sábado, 11 de agosto de 2012

Miriam de Nazaré (14)


Esta é a conclusão do ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Agradeço imensamento ao amigo e professor por nos acompanhado, ao longo de três meses, com estas belas, oportunas e profundas reflexões mariológicas. Itacir msf

4. Conclusões

Não é difícil extrair um leque de conclusões do presente ensaio, primeiramente, das considerações expendidas sobre Miriam de Nazaré como mulher-ícone do feminino. Sua exemplaridade e simbologia decorrem de um novo olhar sobre a mariologia que tome em consideração tanto os avanços das pesquisas exegéticas e teológicas como a permanente busca de concretude diante das abstrações totalizantes da racionalidade moderna. A redescoberta do símbolo coincide com a emergência do feminino e do feminismo, ligados aos processos de emancipação e libertação da modernidade e pós-modernidade. A exigência do retorno ao concreto ocorre paralelamente à redescoberta do símbolo. Miriam de Nazaré não deve ser vista como ser celeste, acima das vicissitudes históricas e das imanências humanas, mas na ordinariedade da sua situação histórica, social e religiosa. Esta mesma situação histórica, social e religiosa precisa ser considerada em seu valor evocativo e simbólico. No símbolo se percebe maior densidade de significados do que num logocentrismo racional e estéril. O símbolo nos remete ao mistério da vida e das experiências vividas. “Não é o conhecimento que ilumina o mistério, é o mistério que ilumina o conhecimento. Podemos conhecer somente graças às coisas que jamais conheceremos” (Evdokimov, apud FORTE, op. cit., p. 16).

Isto se aplica particularmente ao discurso sobre Miriam de Nazaré que, como mulher do povo do seu tempo e como mãe de Jesus de Nazaré, viveu a concretude da experiência da feminilidade e da maternidade, mas como eventos de graça e sentido salvífico, marcados, porém, pela obscuridade e pela isenção de certezas racionais: “Como será isso?...” (Lc 1,34), pela busca de significado mais profundo: “Maria conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração” (Lc 2,19.51), pelo processo de peregrinação progressiva na : “Eles, porém, não compreenderam a palavra que ele lhes dissera” (Lc 2,50), mas, sem deixar de fazer a aposta confiante no projeto e desígnio de Deus em seu filho: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). Tudo isso significa que o discurso sobre a jovem mãe de Nazaré, a partir dos fundamentos normativos e dos testemunhos narrativos das Escrituras, nos remeterá “... à excelência da vida, àquela experiência do Mistério que a envolveu como envolve analogamente aqueles que creem, e nisso remeterá à Transcendência, que a palavra humana não pode captar e que também se faz proximidade e imanência de modo absolutamente imprevisível e singular, precisamente a partir do anúncio à Virgem” (FORTE, loc. cit., p. 16).

Miriam de Nazaré é, neste sentido, a mulher-ícone do mistério, mas, ao mesmo tempo, a mulher-ícone do feminino. Como tal, coloca desafios tanto à filosofia como à teologia feministas. Enquanto teoria filosófica da libertação feminina, o feminismo se apresenta como valorização e integração das diferenças de gênero, na reciprocidade homem-mulher, que não mortifica e nem expropria nenhum polo da relação, mas que, amparado precisamente numa ontologia relacional, dá conta da origem metafísica da reciprocidade e do caráter relacional do masculino e feminino humanos. A reciprocidade ontológica entre varão e mulher afirma a absoluta dignidade de ambos, expressa sua abertura mútua e sublinha a exigência constitutiva e constituinte da interlocução e dialogicidade libertadora do homem que traz em si a mulher (anima) e da mulher que traz em si o homem (animus). A usurpação do masculino pelo feminino ou do feminino pelo masculino desumaniza o que é radicalmente humano: ser varão ou mulher.

Enquanto teoria teológica do feminino, o feminismo se interroga sobre os fundamentos teológicos da imagem masculina de Deus, em prejuízo do “rosto materno de Deus” e de como a religião, a Igreja e a teologia, vistas como representantes do poder patriarcal e desconhecedoras da experiência feminina de metade da raça humana, colaboraram historicamente na opressão psíquica e sexual e na desqualificação  dos dons e carismas tipicamente femininos, em relação à dignidade do corpo da mulher e no que se refere à sua participação igualitária na estrutura eclesial e eclesiástica, em vista da construção do Reino de Deus.

