A religião não pode legitimar a exploração dos
pobres!
(1Rs
17,10-16; Sl 145/146; Hb 9,24-28; Mc 12,38-44)
Solidariedade e
libertação são atitudes que caracterizam o próprio Deus e, por isso, são também
elementos centrais e irrenunciáveis da fé em Jesus Cristo. O
salmo 145/146 lembra que isso é central também para o judaísmo: "Javé
mantém sua fidelidade para sempre, fazendo justiça aos oprimidos, e dando pão
aos famintos. Javé liberta os prisioneiros. Javé abre os olhos dos cegos. Javé
endireita os encurvados. Javé ama os justos. Javé protege os estrangeiros,
sustenta o órfão e a viúva." Não é possível professar publicamente a fé em Jesus Cristo e, ao
mesmo tempo, ser indiferente à sorte dos irmãos e irmãs, e muito menos, usar da
religião para encobrir injustiças ou se aproveitar dos mais fracos. O Papa
Bento XVI ensina que lutar contra a fome é um modo de trabalhar pela paz entre
os povos (Caritas in Veritate, 27).
As mesmas mãos que se elevam a Deus na oração precisam se estender para servir
ao desenvolvimento dos povos.
"Devoram as casas das viúvas,
enquanto ostentam grandes orações."
A miséria e a
exploração sempre são dolorosas para quem as padecem, mas dilaceram o corpo e a
alma quando vêm acobertadas ou justificadas pela religião. Obcecadas pelas
coisas eternas e infinitas, as religiões correm o risco de passar ao largo das
misérias humanas, como o demonstrou Jesus com a eloquente parábola do bom
samaritano (cf. Lc 10,25-37). E quando as religiões renunciam ao esforço de
compreender criticamente as tragédias humanas, desembocam no cinismo e revestem
de roupagem religiosa o que não passa de crua e vil exploração.
Precisamos ter
cuidado para não distorcermos a Palavra de Deus. As passagens propostas para
este domingo podem ser presas fáceis de uma exegese preguiçosa ou de uma
edificante ideologia. A figura das duas viúvas, a do livro dos Reis e a do
evangelho de Marcos, soa como canto de sereia para leituras superficiais e
conclusões fáceis. A necessidade de resgatar virtudes como a hospitalidade e a
partilha, assim como de angariar fundos para a Igreja e suas obras sociais,
pode induzir a um louvor precipitado da atitude destas mulheres que são, antes
de tudo, vítimas de um sistema injusto.
"Por isso, serão julgados com mais rigor."
É preciso não
esquecer o contexto literário do ensinamento de Jesus. Nos últimos domingos
temos acompanhado a exigente catequese que ele dirige aos discípulos, enquanto
se aproxima de Jerusalém. O apego às
riquezas e o desejo de poder de alguns candidatos a discípulo contrasta com o
caminho de serviço, de partilha e de confronto com os poderosos trilhado e
proposto por Jesus. A figura do cego Bartimeu ficou como sinal vivo da
maturidade que se espera de um/a discípulo/a: o desejo de ver com clareza e a
disposição de seguir Jesus no caminho da profecia e do testemunho.
Jesus e os
discípulos já haviam chegado à Jerusalém (cf. 11,15). Visitando o templo, ele
não se encantou nem se omitiu: classificou-o como esconderijo de ladrões e expulsou
do seu interior os comerciantes que lucravam com ele (cf. 11,17). Então se
abriu uma série de confrontos entre Jesus e os chefes dos sacerdotes, doutores
da Lei (cf. 11,18.28) e saduceus (cf. 12,18-27). Estes não apenas questionam
seu ensinamento, mas procuram um modo de prendê-lo e matá-lo (cf. 11,18;
12,12).
"Cuidado com os escribas!"
O contexto
literário da passagem do Evangelho que estamos refletindo é de questionamento do templo e de confronto com as autoridades religiosas,
especialmente com os doutores da Lei. Contra estes, Jesus levanta cinco acusações: pretendem demonstrar o
saber religioso pelas roupas que usam; gostam de ser cumprimentados nas praças;
ambicionam os primeiros lugares nas sinagogas e banquetes; exploram e roubam as
viúvas; e usam a piedade como disfarce que encobre tudo isso.
Jesus
desmascara a hipocrisia dos doutores da Lei, importantes autoridades religiosas
do judaísmo da época: eles não vivem o
essencial da aliança, que é praticar o direito, amar a misericórdia e
caminhar humildemente diante do Senhor (cf. Mq 6,8), ou proteger os pobres, os
órfãos, as viúvas e os estrangeiros (cf. Dt 24,18-22). Antes, correm atrás de status privilégios especiais,
e se aproveitam da fraqueza e insegurança das viúvas, das quais são legalmente
constituídos administradores.
