terça-feira, 11 de setembro de 2012

Festa da exaltação da Santa Cruz


A loucura de Deus é mais sábia que os homens.
(Nm 21,4-9; Sl 77/78; Fil 2,6-11; Jo 3,13-17)
À primiera vista, parece coisa de mau gosto exaltar a cruz. Mais estranho ainda é dedicar uma festa litúrgia a essa exaltação. Afinal, a cruz normalmente lembra sofrimento, peso, morte, violência. Não dá pra esquecer que a cruz era o instrumento mediante o qual o império romano torturava e aplicava a pena de morte aos rebeldes políticos e aos escravos fugitivos. Sabemos que na cruz foi torturado e executado Jesus de Nazaré, a quem chamamos Cristo. E desde esse fato ocorrido em Jerusalém mais ou menos no ano 30 da era cristã, sem perder seu significado de violência, a cruz adquiriu um sentido radicalmente novo: nela o próprio Deus padeceu solidariamente e selou uma nova e eterna aliança com a humanidade; nela o amor de Deus alcançou o inalcançável e se tornou orreversível.
“Deus amou tanto o mundo...”
Do ponto de vista da liturgia católica, a semana que vai de 14 a 21 de setembro é interessante: celebramos a exaltação da cruz no dia 14; fazemos memória de Nossa Senhora e suas dores ao pé da cruz no dia 15; recordamos Nossa Senhora da Salette e suas lágrimas no dia 19. Começamos com a glória da cruz, passamos pelas dores assumidas de forma humana e solidária e termimanos com as lágrimas brilhantes da compaixão.
É preciso evitar o caminho fácil e tentador de enquadrar essas festas numa perspectiva espiritual intimista e num horizonte psicológico sadomasoquista. Prestamos um péssimo serviço ao Evangelho e à humanidade quando aproveitamos dessas celebrações para sublinhar a necessidade de aceitar e até buscar sofrimento, como se ele fosse por si mesmo redentor. Ou quando procuramos ver nelas um convite à resignação às dores da vida e à submissão aos que praticam a violência.
Estas celebrações são cristãs e adquirem seu sentido quando relacionadas com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Exaltamos a cruz porque nela o amor de Deus pela humanidade oprimida e sofredora superou todas as possibilidades. Recordamos Nossa Senhora das Dores para ressaltar sua solidariedade e presença junto às pessoas que sofrem. Celebramos Nossa Senhora da Salette para não esquecer que a verdadeira beleza está na atitude de compaixão.
“Também o Filho do Homem será levantado...”
A cruz está presente por todo o lado. Feita de ouro, prata ou madeira, ela pende do pescoço de muitos/as de nós. Imponente e solitária, está plantada em muitos lugares altos e é vista de longe. Discreta e consoladora, está presente nos quartos de muitos hospitais. Embelezada e solene, ocupa um lugar central nos nossos templos. Estilizada, esquecida e às vezes escarnecida, pende nas paredes dos tribunais e parlamentos.
Já que o sentido da cruz nunca foi e hoje também não é unívoco, precisamos sempre de novo elaborar o sentido de sua presença nesses lugares. À luz do que aconteceu com Jesus Cristo, o sentido da cruz não pode ser a afirmação de um poder nem um apelo à submissão. Antes, é memória acusatória da violência dos poderes instituídos e ingente convite à resistência e à rebeldia profética frente às instituiçoes que oprimem mediante seus agentes e estruturas.
“Para que todo aquele que nele crê não pereça...”
Para o império romano a cruz era um sinal inequívoco de condenação daqueles que eram considerados rebeldes e perigosos. Para os judeus, era o sinal trágico da maldição e do abandono por parte de Deus. Para os cristãos de todas as denominações é a memória de Jesus, a prova irrefutável do amor de Deus. “Deus amou de tal forma o mundo que entregou seu filho único para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna.”
Não é humana nem cristã uma doutrina que ensina que Jesus morreu na cruz para pagar nossa dívida a Deus. Um Deus que exigisse o sangue do próprio filho não seria Deus mas um ídolo violento e sanguinário. Deus não pediu o sangue do Filho, mas confiou a ele a missão de mostrar de um modo irrefutável e definitivo a fidelidade do seu amor para com as criaturas, especialmente para com os fracos e sofredores. No amor do Filho está o amor do Pai. A cruz imposta ao Filho é também imposta ao Pai. Nele, com ele e por ele Deus chega à forma extrema do amor.
