sábado, 4 de agosto de 2012

Miriam de Nazaré (13)


Este é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do ensaio, que apresenta uma reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.

3.3    O ensinamento libertador do Magnificat (3)

Da centralidade do discurso teológico do Magnificat sobre Deus, em seus três campos semânticos assinaladosbrota um discurso teológico sobre Miriam de Nazaré, a serva humilde e pobre de Deus, proclamada bem-aventurada por todas as gerações e em quem Deus fez grandes coisas (cf. Lc 1,48-49). Deste autorretrato, colocado pelo evangelista nos lábios da mãe de Jesus, destaca-se uma característica central que estabelece o elo de transição para o tema da pedagogia da libertação. Referimo-nos ao conceito de “humilhação” (em grego: tapeínôsis) do versículo 48 — uma inserção lucana no poema preexistente — e ao termohumildes” (em grego: tapeinós) do versículo 52.

O vocábulo grego tapeínôsis, de difícil tradução nas línguas modernas, a partir da raiz tapeín, oferece correspondência com o adjetivo hebraico anawim e com o tema dos pobres. Corresponde, portanto, ao conceito de pobreza, inicialmente no sentido de carência de bens materiais, mas também no sentido de outras contingências humanas, como a esterilidade de Lia (cf. Gn 29,32) e de Ana (cf. 1Sm 1,11), a aflição de Agar (cf. Gn 16,11), os trabalhos de Jacó na casa de Labão (cf. Gn 31,42), a servidão de José no Egito (cf. Gn 41,52), a humilde condição social de Gedeão (cf. Jz 6,15) e várias outras vicissitudes do povo judaico, especialmente os da dominação estrangeira (cf. Dt 26,7; Is 40,2; 2Mc 3,51; Jd 6,19). São tipos de “pobrezaque o texto hebraico traduz com os termos anaw (pl. anawim) e ani e cuja raiz expressa a idéia de estarcurvado”, “dobrado”.

No caso do Magnificat, o termo tapeínôsis cumpre esta pluralidade de conotações que se expressam principalmente em nossos conceitos de “humilhação”, “humildade” e “pobreza”. A pessoa humilhada, humilde e pobre, na qualidade de anaw ou ani, era aquela que se refugiava no Senhor, na expectativa de obter redenção e socorro. Todo o contexto do canto do Magnificat assinala para os termos tapeínôsis  e  tapeinós o significado de pobreza material, mas também e principalmente o sentido de “condição humilde”, de “pequenez”, de sua condição de mulher e de virgem e de insignificância aos olhos do mundo. Sentindo-se objeto da solicitude de Deus, Miriam se solidariza com os que nada são, nada podem e nada têm, isto é, com os verdadeiros “pobres de Deus” da nova economia da salvação.

Chegamos, assim, à parte central do Magnificat: “Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou. Cumulou de bens a famintos e despediu ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53). Trata-se do “cântico por excelência da libertação”, do hino profético sobre a mudança radical do status quo:

“Poucas vezes ouviram-se palavras mais sinceras, gratificantes e explosivas. São palavras sinceras porque refletem a experiência mais íntima de uma mulher visitada por Deus; gratificantes porque evocam a presença de um Deus que age por meio do amor e explosivas porque aludem à mudança radical da nossa terra nas três ordens fundamentais da ideologia, da política e da economia” (Pikasa, apud AUTRAN, op. cit., p. 104).

Esta parte central do Magnificat (v. 51-53) é um poema que exalta os humildes e insignificantes, derrubando os poderosos e arrogantes. São anunciadas três grandes rupturas estruturais. A primeira atinge a postura de vida dos homens de “coração orgulhoso”. Ao contrário dos mansos, os soberbos e orgulhosos divinizam seu saber e poder e se apegam à sua visão de mundo, científica, filosófica ou religiosa. Estamos, basicamente, no âmbito da ideologia, onde os soberbos se fecham ao diálogo com os outros e à solidariedade, pois, pretensiosamente, nada têm a aprender. A invectiva anti-ideológica do Magnificat é contundente: o Todo-poderoso decreta, “com a força de seu braço”, a dispersão dos dominados pelo orgulho, revelando, assim, a fragilidade das suas pretensões e as limitações da sua soberbas.

