nigeriano Mamadou Tanja assinou um acordo permitindo a uma empresa chinesa participar da exploração das jazidas de urânio. Em janeiro de 2010 o presidente recebeu a delegação chinesa e, no dia 18 de fevereiro, sofreu um golpe de Estado e o obscuro coronel Salou Djibo assumiu seu posto. As negociações com a China foram encerradas e a Nigéria declarou gratidão e lealdade à Aveva.

A Nigéria possui um rebanho de 20 milhões de animais (camelos brancos, bois, cabras, ovelhas). As terras centrais do país são ricas em sais minerais, o que dá um sabor especial à carne dos animais que se alimentam dos pastos dessa região. Mas o país é esmagado pelo peso da dívida externa. Sob as leis implacáveis do FMI, a Nigéria foi rapinada por sucessivos programas de ajustamento estrutural.

Secas recorrentes condenam a população humana e animal da Nigéria à subalimentação e à subnutrição. Mesmo assim, o Fundo Monetário Internacional impôs o fim dos estoques de alimentos (milho, trigo, cevada) controlados estrategicamente pelo Estado para enfrentar as emergências.

“Em Washington, a direção do FMI para a Africa, afirma que estes estoques de alimentos pervertem o livre funcionamento do mercado. Noutras palavras: que o comércio de cereais não é uma tarefa do Estado, porque violaria o sacrossanto dogma do livre comércio.” (p. 58) E a fome vem golpeando os nigerianos a cada dois anos...

O Banco Mundial realizou, há cinco anos, um estudo para implantar um ssistema de irrigação na Nigéria. A conclusão é que com um sistema de bombeamento das águas subterrâneas e de canalização capilar de rios permanentes, seria possível irrigar facilmente 440.000 hectares. Com isso o país seria autosuficiente em termos de produção alimentar e salvaria 10 milhões de nigerianos da tirania da fome. Mas o segundo produtor mundial de urânio não teve condições de financiar este projeto... (p. 56-62).

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

21° Domingo do Tempo Comum


Qual é a palavra que pode sustentar nossa sede de viver?
(Js 24,1-2.15-18; Sl 33/34: Ef 5,21-32; Jo 6,60-69)