A forma extrema e pura do amor é a compaixão, e é isso que vemos na cruz. Nela ecoa a Palavra viva de Deus que grita silenciosamente: “Eu não condeno ninguém! Eu amo cada uma das minhas criaturas, e meu amor não tem limites. Todos são meus filhos e filhas, e jamais perderão essa dignidade!” Mas também proclama em forma de advertência e orientação: “Não haverá mudança duradoura nem liberdade verdadeira senão mediante a compaixão e solidariedade.”
“Por isso, Deus o exaltou acima de tudo.”
Eu sempre me impressiono com a beleza e a profundidade do hino paulino que escutamos hoje na liturgia. Nele, a comunidade cristã sublinha que Jesus Cristo não se apegou a privilégios nem hierarquias: apresentou-se como simples pessoa humana, sem nenhum título; assumiu o lugar dos últimos, dos escravos; não fugiu diante da ameaça da morte violenta e desceu ao inferno mais profundo, escuro e degradante.
Mas é importante ressaltar também que ele não percorreu esse caminho por razões filosóficas ou ascéticas. Foi o amor compassivo e soliário aos mais frágeis e desprezados dos filhos de Deus que o conduziu por esse caminho de descida e esvaziamento. O amor esvazia, aproxima, trata o outro como igual, suscita e sustenta o serviço. Nessa situação na qual normalmente vemos humilhação e anulação, Deus revela sua plenitude e sua glória.
Na cruz está a glória de Deus porque nela temos a expressão máxima de sua pró-existência, do seu amor. A glorificação não é uma subida posterior à descida, uma plenitude posterior ao esvaziamento, mas a própria descida e o próprio vazio solidários. A exaltação de Jesus é sua crucifixão, e não um momento posterior. Sem essa expressão máxima de humanidade e compaixão a ressurreição teria sido indigna de Deus, pois seria a simples afirmação de poderes e privilégios.
“Em o Nome de Jesus, todo joelho se dobre...”
É por isso que, diante de um dinamismo e um evento tão maravilhoso como emancipador, como que caímos de joelhos. E não porque nos sintamos humanamente anulados, mas porque intuímos que estamos diante do que há de mais belo, profundo e verdadeiro a respeito de nós mesmos. Jesus é a realização plena daquilo que todas as pessoas humanas somos chamados/as a ser. Nele, não existe pobre e proscrito que não possua dignidade.
Proclamamos que esse homem semelhante a nós, esvaziado e solidário, servo e crucificado, é Senhor porque nenhum outro merece nossa adesão, nenhum outro pode dar-nos lições que libertam e constroem. Ele é Senhor porque é Servo e sendo Servo, e não por uma espécie de revanche ou vingança de um pai poderoso. Só o amor é digno de fé. Só a liberdade é digna do nosso serviço. Somente um Deus assim compassivo é digno de reconhecimento.
Assim, a cruz se converte em caminho, em programa de vida. Como cristãos já não queremos outra glória, já não precisamos inventar desvios ou atalhos. Cremos que o único caminho que possibilita um futuro para a humanidade desolada e dividida é esse do amor que se faz dom, da liberdade que se faz compaixão, do/a primeiro que se faz último/a e servidor/a. Fora disso só resta a competição predatória e a barbárie mais ou menos disfarçada de civilização.
“Despojou-se, assumindo a forma de escravo...”
Jesus de Nazaré, Deus despojado de todo poder ou privilégio,  homem elevado à cruz por tua compaixão solidária: que o sinal da cruz que fazemos frequentemente, unindo-o com o nome de Deus tri-uno seja sempre carregado do seu sentido cristão: o propósito de pautar nossa vida e nossas decisões pela compaixão e pelo serviço, marcas registradas da tua existência e glória dos homens e mulheres livres. Que o sinal da cruz diga a nós mesmos e a quem quiser ouvir que é por esse caminho que a humanidade garantirá liberdade e vida para todos/as. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

Nenhum comentário: