quarta-feira, 22 de agosto de 2012

21° Domingo do Tempo Comum


Qual é a palavra que pode sustentar nossa sede de viver?
(Js 24,1-2.15-18; Sl 33/34: Ef 5,21-32; Jo 6,60-69)

Os milagres extasiam, as canções embalam e as belas palavras encantam, mas o risco da superficialidade continua sempre ameaçando os/as discípulos/as de Jesus Cristo. Nem sempre estamos dispostos/as a pagar o preço embutido no bastismo. É muito tentador adocicar a mensagem de Jesus Cristo e colorir romanticamente o caminho do discipulado. Alguém escreveu: “Em nossa cultura moderna é difícil alguém vir a ser cristão. Dentro das premissas dessa cultura é difícil alguém viver e agir como cristão. Quando alguém tenta fazer valer efetivamente seu ser-cristão, ele próprio passa a constituir uma dificuldade para o mundo que o cerca” (F. X. Kaufmann). O diálogo entre Jesus e seus discípulos relatado por São João explicita esta dificuldade e nos chama a superar uma adesão exterior e ingênua à proposta de Jesus.
“Esta palavra é dura. Quem pode escutá-la?”
Lembremos que estamos ainda no capítulo 6 do Evangelho segundo João. Tudo começou com a partilha dos pães e dos peixes a cuja propriedade exclusiva um jovem discípulo havia renunciado. Entusiasmada com a abundância de alimento, a multidão quis estabelecer Jesus como rei, mas ele fugiu de fininho. Diante da recusa de Jesus, os discípulos começaram a ficar desorientados e tentaram fugir. Mas Jesus veio ao encontro deles no meio do mar agitado.
Depois disso, temos a longa catequese de Jesus sobre o pão verdadeiro que alimenta de fato e merece ser buscado – sua carne e seu sangue, seu percurso de humanização – e da ação que caracteriza os cristãos – crer em Jesus e fazer-se dom para a vida de todos. Com  isso Jesus confirma que o caminho da vida em abundância não passa pelo assalto ao poder mas pela aceitação da própria vulnerabilidade e pelos meios considerados frágeis, como o dom de si e a compaixão.
 “Isso vos escandaliza?”
A chamada catequese de Jesus sobre o pão da vida não tem nada de inocente, espiritualista ou inofensivo, e os discípulos entenderam  isso perfeitamente. Por isso disseram a Jesus que “este modo de falar era duro demais” e que era difícil continuar ouvindo seu ensino. De fato, tantos cristãos ainda hoje acham dificil, quando não impossível, construir a paz e garantir a vida para todos sem o recurso aos meios oferecidos pelo poder estabelecido.
Esta é a razão da crise dos discípulos: seguir alguém que não aceita ser rei, renunciar à ambição individual de estar à sua direita ou à sua esquerda, assimilar a entrega de si mesmos como caminho de realização, assumir a condição de servo/a como a mais nobre e digna do ser humano. Dominados pela expectativa do triunfo e do sucesso, muitos/as se frustram, rebelam e abandonam Jesus. Um Messias encarnado, humano e soliário lhes parece um escândalo, uma pedra de tropeço.
Mas Jesus provoca ainda mais os discípulos já escandalizados, enfatizando que é próprio do ser humano descer, que quem desce ou é rebaixado é visto por Deus como o mais nobre e perfeito. Dizendo que é o Espírito que dá vida, Jesus está apontando para o dinamismo que leva à entrega de si, para o amor, e não para algo exterior à história ou à vida humana. Mas, conhecendo-nos muito bem, Jesus adverte: “Entre vocês há alguns que não acreditam.”
“Vós também quereis ir embora?”
João observa que “a partir desse momento, muitos discípulos voltaram atrás, e não andavam mais com Jesus.” Eles acreditavam num outro Jesus, num messias feito à medida da ideologia e dos interesses individuais e da própria classe. Aqueles/as que acreditam num Deus feito à própria imagem e semelhança, cedo ou tarde acabam chegando a esta mesma encruzilhada e têm que decidir entre seguir a própria fantazia ou aderir a Deus assim como ele se revela.
Longe de ser uma simples adesão intelectual a verdades teóricas e morais inofensivas ou opressoras, a fé em Deus implica numa determinada postura ética: tratar o outro como irmão e próximo, acolhendo e respeitando sua sacralidade; representar o próprio Deus no cuidado com as criaturas; submeter-se unicamente a Deus e sua vontade e dessacralizar todos os poderes e autoridades; etc. Esta é, em outras palavras, a provocação de Josué. “Se vocês acham que não é bom servir a Javé, escolham hoje a quem vocês querem servir.”
