quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Finados

A morte é como o parto: nela somos dados à Luz.
(Is 25,6-9; Sl 24/25; Rm 8,14-23; Mt 25,31-46)

Dia dos finados, dia de saudade, de reflexão e de esperança. O que é mesmo que nossos entes queridos ‘finalizaram’: o sofrimento? as projetos? a dor? a fé? a vida? Este dia é um convite a refletir sobre aquilo que dá sentido verdadeiro e duradouro à nossa vida, a decidir responsavelmente sobre o modo de conduzir os dias que nos restam, a expressar sem pudor a saudade que nos deixaram aqueles/as que partiram. No interior dos templos e centros comunitários ou no descampado dos cemitérios, repletos de túmulos brancos ou cultivados como se fossem jardins, renovemos nossa convição de que, no tempo presente e conosco, a criação inteira está gemendo, mas como em dores de parto.
 “Alivia as angústias do meu coração...”
Não dá para negar ou escamotear: a morte sempre é uma perda. A fé e a religião não podem ter a pretensão de oferecer soluções fáceis ou orações que funcionam como calmantes para o real fracasso que a morte representa. Ninguém pode impunemente ignorar esse desfecho inexorável e devastante que chega primeiro às pessoas que muito estimamos e depois, queiramos ou não, esperemos ou não, se abate sobre nós mesmos/as.
A morte é uma perda irreparável. No momento em que a pessoa, no alto da sua maturidade, acumulou experiências, selecionou ensinamentos e provou a sabedoria, os/as amigos/as e familiares, assim como toda a sociedade, não podem mais contar com ela. E o que dizer quando um/a jovem, com toda a vida pela frente,  materialização dos nossos sonhos e utopias, nos é roubado/a brutalmente? É como a água que foge da palma da mão e corre inexoravelmente entre os dedos...
É verdade que nem todas as perdas importantes nos vêm através da morte. Há aqueles/as que perderam todas as razões para viver, mesmo que seus anos se prolongam. E também aqueles/as que resolutamente nos dão as costas, enveredam por caminhos solitários e cinzentos, se subtraem aos nossos olhos e ao nosso afeto. Ou fecham as mãos e o coração a toda e qualquer necessidade de quem dele necessita para viver com um pouco de dignidade e alegria.
“O Senhor Deus enxugará as lágrimas de todas as faces.”
vazio deixado pelas pessoas queridas que se foram é tão grande e o certeza de que seguiremos o mesmo rumo desconhecido é tão desconcertante que procuramos desesperadamente um sentido para essa realidade que chamamos morte. E o fazemos através de gestos e símbolos: as flores, as velas, a oração de súplica e de agradecimento, as fotografias, a narração da vida de quem se foi, a visita ao cemitério. São gestos e símbolos que expressam a saudade, a reflexão e a esperança.
As flores lembram a beleza inigualável das pessoas que tivemos a graça de amar e que nos amaram gratuitamente. Não fazem propriamente memória de pessoas perfeitas e puras, firmes e inabaláveis, mas de seres que em sua insuperável ambiguidade nos ajudaram a viver melhor. Pessoas que sendo diferentes das outras no imenso jardim da vida, nos marcaram por sua originalidade. Que saudade daqueles/as que, como Jesus, nos amaram apesar e até por causa dos nossos limites...
As velas também têm um quê de saudade. Mesmo quando seu brilho é diminuído pela penetrante luz do sol e seu discreto calor é abafado pelo mormaço de um verão que apenas se anuncia, as velas que acendemos, junto às sepulturas ou alhures, pretendem loucamente recuperar o suave brilho daqueles olhos e rostosque o passar do tempo quase apagou. Como nos parecem luminosos os dias pretéritos, quando compartilhávamos a vida com aquelas pessoas queridas...
“Sabemos que que toda a criação, até o presente, está gemendo como em dores de parto.”
A saudade é capaz de provocar gestos inesperados, entre os quais dois me chamam muito a atenção: homens sempre acostumados à sisudez transitam pelas ruas carregando ramalhetes de flores; pessoas pouco afeitas a manifestações públicas de fé não se envergonham de acender velas ou de permanecer longos momentos em profundo e agradecido recolhimento, numa oração verdadeira e sem palavras, voltada talvez a um Deus cujo nome não conhecem ou cujo rosto perdeu seus contornos.