A teologia feminista identifica na mariologia profética do Magnificat a mulher humana ousada que pronuncia o “sim” do assentimento ativo — e não meramente passivo —ao projeto redentor de Deus. Identifica, outrossim, a escolha corajosa da parceira na libertação antecipatória e escatológica da comunidade messiânica, mas também a mulher que não duvidou em proclamar que os poderosos seriam depostos dos tronos, que os orgulhosos seriam dispersos nos pensamentos dos seus corações, que os ricos seriam despedidos de mãos vazias e que os humildes seriam exaltados e  os pobres repletos de bens. No horizonte de uma antropologia do feminino brota uma teologia miriana que eterniza o feminino em Miriam, conferindo-lhe caráter soteriológico e escatológico, ao dizer seu “fiat” e ao propiciar, na plenitude dos tempos, a encarnação do Filho de Deus. Miriam de Nazaré se abriu à plenitude da feminilidade ao consentir ser mãe de Jesus “na história da salvação que é a história da progressiva assimilação do homem por Deus e de Deus pelo homem” (BOFF, op. cit., p. 267).

Além de mulher e mãe na plenitude de sua feminilidade, Miriam de Nazaré é a mestra por excelência e a pedagoga original que conduz à escola da vida, da sabedoria e da salvação libertadora[i]. Em vários momentos da reconstrução do perfil bíblico da mãe de Jesus, acenamos para a dimensão pedagógica e educativa  das atitudes e das palavras de Miriam de Nazaré. Relembremos os momentos nucleares e mais cruciais e significativos. No início do ministério público do seu filho, ao ensejo de uma festa de núpcias em Caná da Galiléia, Miriam constata que o vinho terminara, motivo de constrangimento para os noivos e de decepção para os convidados: “Não têm mais vinho” (Jo 2,3). Juntamente com o trigo e o azeite, o vinho representava para os judeus um dos elementos essenciais da vida humana. No Antigo Testamento, o vinho, além da sua finalidade de alegrar a existência e as festas humanas, simboliza a felicidade dos tempos escatológico-messiânicos. No Novo Testamento, o vinho simboliza a novidade radical do Reino de Deus em Jesus de Nazaré.

Apesar da resposta enigmática dada por Jesus à observação da sua mãe, esta recomenda aos “serventes”: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). A exortação de Miriam, vista na teologia tradicional como uma postura de mediação e intercessão — “mãe de todas as graças” —, na verdade, dentro do propósito teológico joanino, nos ensina que, como discípula exemplar, ela também sabe aceitar o distanciamento e autonomia do filho. Ao mesmo tempo, porém, suas palavras demonstram confiança radical em Jesus, atitude básica que define a verdadeira fé. O ensinamento pedagógico de Miriam, no episódio deste “primeiro sinal” de Jesus expressa a radicalidade da confiança que devemos ter nos desígnios divinos, por mais enigmáticos que pareçam.

Outro momento-chave da atitude pedagógico-educativo de Miriam de Nazaré encontramos no relato lucano do reencontro de Jesus, aos doze anos, no Templo. Após três dias de procura, José e Miriam encontram Jesus no Templo, “sentado em meio aos doutores, ouvindo-os e interrogando-os” (Lc 2,46). Tomando a dianteira, Miriam, de maneira delicada, mas firme, reprova o comportamento de Jesus. Fica explícito o direito dos pais de recriminar uma postura do filho tida como censurável. A resposta de Jesus, novamente incompreensível para seus pais, revela a ruptura de Jesus dos laços familiares e sua total dedicação à causa do Pai.

Apesar de não compreender plenamente o mistério de seu filho, Miriam, como peregrina na , buscou compreender o sentido dos apelos de Deus na sua vida e na do seu filho. Caminhar na significa vivenciar a dialética da compreensão/incompreensão. Comporta riscos, insegurança, um atirar-se no escuro e viver em incertezas. A postura pedagógica de busca incessante de compreender para crer intellige ut credas — fez de Miriam uma discípula que “conservava a lembrança de todos esses fatos em seu coração” (Lc 2,51), meditando-os. O objeto da meditação são os eventos constitutivos da nova aliança de Deus com seu povo. Os eventos e as palavras que se referem a Jesus são conteúdo de “memóriapersistente e penetrante de Miriam de Nazaré. Ela recria em si mesma o itinerário da experiência de libertação do povo de Israel: rememora, aprofunda e atualiza esta libertação. Estamos no ápice da prática autoeducativa e pedagógica da mãe de Jesus. Na medida em que ela se educa na , na oblação de si e na pregação denunciadora dos malefícios do poder político, econômico e ideológico, ela também nos ensina pela pregação anunciadora da libertação dos humildes, pobres e humilhados da terra.