A segunda ruptura atinge o nível do poder: “Depôs poderosos de seus tronos e a humildes (humilhados, pobres) exaltou” (v. 52). O trono é, na linguagem bíblica, o símbolo tanto do poder soberano do rei quanto do poder de julgamento do juiz. Estamos no âmbito da política, tanto no nível das micro como das macrorrelações. Os “poderosos” agarram-se ao poder, seja político ou jurídico, num travestismo de legalidade, mas com o intuito de defesa de seus interesses inconfessáveis, de natureza pessoal, étnica ou de classe. O Magnificat decreta, pela boca de Miriam, a deposição dos poderosos deste mundo (em grego: dynástas), dando a entender que Deus, fiel à sua opção pelos pobres, restitui a dignidade roubada das vítimas, dos fracos e dos derrotados. “O Magnificat pode ser proclamado hoje como o grande hino da defesa da cidadania, do direito básico do ser humano, a partir de Deus” (MURAD, op. cit., p. 142).

A terceira ruptura afeta o nível econômico: “Cumulou de bens a famintos e despediu ricos de mãos vazias” (v. 53). O versículo reflete uma realidade histórica ou um anelo utópico? Do ponto de vista econômico, a humanidade se locupletou; a tecnologia se tornou mais sofisticada e a economia se globalizou como um todo, impulsionada pela ciência, tecnologia e informática. Apesar do aumento quantitativo e qualitativo da produção de alimentos, a pobreza e a fome não pararam de crescer em termos globais. A absolutização do mercado, transformado em fetiche e ídolo moderno pelos defensores da doutrina neoliberal hegemônica, provocou concentração de riqueza, de terra e de renda e, no reverso da medalha, a exclusão social, cultural, econômica e política de povos e populações inteiras, quando 20% dos habitantes do planeta possuem mais de 80% da renda mundial.

A análise do esquema estrutural dos versículos 52 e 53, na forma de quiasmo, permite compreender melhor o sentido mais profundo dos mesmos, através de dois paralelismos: os conceitos afins “poderosos” do v. 52 e “ricos” do v. 53b se contrapõem aos conceitos antitéticos “humildes” do v. 52b e “famintos” do v. 53a. Por sua vez, os quatro verbos, no tempo aoristo da conjugação grega: “depôs”, “exaltou”, “cumulou” e “despediu”), também se correspondem de maneira sinonímica: derrubar e despedir, exaltar e cumular, e de forma antitética: depor, oposto de exaltar, e cumular de bens como oposto de despedir de mãos vazias. Além disso, os “poderosos” e os “ricos”, objetos do julgamento de Deus, são marcados com a etiqueta “homens de coração orgulhoso” (v. 51b). É a minoria social que, assentada no dinheiro (poder econômico) e na política (poder decisório), oprime a maioria da humanidade, marginalizando-a e desprezando-a do alto do seu orgulho (poder ideológico).

As três rupturas profetizadas e ensinadas no Magnificat lucano preludiam a reviravolta de situações que aparecerão em outras partes do evangelho de Lucas, onde Jesus dá um sentido teológico e uma dimensão mais profunda à regra de prudência humana presente no refrão popular: “Todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (cf. Lc 14,11; 18,14). O tema da libertação total dos oprimidos do cântico do Magnificat está também em perfeita sintonia com o discurso programático de Jesus na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19; cf. Is 61,1-2).

O ensinamento radical que a mestra do Magnificat nos propõe em sua lição de sabedoria pedagógica, como jovem mãe do Messias e mãe da “nova humanidade”, se resume no seguinte: com a oblação generosa dos “pobres de Javé” (incluindo Jesus pobre, Miriam pobre e os pobres de todos os tempos) se destrói a abundância econômica e escravizante dos ricos; com a oblação dos humildes e humilhados, se destrona a dureza política impositiva dos poderosos, e com a transparência dos mansos e tementes a Deus se dispersa e vence a opressão ideológica dos soberbos. Trata-se de um “conteúdo programático” libertador e transformador que faz do Magnificat um “canto de libertação integral do homem todo e de todos os homens”, numa dimensão social e política da nossa fé e dos nossos compromissos cristãos. Inserido no plano da salvação de Deus, o Magnificat é um hino de libertação que não se submete a uma interpretação apenas de ordem místico-espiritual, intimista e individualizante, como também não a uma exploração meramente secularizante, de luta de classes apenas intramundana, sem horizontes de transcendência e divinização do humano.

A pedagogia do hino do Magnificat nos conduz à percepção da radicalidade do “novo”, profetizado no Antigo Testamento, gerado e dado à luz por Miriam de Nazaré, realizado no gesto da gratuidade suprema da paixão, morte e ressurreição de Jesus e continuado no Povo de Deus, construindo o “novo céu e a nova terradefinitivos. O Magnificat tematiza a consciência profética e pedagógica da mãe do Messias, reconhecendo a ação transformadora de Deus nas relações sociais e revelando-se mulher comprometida com a história do seu povo e com o destino da humanidade.
Bertilo Brod

Nenhum comentário: