quarta-feira, 8 de agosto de 2012

19° Domingo do Tempo Comum


Ainda temos um longo caminho a percorrer.
(1Rs 19,4-8; Sl 33/34; Ef 4,30-5,2; Jo 6,41-51)

Nossa liturgia não segue o calendário social e comercial e passa ao largo do dia dos pais. Entretanto, queremos ter presente nesta celebração essa figura tão necessária quanto controversa, inserindo-a no contexto maior do Mês Vocacional e da Semana da Família. Presumimos que a Palavra de Deus, assim como a própria eucaristia celebrada em comunidade, lança luzes sobre a vocação leiga e paterna e aponta o rumo para vivê-la de forma cristã. Um ponto de partida pode ser a atitude de Elias, que, cansado e amedrontado diante da perseguição, reconhece que não é melhor que seus pais. Mas o foco central é proposto, como sempre, por Jesus, e retomado por Paulo: nossa vocação original e permanente é ser filhos/as e discípulos/as de Deus. Nisso todos – pais, mães, filhos/as, padres, religiosos/as e leigos/as – temos um longo caminho a percorrer.
“Não sou melhor que meus pais...”
São fortes as palavras celebrizadas na incomparável voz de Elis Regina: “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.” O poema escrito e musicado por Belchior não se volta propriamente contra a figura do pai, mas rumina a desolação de quem se propôs a ser melhor do que eles e acabou frustrado, repetindo chavões e atitudes que havia deplorado e condenado nos próprios pais.
Parece que o profeta Elias chega a uma conclusão igualmente dolorida e desolada. Perseguido pelo rei Acab, mesmo tendo sido socorrido por uma pobre viúva e por outras mãos anônimas e generosas, o profeta se vê envolvido pelas escuras nuvens da frustração e do desânimo, reconhece que herdou dos pais e outros antepassados a sede de justiça mas também a infidelidade à aliança. E tem vontade de morrer. “Tira a minha vida , porque não sou melhor que meus pais!”
“Este não é Jesus, o filho de José?”
No caso de Jesus, a figura de José, seu pai carpinteiro, é visto pelos judeus como um problema. A humanidade de Jesus foi e continua sendo pedra de contradição e de escândalo. Até hoje as cúrias se irritam com teólogos, evangelizadores ou guias espirituais que, pressupondo serenamente a filiação divina de Jesus Cristo, sublinham sua humanidade. Em nome de uma ortodoxia estrita as crias pretendem fugir da história e caem na heresia de menosprezar a humanidade do filho de Deus.
Aceitar e sublinhar a humanidade de Jesus significa reconhecer o arcano desejo de Deus de autocomunicar-se às suas criaturas, especialmente ao ser humano. Significa também ressaltar o dinamismo da compaixão que leva Deus a entrar definitivamente na condição humana e se identificar as dores e sonhos da humanidade concreta. Que significado teria fora desse dinamismo a ação de alimentar com pães e peixes uma multidão cansada e faminta?
A longa discussão que Jesus trava com seus discípulos e com as autoridades do judaísmo depois de socorrer a fome do povo está longe de ser uma simples catequese espiritual sobre sua presença real nas espécies eucarísticas. O que está em questão é o modo de conhecer e agradar a Deus: Cumprindo leis de forma mecânica? Celebrando ritos que passam à margem das estradas da vida? Fixando a atenção numa hipotética vida após a morte e desprezando os desafios da história?
“Aqui está o pão que desce do céu!”
Jesus se oferece como alimento que desce continuamente do céu e assume a carnalidade das dores e dos sonhos humanos. Segundo suas palavras, o alimento que faz a diferença e que supera tanto o maná como a simples distribuição assistencialista de víveres, é sua humanidade compassiva, mesmo quando parece extremamente vulnerável. A separação ou oposição entre divindade e humanidade expressa a dificuldade de reconhecer um Deus próximo e implicado com as lutas humanas.
Um elemento importante, que é mais que um detalhe, aparece na expressão usada por Jesus para se referir a si mesmo como pão do céu. Ele não se apresenta como pão que desceu do céu (tempo passado), mas como o pão que desce permanentemente do céu (tempo presente). “Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (Jo 6,33). Tanto o verbo descer como o verbo dar estão no tempo presente e estão referidos à missão libertadora de Jesus.