Acontece que o dia dos finados não celebra apenas a saudade. A saudade cede espaço à esperança, mesmo que esta apareça de forma tímida e quase inexpressiva. E essa esperança diz, antes de tudo, que “uma dor assim pungente não há de ser assim inutilmente”, que a chama da vela não se apaga para sempre, que depois das flores vêm os frutos e as sementes... Enfim, que a sepultura das pessoas que amamos, apesar da ambiguidade da nossa linguagem, não é a última morada delas.
Assim, as flores tão frágeis quanto belas e simples que carregamos pelas ruas e depositamos junto às sepulturas falam da nossa esperança de que a vida daqueles/as que nos deixaram é semente que não pode deixar de germinar. Falam também da esperança de que nossa própria vida poderá desabrochar numa beleza que hoje não conseguimos perceber. Falam, enfim, da esperança de que um dia conseguiremos olhar menos para os defeitos e mais para a bondade que vai no coração das pessoas.
“Senhor, quando foi que...?”
Sendo uma jornada marcada pela saudade e pela esperança, o dia dos Finados é também um oásis de reflexão no árido deserto da inconsciência e do ativismo. Apesar de tudo, sentimos necessidade e decidimos parar um pouco, avaliar nossas escolhas, fazer um balanço dos resultados obtidos, reordenar os valores que nos orientam, discernir o valor absoluto escondido em cada instante, desfrutar o gosto de paraíso de tantas experiências. E o Evangelho de hoje oferece os critérios para essa avaliação.
As flores, belas e frágeis, falam da beleza e da vulnerabilidade da nossa existência: hoje estamos fortes evigorosos, mas amanhã podemos murchar, secar e desaparecer. Mas o que importa mesmo é que hoje vivamos com a inteireza, a beleza e o abandono das flores.  As velas nos dizem que o amor é eterno porque é chama: ilumina e aquece, mas o faz consumindo-nos pouco a pouco, e, sendo chama, não dura eternamente. Importa menos a extensão dos anos que a intensidade e a profundidade dos vínculos.
Vivamos como se não houvesse amanhã, ou de modo que o amanhã seja pleno de vida. A cida não se resume a um negócio: investimos algo com a intenção de ter um bom retorno. Tenhamos presente que não há bendição ou felicidade maior que multiplicar ações e iniciativas que brotam da compaixão e potencializam a vida de quem vive ao nosso redor. É isso que demonstra a verdade e a frutuosidade da nossa fé. Quem crê em Deus recebe luz e força para dedicar-se sem limites aos irmãos e irmãs.
“Vinde, benditos/as de meu Pai!”
Nossa fé em Jesus Cristo abre horizontes mais amplos e desconcertantes que a saudade, a reflexão e a esperança. Jesus Cristo nos ensina a crer e esperar a ressurreição doando nossaa vida e defendendo a vida dos outros. Doando-nos sua vida no amor, ele venceu definitivamente a morte e o medo paralisador que nasce dela. E desde então, cremos que a vida tem sempre a última palavra. E isso significa que quem rege nossa vida e nossas decisões não é o medo, nem seu irmão gêmeo, o egoísmo.
E então a vida deixa de ser algo como um investimento arriscado. Recebemos na medida em que doamos, e no próprio ato de dar. A intenção e a consciência vêm em segundo lugar. “Senhor, quando foi que...?” Quem descobriu a seriedade e a beleza dos vínculos que o unem à humanidade, vive o amanhã no hoje, encontra a si mesmo nos outros, experimenta a potência da vida no dom radical de si. Tais pessoas são semente e luz, quer vivam se desvivendo aqui, quer ajudem-nos desde outra dimensão. Elas têm a graça de ouvir, com surpresa e incomparável alegria: “Vinde, benditas de meu Pai, porque...”
“Ele vai destruir a mortalha estendida sobre as nações.”
Deus pai e mãe, força e ventre da vida, origem e destino do nosso caminhar. Tua luz brilha na fragilidade da vela que se consome; teu amor é permanente na simplicidade e na beleza das flores; tua vitória sobre o absurdo se revela em cada manifestação de amor, de compaixão solidária e de esperança. A morte dos nossos queridos/as arranca nossa pele e nos deixa em carne viva, mas nós cremos que é exatamente nos vínculos que nos unem para além de qualquer interesse egoísta que nós veremos teu rosto e sentiremos o toque benfazejo tua mão. Ensina-nos a viver multiplicando gestos e iniciativas que ajudem os outros a viver. E ajuda-nos a te encontrar nestas encruzilhadas nebulosas às quais a vida nos leva, e a agradecer pelos amigos/as e familiares que já partiram. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

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