É nesta atitude polivalente dos procedimentos pedagógicos e educativos de Miriam de Nazaré que ela se torna a mulher forte e sábia, a mestra e “sede da sabedoria”. A sabedoria de Miriam de Nazaré não significa visão beatífica antecipada ou vivência infusa, como se conhecesse tudo a respeito do seu filho, desde o seio materno. Se tivesse plena posse da natureza e do alcance da missão messiânica do seu filho e da sua própria participação no projeto de libertação da humanidade, por que o evangelista teria afirmado que “seu pai e sua mãe estavam admirados” (Lc 2,33) ou “Eles, porém, não compreenderam a palavra que ele lhes dissera” (Lc 2,50)? Ao invés, ela se encontrou no centro dos “desígnios insondáveis e dos caminhos imperscrutáveis” de Deus, como lemos na epístola aos Romanos (cf. Rm 11,33).

Ainda concernente à sabedoria da mãe de Jesus, é interessante transcrever a opinião do Doctor Angelicus, Tomás de Aquino: “Não podemos duvidar que recebesse a Santa Virgem, e excelentemente, o dom da sabedoria”[ii]. Contudo, examinando mais atentamente a opinião do Aquinate, descobre-se que essa sabedoria era restrita, porque “teve o uso da sabedoria, na contemplação (...). Mas, não teve o uso da sabedoria para que ensinasse, pois isso não convinha ao sexo feminino” (Id., ibid.), amparando-se numa afirmação extremamente infeliz de são Paulo: “Eu não permito que a mulher ensine...” (1Tm 2,12).

Em suma, a mestra de Nazaré, a “sede da sabedoria” e a pedagoga “cheia de graça” da libertação nos deixou alguns ensinamentos como verdadeiras “lições de casa”:
·      a tarefa de estudar e ensinar a mariologia à luz da antropologia feminina e da teologia feminista, para descobrirmos o verdadeiro “rosto materno de Deus”;
·      a tarefa de identificar na Miriam de Nazaré a mulher-ícone do Mistério, cuja interpretação simbólica deve superar o viés cognitivo dos dados bíblicos, pela estrutura do conhecimento, para atingir a via afetiva da “sede da sabedoria”;
·      aprender que, em Miriam de Nazaré, a transcendência (o lado de lá) de Deus se fez condescendência (proximidade no lado de cá), pela encarnação de Deus no seio da mãe de Jesus;
·      aprender a lição da necessidade de um contínuo e crescente peregrinar na fé, de um “crer no incrível”, expresso no “fiat” cotidiano diante dos mistérios insondáveis da vida;
·      e, principalmente, cantar, viver e pregar profeticamente o hino do Magnificat como o grande ensinamento educativo e pedagógico de libertação dos “pobres de Deus”, destinatários privilegiados do envio do Filho de Deus, “nascido de mulher”, para que todos alcançassem a filiação divina[iii].
Bertilo Brod


[i] Seria assaz sugestivo e pedagógico resgatar, neste contexto, o significado profundo da invocaçãoSedes sapientiae” (“sede da sabedoria”) da ladainha de Nossa Senhora.
[ii] “Dicendum quod non est dubitandum quin Beata Virgo acceperit excellenter donum sapientiae”. Tomás de Aquino. Suma Teológica. Vol. VIII, III Parte, questão 27, art. 5, ad 3. 2. ed. Porto Alegre: EST/Sulina/UCS, 1980, p. 3738.
[iii] O presente ensaio estava ultimado quando apareceu a publicação do livro de Augusto Cury, Maria, a maior educadora da história, na qual ao autor examina dez princípios que Maria utilizou para educar o Meino Jesus. Não se instrumentaliza de uma visão teologia ou religiosa da Mariologia, e sim de alguma percepção proveniente de alguns ângulos da psiquiatria, psicologia, filosofia e pedagogia. A 2.ed. desta obra apareceu em 2010, pela Editora Planeta do Brasil, de São Paulo.

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