Em Jesus o mundo pode encontrar a vida que lhe falta.
(Pv 9,1-6; Sl 33/34; Ef 5,15-20; Jo
6,51-58)
Exatamente nestes
dias as notícias dão conta do risco de que, por causa da estiagem que golpeia
diversos países, a carência endêmica de alimentos se torne maior. Ao mesmo
tempo, assistimos quase passivos ao progressivo e violento massacre do povo
sírio, perpetrado por um ditador sanguinário, apoiado por algumas potências ocidentais
e municiado por outras, inclusive o Brasil. A festa e o congraçamento vividos
nas três semanas de olimpíadas não faz mais que maquiar superficialmente as
feridas abertas no rosto de um mundo dolorosamente dividido e carente de vida.
Quando a busca do lucro maior e mais rápido se torna a carta magna dos
autoproclamados líderes mundias, o assalto aos bens comuns e a eliminação dos
mais fracos são vistos como simples efeitos colaterais. Viver passa a ser um
perigo, ou um privilégio, e a lei da simples sobrevivência se impõe como
ditadura à maioria da humanidade.
“Deixai a ingenuidade e viverás.”
Não parece verdade
que nosso mundo seja carente de vida. Se ligamos a televisão, temos a impressão
de que sobram luzes, cores e felicidade. Se vamos ao shoping center, uma nuvem avassaladora de mercadorias nos é
oferecida a preços aparentemente acessíveis. Se entramos nos templos, nos
deparamos com pregações tranquilizantes e grupos seguros de suas próprias
virtudes. Parece que vida pulula e faz festa por todos os lados.
Entretanto, estatísticas de 2010 nos dizem que, nos países do
hemisfério sul, 500 mil mães nutrizes morrem todos os anos, a maioria por falta
prolongada de alimento durante a gravidez. E que 30% das pessoas dos países da Africa
abaixo do Saara vivem subalimentados. E o que dizer da Faixa de Gaza, uma
verdadeira prisão a céu aberto, onde vivem 1,5 milhão de pessoas e o desemprego
chega a 81%? E isso é apenas uma amostra dos horrores que existem.
“Existe alguém que deseja a vida?”
Todas as pessoas
desejam viver, e todas têm direito natural à vida. O sistema néoliberal, que
governa o mundo, os povos e seus governantes, não nega nem discute este desejo
e direito. Ele simplesmente propõe (ou impõe) alguns meios que supostamente
garantiriam uma vida feliz e abundante para todos. E usa estratégias muito
eficientes, meios de comunicação social à frente, para veicular estes ‘caminhos
de salvação’.
Eis alguns
mandamentos deste ‘evangelho’ macabro: “Só o mercado livre de limites legais garante o justo e
equilibrado acesso aos bens vitais. A privatização dos serviços públicos é o
caminho para atender os direitos dos cidadãos. Só a modernização tecnológica
pode assegurar a produção dos bens essenciais que o mundo necessita. Quando
cada um cuida de si mesmo, o resultado é o bem de todos.”
“Quem come deste pão viverá eternamente.”
Jesus é em si mesmo
uma proposta de vida. É sobre isso que ele reflete no chamado ‘discurso sobre o
pão da vida’ (Jo
6,22-58). A reflexão está claramente situada no horizonte do libertação, e faz referência explícita ou indireta ao maná e ao cordeiro,
elementos importantes da memória
do êxodo. Jesus ousa
relativizar claramente tanto o maná
como a liberdade conquistada. O maná
não salvou da morte,
e a terra livre deu lugar a novas escravidões.
O caminho que leva
à liberdade e à vida – simbolizadas no mito do êxodo e antecipadas na eucaristia – é o núcleo temático do ensino de Jesus nesta parícope. Nos 8 versículos proclamados hoje, há 9 referências
à vida/viver e 6 referências a carne/sangue! Ele é o novo cordeiro, cujo sangue
nos protege do extermínio
e cuja carne nos alimenta na travessia para o bem viver. Ele é o precioso pão que mantém a vida suscitando a fidelidade à
vontade de Deus.