Os milagres extasiam, as canções embalam e as belas palavras encantam, mas o risco da superficialidade continua sempre ameaçando os/as discípulos/as de Jesus Cristo. Nem sempre estamos dispostos/as a pagar o preço embutido no bastismo. É muito tentador adocicar a mensagem de Jesus Cristo e colorir romanticamente o caminho do discipulado. Alguém escreveu: “Em nossa cultura moderna é difícil alguém vir a ser cristão. Dentro das premissas dessa cultura é difícil alguém viver e agir como cristão. Quando alguém tenta fazer valer efetivamente seu ser-cristão, ele próprio passa a constituir uma dificuldade para o mundo que o cerca” (F. X. Kaufmann). O diálogo entre Jesus e seus discípulos relatado por São João explicita esta dificuldade e nos chama a superar uma adesão exterior e ingênua à proposta de Jesus.
“Esta palavra é dura. Quem pode escutá-la?”
Lembremos que estamos ainda no capítulo 6 do Evangelho segundo João. Tudo começou com a partilha dos pães e dos peixes a cuja propriedade exclusiva um jovem discípulo havia renunciado. Entusiasmada com a abundância de alimento, a multidão quis estabelecer Jesus como rei, mas ele fugiu de fininho. Diante da recusa de Jesus, os discípulos começaram a ficar desorientados e tentaram fugir. Mas Jesus veio ao encontro deles no meio do mar agitado.
Depois disso, temos a longa catequese de Jesus sobre o pão verdadeiro que alimenta de fato e merece ser buscado – sua carne e seu sangue, seu percurso de humanização – e da ação que caracteriza os cristãos – crer em Jesus e fazer-se dom para a vida de todos. Com  isso Jesus confirma que o caminho da vida em abundância não passa pelo assalto ao poder mas pela aceitação da própria vulnerabilidade e pelos meios considerados frágeis, como o dom de si e a compaixão.
 “Isso vos escandaliza?”
A chamada catequese de Jesus sobre o pão da vida não tem nada de inocente, espiritualista ou inofensivo, e os discípulos entenderam  isso perfeitamente. Por isso disseram a Jesus que “este modo de falar era duro demais” e que era difícil continuar ouvindo seu ensino. De fato, tantos cristãos ainda hoje acham dificil, quando não impossível, construir a paz e garantir a vida para todos sem o recurso aos meios oferecidos pelo poder estabelecido.
Esta é a razão da crise dos discípulos: seguir alguém que não aceita ser rei, renunciar à ambição individual de estar à sua direita ou à sua esquerda, assimilar a entrega de si mesmos como caminho de realização, assumir a condição de servo/a como a mais nobre e digna do ser humano. Dominados pela expectativa do triunfo e do sucesso, muitos/as se frustram, rebelam e abandonam Jesus. Um Messias encarnado, humano e soliário lhes parece um escândalo, uma pedra de tropeço.
Mas Jesus provoca ainda mais os discípulos já escandalizados, enfatizando que é próprio do ser humano descer, que quem desce ou é rebaixado é visto por Deus como o mais nobre e perfeito. Dizendo que é o Espírito que dá vida, Jesus está apontando para o dinamismo que leva à entrega de si, para o amor, e não para algo exterior à história ou à vida humana. Mas, conhecendo-nos muito bem, Jesus adverte: “Entre vocês há alguns que não acreditam.”
“Vós também quereis ir embora?”
João observa que “a partir desse momento, muitos discípulos voltaram atrás, e não andavam mais com Jesus.” Eles acreditavam num outro Jesus, num messias feito à medida da ideologia e dos interesses individuais e da própria classe. Aqueles/as que acreditam num Deus feito à própria imagem e semelhança, cedo ou tarde acabam chegando a esta mesma encruzilhada e têm que decidir entre seguir a própria fantazia ou aderir a Deus assim como ele se revela.
Longe de ser uma simples adesão intelectual a verdades teóricas e morais inofensivas ou opressoras, a fé em Deus implica numa determinada postura ética: tratar o outro como irmão e próximo, acolhendo e respeitando sua sacralidade; representar o próprio Deus no cuidado com as criaturas; submeter-se unicamente a Deus e sua vontade e dessacralizar todos os poderes e autoridades; etc. Esta é, em outras palavras, a provocação de Josué. “Se vocês acham que não é bom servir a Javé, escolham hoje a quem vocês querem servir.”
Nunca é demais lembrar que a pergunta de Jesus se dirige a todos/as nós neste exato momento da nossa caminhada, na posição social, econômica ou eclesiástica na qual estamos: “Vocês também querem ir embora?” E a resposta não pode ser da boca pra fora, da cabeça para cima, mas consciente, engajada e consequente. Ou não é verdade que muitos de nós, inclusive religiosos/as e padres, vivemos uma fé que não passa de um verniz que nos cobre de superficialidade?
“A quem iremos, Senhor?”
“Eu e minha família serviremos a Javé”, diz Josué, provocando a resposta de todo o povo prestes entrar na terra desejada e prometida, na inauguração de uma nova ordem social, altwernativa ao ‘sistema Egito’: “Nós também serviremos a Javé, pois ele é nosso Deus. Longe de nós abandonar a Javé para servir outros deuses...” Por sua parte, Pedro, em nome de um bom grupo de discípulos e de forma um pouco resignada, responde a Jesus perguntando: “A quem iremos, Senhor?”
Hoje talvez a questão central não seja propriamente decidir entre o Deus cristão e outras imagens e experiências de Deus, entre Jesus Cristo e outros mediadores da salvação. A questão é mais de ordem prática, e se trata de decidir a que e a quem serviremos. Qual é o caminho que nos levará à vida abundante para todos: a estrada do ‘cada um para si’ ou a do ‘todos por um’? Não faltam aqueles/as que pensam que ‘quem pode mais chora menos’ e decidiram servir a si mesmos.
“A quem iremos, Senhor?” A resposta não vem da boca de Jesus, não é ditada por um suposto Espírito sempre pronto a sugerir respostas prontas. Trata-se de um discernimento que nós mesmos/as devemos fazer. De minha parte, apesar de minhas infinitas contradições, fico com Jesus Cristo e sua humanidade, com o Evangelho e sua liberdade, com o dom de mim e sua fecundidade, com o serviço aos irmãos e à sua dignidade. Não me reconheceria mais fora desse horizonte.
“Tu tens palavras de vida eterna!”
Jesus é a Palavra de Deus feita carne solidária, e suas palavras são portadoras de vida. Pedro entendeu bem: “Tu tens palavras de vida eterna.”  Apesar de tudo, Pedro havia percebido que, diante de Jesus, todos se descobrem pessoas dignas e capazes, chamadas a uma liberdade sempre mais plena e exigente, portadores de uma vida cada vez mais plenificada, peregrinos de um caminho que liberta porque jamais termina.
Crer em Jesus é experimentar uma liberdade radical, promotora da liberdade de todas as criaturas. Só quem foi libertado/a de tudo está em condições de servir. “Sejam submissos uns aos outros no amor de Cristo”, pede Paulo aos esposos e a todos os cristãos. Sub-missio, missão subalterna, estar à disposição do outro. É isso que nos leva a assumir o fardo do outro, a ser sub-stituto, a suportá-lo nas penas e sofrimentos, nos sonhos e buscas.
Longe de afirmar a suprepacia do homem sobre a mulher, do patrão sobre o empregado, do clero sobre os leigos (e assim por diante), Paulo insiste na reciprocidade da submissão dos cristãos, e afirma que ela radica no amor manifestado em Jesus Cristo. Os outros, por mais diferentes que sejam, condividem conosco a mesma humanidade, de modo que submeter-se a eles para servi-los no amor equivale a amar a si mesmo. Este é o caminho e a Palavra de vida que sai da boca de Jesus.
“Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus.”
Jesus amado, profeta temido por tua intrepidez, pão que alimenta nossa fome mais profunda, Palavra que nos mantém no belo e difícil caminho da vida! Ensina-nos a encontrar a simplicidade profunda do teu Evangelho e a vivê-lo com inocente e desarmada alegria, como o fez Dom Helder Camara (+27.08.1999). Ilumina e fortalece nossos/as catequistas: que eles experimentem gozosamente a glória de descer ao encontro dos mais pobres para ser tua Boa Notícia para eles e conduzam ao teu encontro as pessoas a eles/as confiadas. Assim seja. Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf