segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Ano da fé (1)


Por uma fé que ajude perceber as dificuldades e superá-las.

As comunidades católicas estão fazendo memória dos 50 anos da realização do Concílio Vaticano II. Efemérides como esta são importantes, e não apenas para recordar o passado. O Papa Bento XVI anunciou um modo concreto de celebrar este acontecimento: convocou a Igreja a celebração do Ano da Fé, a ser iniciado no dia 11 de outubro de 2012 e concluído no dia 24 de novembro de 2013. E apresenta as razões, motivações e objetivos na carta motu proprio ‘A porta da fé’, de 11 de outubro de 2011.

A algumas convicções muito particulares moveram o Papa a propor este programa:  que a fé não pode ser pressuposta, pois não existe mais um tecido cultural nela inspirado; que fé enfrenta sérios questionamentos, especialmente por uma mentalidade que só aceita as verdades da ciência e da tecnologia; que o mundo de hoje tem especial necessidade do testemunho de pessoas capazes de abrir o coração e a mente do homem de hoje ao desejo de Deus e da verdadeira vida (cf. A porta da fé, 12; 15).

Entre os vários aspectos inegavelmente positivos desta iniciativa de propor o Ano da Fé, preocupa-me a intenção de dar centralidade ao Catecismo da Igreja Católica, como se fosse ele o fruto mais importante do Concílio e o instrumento mais adequado para devolver dinamismo, entusiamo e alegria à fé dos membros da Igreja católica. Pergunto-me se os 20 anos da publicação do Catecismo não é, de fato, o motivo principal da convocação do Ano da Fé. Apresso-me em esclarecer que não tenho nada contra o Catecismo, mas ele representa apenas a fé objetivada em forma de doutrina, e não a fé enquanto dinamismo espiritual, existencial e histórico.

O horizonte teológico que moveu o Concílio considera a Fé de outro modo. A Gaudium et Spes, expressão da nova relação que a Igreja quer estabelecer com o mundo cultural e político, diz que “a fé ilumina com sua luz tudo que existe e manifesta o propósito divino a respeito da plena vocação humana, orientando assim o espírito para as verdadeiras soluções” (GS 11). A fé é doutrina/luz que possibilita compreender profundamente a realidade e, ao mesmo tempo, dinamismo/orientação que ajuda a encontrar soluções concretas e eticamente aceitáveis para os problemas humanos.

Na perspectiva conciliar, não há nenhuma oposição entre o reconhecimento de Deus e a dignidade da pessoa. Pelo contrário, “o reconhecimento de Deus é, precisamente, o fundamento da máxima dignidade humana”. Assim, o primeiro passo para enfrentar as tensões e suspeitas que se criaram entre Igreja e Cultura, seria o testemunho de uma “fé viva e madura e suficientemente desenvolvida, capaz de perceber as dificuldades e superá-las”. São os mártires que dão testemunho claro dessa fé, “cuja fecundidade se manifesta pela integridade da vida, inclusive profana, na fidelidade à justiça e ao amor, especialmente em relação aos pobres” (GS 21). Uma fé autoritária ou medrosa não serve pra nada.

Esta é a perspectiva que permite que a Igreja coloque a dignidade humana acima de toda discussão e a leva a considerar com respeito “tudo que há de verdadeiro, de bom e de justo nas mais diversas instituições sociais”. Aqui nasce uma Igreja que entende sua missão como ajudar e promover todas as instituições, “no que dela dependa e que tenha relação com sua missão”  e colocar-se  “a serviço do bem de todos, gozando de plena liberdade em qualquer regime que seja, desde que reconheça os direitos fundamentais da pessoa e da família e as necessidades do bem comum” (GS 41,42).

Há algo de errado e triste quando, por causa de tendências de restaurar instituições e formas de vida que ignoram ou contestam o Concílio, nos vemos na obrigação de lutar aguerridamente para defender posturas e declarações de meio século atrás. E quando a Igreja terá tempo de se ocupar do diálogo cooperativo com o mundo de hoje? Oxalá possamos celebrar a memória agradecida dos 50 anos do Concílio Vaticano II sem menosprezar ou trair suas intuições fundamentais.
Itacir Brassiani msf

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