Junto com esta ênfase no tempo presente, temos a imagem espacial da descida. No horizonte simbólico e mistagógico do evangelho segundo João, descer é uma metáfora que aponta para o movimento de descida social, central na vida de Jesus e de quem o segue. A fé em Jesus Cristo e a adesão ao dinamismo eucarístico não é propriamente uma subida a Deus, mas uma descida solidária ao encontro do humano, inclusive do infra-humano e das situações desumanas.
“Todos serão discípulos de Deus.”
O limite difícil de superar, tanto para as autoridades do judaísmo como para nós, é a idéia de que servimos a Deus cumprindo algumas leis que inventamos e aceitamos como se fossem escritas por ele. O que Jesus discute com as autoridades do judaísmo não é sua origem divina ou humana, mas a resistência em aceitar sua encarnação redentora. Eles não se deixam interpelar e ensinar por sua atividade em favor das pessoas em geral e dos oprimidos em particular.
Frente a esta resistência, Jesus insiste: a comunhão com as dores e alegrias, tristezas e angústias, sonhos e esperanças dos homens e mulheres do nosso tempo é o únco caminho que pode nos levar a Deus. Este é o caminho no qual ele nos introduz. Esta é a lição que ele nos ensina com profundidade de mestre. Esta é porta que abre a história para uma vida que não tenha apenas mais duração mas seja também mais profunda e plena. O caminho que temos pela frente é realmente longo. E belo!
Jesus recorre aos profetas para enfatizar que nisso precisamos ser discípulos, que esta é a lição fundamental de Deus. Dizendo que todos serão discípulos de Deus, Jesus evita os estreitamentos ideologicos, étnicos ou eclesiásticos, e afirma a universalidade do caminho da vida. Quem cuida da vida dos outros está no caminho da vida eterna, e quem não aceita e não se engaja na ação em favor da vida das pessoas em situação de vulnerabilidade não é discípulo de Deus, se fecha à sua voz.
“Quem come deste pão viverá eternamente.”
A questão central não é simplesmente crer na presença real de Cristo no pão eucarístico mas escutar a Palavra que nos diz mediante sua contínua descida e encarnação na história humana. Em sua vulnerabilidade e no dom incondicional de si, Jesus é mais importante que o maná e supera a lei com a qual o judaísmo o identificava. E a vida que ele assegura, qualificada como eterna, não é uma vida que dura mais no tempo, mas uma vida mais dinâmica e viva: nova, plena, indestrutível.
Jesus opõe a força de vida da sua humana compaixão à insuficiência do maná. Ele lembra que o povo hebreu comeu do maná mas morreu, experimentou o malogro na realização do sonho/promessa de uma terra livre e sem males. Mas isso não ocorreu propriamente por causa da qualidade do maná, mas por causa da atitude do povo, incapaz de ouvir e obedecer a Deus (cf. Nm 14,21-23; Js 5,6; Sl 96,7). O maná, mesmo saciando a fome dos peregrinos, não garantiu a entrada na nova terra.
Eis aqui a novidade provocativa de Jesus Cristo: somente quem ouve e adere a ele, fazendo-se seu discípulo/a e alimentando-se de sua humanidade, chega à meta da travessia e alcança a terra desejada e prometida, a vida plena e abundante. Assim, reduzir seu ensino à questão da sua presença real nas espécies do pão e do vinho seria empobrecer e desviar gravemente seu Evangelho. O que está em jogo não é o sacramento da eucaristia mas a irrecusável humanidade de Deus.
“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos queridos.”
Jesus amado, te agradecemos porque nos revelas que Deus é um pai com coração de mãe e te ofereces a nós como pão que desce e alimenta nossos sonhos e nos sustentas na luta para realizá-los. Aprendemos contigo – e com pessoas grandes e generosas como Frei Tito (+10.08.1974), Margarida Alves (+12.08.1983) e Pe. Alfredinho Kunz (+12.08.2000) – que é sendo bondosos, solidários e compassivos uns com os outros que seremos filhos/as e imitadores/as de Deus pai. Alimenta com teu humano corpo e tua Palavra todos os pais, e também nossos anelos de bem viver. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

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