Isso é
exatamente o contrário daquilo que Jesus
ensinou aos discípulos no caminho para Jerusalém: o primeiro e mais
importante é o último, o servidor. A piedade dos doutores da Lei e dos escribas
é falsa, e serve como um belo véu que
encobre o oportunismo e a exploração que praticam contra os indefesos.
Através deles, a instituição do templo, que deveria ser espaço de asilo dos
indefesos e de oração de todos, acaba devorando os poucos bens que restam aos
pobres. É um covil de ladrões!
"Chegou então uma pobre viúva..."
É neste contexto
que a passagem da viúva que vai ao templo adquire sentido. Não passa pela cabeça de Jesus elogiar o templo que há pouco havia
desmascarado. Sentado diante das caixas de coleta, ele observa e descreve
concretamente como se processa a exploração das viúvas, das pessoas mais
pobres. Jesus não se deixa enganar pelas
aparentemente volumosas contribuições dos ricos. Sua atenção se volta a uma
viúva pobre que, depositando duas unidades da menor moeda em circulação,
"depositou tudo o que tinha, tudo o
que possuía para viver".
Não me parece
que Jesus queira elogiar a generosidade da pobre viúva. Antes, desmascara
a exploração que se realiza através do templo: os ricos contribuem com o
que lhes sobra, enquanto os pobres são
obrigados a dar tudo o que têm para viver. Jesus chama atenção para o
contraste e diz que há uma inversão
inaceitável: diferente do que se pensa e se diz, o templo exige mais dos pobres que dos ricos. Este é o modo pelo
qual os escribas rapinam as viúvas pobres: justificando tudo pela contabilidade
financeira e pelas aparências piedosas.
"A vasilha de farinha não se
esvaziou..."
Longe de
elogiar o que a viúva faz, Jesus lamenta
a exploração praticada pelo templo e justificada por mentiras matemáticas e
teológicas. Ele não se impressiona com a grandiosidade do templo. Ao
contrário, se irrita com a ausência de
justiça e de equidade. E acrescenta como profecia e ameaça: "Você está
vendo estas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra: tudo será
destruído" (13,2).
O profeta Elias
já havia antecipado o que deveria ocorrer com Jesus: ele vem a nós como
necessitado, pedindo hospitalidade e suscitando partilha. Jesus não nega nem
destrói nada do que é realmente humano, mas o assume e potencializa. Afastando
os medos paralizadores, sua presença na história nos ajuda a encontrar soluções
verdadeiramente humanas para os problemas humanos. Propondo e vivendo a
sobriedade e o serviço, nos ensina o caminho do verdadeiro desenvolvimento.
Como na história da viúva, nossa pobre vasilha de farinha jamais fica vazia.
Jesus ensina
os/as discípulos/as de todos os tempos a ver as coisas criticamente e a não se
deixar levar pelas aparências. Atitudes e práticas piedosas podem esconder
injustiças violentas, e a própria religião pode se tornar meio de exploração
dos mais pobres. Jesus nos convida a rever nossas práticas individuais,
eclesiais e sociais. E nos chama à conversão profunda e à profecia destemida.
"Para tirar o pecado de
muitos..."
São João
Crisóstomo ensina que, diante de Deus, somente é precioso e grande aquilo que
até um pobre pode dar. Mas o valor infinito dos gestos pequenos e inteiros não
nos dispensa de denunciar a falsidade e a iniquidade dos gestos
interesseiramente imponentes ou a corrosividade da omissão diante das graves
questões que agridem a humanidade. Apresentando-se como o Cordeiro que carrega o pecado de muitos, Jesus nos convida a um
empenho lúcido e sem reservas no combate contra a exploração.
Jesus, pregador do Reino, peregrino nas estradas da
Galiléia e observador crítico das práticas opressoras do templo em
Jerusalém: tu sabes que também hoje,
como nos lembra Bento XVI, cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas
aumentam também as disparidades. Concede-nos a coragem e a liberdade para
denunciar que há um nexo entre desemprego e pobreza, e que a desregulamentação liberal das relações
trabalhistas reduz a segurança social e aumenta a exploração sobre os/as trabalhadores/as.
No teu tempo os pobres eram explorados pela ideologia do templo, e hoje são explorados em nome do 'evangelho' e
do mercado global. Ajuda-nos a não sermos coniventes com isso, e inspira-nos
palavras e ações que instaurem a justiça do teu Reino na terra. Assim seja.
Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
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