O próprio Jesus de Nazaré é o caminho e a garantia
da vida plena para todos. Esse tesouro ao qual todos aspiram não é garantido por leis (nem mesmo pelas
‘divinas’ leis do mercado), ritos e instituições, mas pelo dinamismo de um amor maduro que aproxima
e identifica Deus com o Humano. O pão
vivo e o lugar onde encontramos Deus é a carne humana de Jesus. As religiões sempre querem afastar Deus do mundo, mas o Deus
de Jesus quer se aproximar dele.
“Quem consome a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu
nele.”
Recorrendo às
expressões ‘carne’ e
‘sangue’, Jesus está aludindo ao
mistério da sua morte na cruz e querendo dizer que a vida abundante é gerada e
acariciada por aqueles/as que fazem de si mesmos um dom sem limites. O amor
recebido de Deus em Jesus Cristo frutifica e permanece no amor doado
incondicionalmente ao próximo.
O cristão não dá em vista de receber, mas porque recebeu tudo
de forma abundante e gratuita.
Jesus usa os verbos
comer e beber como metáforas
que expressam a relação
dos discípulos/as com sua
pessoa. Comer/consumar sua carne e beber seu sangue significa aceitar sua humanidade, aderir ao seu
caminho, assimilar seu dinamismo de solidariedade e gratuidade. Não se trata de um simples sentimento, de uma
adesão puramente
intelectual ou de uma mera intenção,
mas de uma relação que compromete todas as
nossas faculdades.
Noutras palavras,
nos versículos que escutamos
Jesus nos expõe qual é a condição para criar a sociedade
desejada por Deus para o ser humano, a única capaz de lhe garantir vida plenamente humana e
realizar o projeto de Deus para a criação. E tal condição é o amor de todos e de cada
um por todos, sem nada regatear. E é em Jesus que recebemos esta possibilidade de
amor e de uma vida liberta dos estreitos limites dos nossos próprios medos e interesses.
“E o pão que eu darei é a minha carne entregue pela vida do mundo.”
Jesus de Nazaré é o
novo e autêntico maná, a nova e única lei, o novo e verdadeiro cordeiro. A eucaristia
nossa de cada dia é celebração comunitária
da sua vida, morte e ressurreição,
símbolo que nos chama e nos insere nesse caminho de vida. A última ceia de Jesus não é um ato isolado ou desligado da sua vida
precedente, nem um rito que
substitui simbolicamente o êxodo a ser vivido na cruz. Antes, é o vínculo
simbólico que os une radicalmente.
Não é possível
participar da eucaristia como simples cumprimento de uma obrigação, recebendo a
hóstia como um amuleto que nos une com Deus e nos livra do compromisso com as
lutas por uma vida plena para todos. Tomar parte da eucaristia sem se
comprometer com as necessidades dos que nos rodeiam é uma ofensa e uma traição
àquele que fez desta ceia o memorial profético de uma vida doada inteiramente
pela vida dos irmãos e irmãs.
“Sempre e por todas as coisas, rendeu graças a Deus que é Pai.”
Amado Jesus, pão que desce do céu para dar vida ao
mundo, cordeiro de Deus que carrega nossos pecados, caminho que conduz a humanidade
a uma vida bela e abundante da qual ninguém é excluído: ajuda-nos
a seguir o conselho de Paulo e viver como pessoas esclarecidas, e não como
insensatos, como quem sabe discernir bem qual é a vontade do Senhor em cada
momento histórico concreto. E faz com que assimilemos plenamente o amor que em
ti se fez carne, vivendo-o como dom divino em nós e como gratuidade e serviço
ao nosso próximo. E ensina-nos a aceitar as consequências da eucaristia,
mistério de dom solidário e incondicional em favor daqueles que são vistos e
tratados como últimos. Assim seja! Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
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