Nunca é demais lembrar que a pergunta de Jesus se dirige a todos/as nós neste exato momento da nossa caminhada, na posição social, econômica ou eclesiástica na qual estamos: “Vocês também querem ir embora?” E a resposta não pode ser da boca pra fora, da cabeça para cima, mas consciente, engajada e consequente. Ou não é verdade que muitos de nós, inclusive religiosos/as e padres, vivemos uma fé que não passa de um verniz que nos cobre de superficialidade?
“A quem iremos, Senhor?”
“Eu e minha família serviremos a Javé”, diz Josué, provocando a resposta de todo o povo prestes entrar na terra desejada e prometida, na inauguração de uma nova ordem social, altwernativa ao ‘sistema Egito’: “Nós também serviremos a Javé, pois ele é nosso Deus. Longe de nós abandonar a Javé para servir outros deuses...” Por sua parte, Pedro, em nome de um bom grupo de discípulos e de forma um pouco resignada, responde a Jesus perguntando: “A quem iremos, Senhor?”
Hoje talvez a questão central não seja propriamente decidir entre o Deus cristão e outras imagens e experiências de Deus, entre Jesus Cristo e outros mediadores da salvação. A questão é mais de ordem prática, e se trata de decidir a que e a quem serviremos. Qual é o caminho que nos levará à vida abundante para todos: a estrada do ‘cada um para si’ ou a do ‘todos por um’? Não faltam aqueles/as que pensam que ‘quem pode mais chora menos’ e decidiram servir a si mesmos.
“A quem iremos, Senhor?” A resposta não vem da boca de Jesus, não é ditada por um suposto Espírito sempre pronto a sugerir respostas prontas. Trata-se de um discernimento que nós mesmos/as devemos fazer. De minha parte, apesar de minhas infinitas contradições, fico com Jesus Cristo e sua humanidade, com o Evangelho e sua liberdade, com o dom de mim e sua fecundidade, com o serviço aos irmãos e à sua dignidade. Não me reconheceria mais fora desse horizonte.
“Tu tens palavras de vida eterna!”
Jesus é a Palavra de Deus feita carne solidária, e suas palavras são portadoras de vida. Pedro entendeu bem: “Tu tens palavras de vida eterna.”  Apesar de tudo, Pedro havia percebido que, diante de Jesus, todos se descobrem pessoas dignas e capazes, chamadas a uma liberdade sempre mais plena e exigente, portadores de uma vida cada vez mais plenificada, peregrinos de um caminho que liberta porque jamais termina.
Crer em Jesus é experimentar uma liberdade radical, promotora da liberdade de todas as criaturas. Só quem foi libertado/a de tudo está em condições de servir. “Sejam submissos uns aos outros no amor de Cristo”, pede Paulo aos esposos e a todos os cristãos. Sub-missio, missão subalterna, estar à disposição do outro. É isso que nos leva a assumir o fardo do outro, a ser sub-stituto, a suportá-lo nas penas e sofrimentos, nos sonhos e buscas.
Longe de afirmar a suprepacia do homem sobre a mulher, do patrão sobre o empregado, do clero sobre os leigos (e assim por diante), Paulo insiste na reciprocidade da submissão dos cristãos, e afirma que ela radica no amor manifestado em Jesus Cristo. Os outros, por mais diferentes que sejam, condividem conosco a mesma humanidade, de modo que submeter-se a eles para servi-los no amor equivale a amar a si mesmo. Este é o caminho e a Palavra de vida que sai da boca de Jesus.
“Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus.”
Jesus amado, profeta temido por tua intrepidez, pão que alimenta nossa fome mais profunda, Palavra que nos mantém no belo e difícil caminho da vida! Ensina-nos a encontrar a simplicidade profunda do teu Evangelho e a vivê-lo com inocente e desarmada alegria, como o fez Dom Helder Camara (+27.08.1999). Ilumina e fortalece nossos/as catequistas: que eles experimentem gozosamente a glória de descer ao encontro dos mais pobres para ser tua Boa Notícia para eles e conduzam ao teu encontro as pessoas a eles/as confiadas. Assim seja. Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

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