Jesus é um profeta que desestabiliza todos
os poderes.
(Dn
12,1-3; Sl 15/16; Hb 10,11-18; Mc 13,24-32)
A grandeza e o
poder das pessoas e instituições costumam garantir-lhes a submissão dos fracos
e granjear-lhes uma admiração que se mantém no tempo. Submissão e admiração,
especialmente quando conjugadas com o medo sucitado pela violênia congênita ao
poder, geram o mito da invencibilidade:
quanto mais poder e grandeza tiver uma entidade, mais estável e imutável será.
O cristianismo rejeita este mito amordaçador e afirma que tudo o que parece poderoso e inabalável acaba desabando pela ação
libertadora da fé. Quando a esperança abraça a fé e age através do amor, a
humanidade renasce das cinzas dos impérios que a aprisionavam. É isso que
celebramos no domingo que antecede a festa de Cristo Rei, com a qual concluimos
o ano litúrgico. A fragilidade de Jesus servidor suscita nos seus discípulos/as
a coragem profética que desestabiliza todos os poderes.
“Será hora de grandes apertos, como jamais
houve.”
Parece que a
água não está para peixe. A humanidade está em crise, aliás, como sempre.
Entretanto, esta crise contínua e habitual que acompanha toda a história,
adquire em nosso tempo conotações dramáticas e desorientadoras. Não existem
mais referências seguras. Os grandes mitos e narrativas desapareceram. O
movimento cultural que prometia luzes acabou cegando e deixando rastros de
desumanidade e obscurantismo.
A esperança fez as malas e desertou sem deixar
endereço para contatos. Falar de esperança passou a ser considerado algo anacrônico e ridículo. A
história não seria mais que um movimento aleatório e uma sucessão de situações
ocasionais, resistente a qualquer projeção e intervenção. Ademais, diz-se que as grandes esperanças cultivadas
pela humanidade não fizeram mais que deixar um imenso sabor de frustração e
decepção, na exata proporção da ilusão que haviam criado.
Por isso memo,
a fuga aparece como a única
possibilidade para viver em paz. Os indivíduos fogem da comunidade e das
responsabilidades coletivas. Sem esperança de futuro, o presente é um refúgio que oferece uma doce sensação de sabedoria.
O tempo foge do nosso controle e parece sempre mais acelerado. Muitos fogem de
qualquer responsabilidade pelos danos que comprometem a vida do planeta e das
gerações futuras. As coisas mudam numa velocidade estonteante e fogem de
qualquer controle. A realidade flui como água, e parece que nada pode ser feito
para mudar seu curso.
“Naqueles dias, depois daquela aflição...”
É feito de tribulações o tempo que vivemos. Muitos/as são
os/as que se perguntam: é possível que o
humano venha a prevalecer? Aquilo que chamamos de humano não passaria de um idealismo vazio ou de uma ideologia
enganadora? Ou será que o humano foi
possível apenas no passado e suas sementes não podem mais germinar na terra
poluída e ressequida do nosso tempo? Não seria o nosso apenas um
tempo de indivíduos solitários na multidão e de consumidores vorazes, destes
que negociam o sonho de um mundo novo pelos novos e fugazes lançamentos do mercado?
Receio que as dores deste tempo de tribulação não
sejam dores de parto, mas levem apenas a uma dor ainda maior: a exclusão
do outro como se fosse concorrente
perigoso e nosso próprio inferno; o enclausuramento das pessoas, grupos e
nações em si mesmas; a falta de sentido para viver. E o projeto de humanização
e de globalização da solidariedade teria sido apenas sonho de uma noite de verão. Os tempos são outros, a realidade é
dura, e agora quem pode mais chora menos.
Seria esta a lei da sobrevivência, e fora disso não haveria salvação. Este é o
comportamento de um ‘povo rebelde’ que não quer ver nem ouvir nada que exija
compromisso e mudança.
Mas aqui, de
novo e como sempre, aqueles/as que
acreditam em Jesus Cristo
remam contra a corrente e afirmam que o
humano se manifestará, está se manifestando, está já presente no meio de
nós. O ‘filho do homem’, aquele que é verdadeira e plenamente humano, está
eternamente vindo ao nosso encontro,
solicitando abertura, acolhida, esperança, conversão. Sim, a esperança não
desertou do meio da humanidade, mas se faz carne em nossa humana carne.
“As potências celestes serão abaladas...”
No evangelho de
hoje Jesus usa uma linguagem apocalíptica e parabólica. Sua intenção é chamar a atenção para a mudança, para o processo de
nascimento de uma nova ordem social.
Não se trata de uma insinuação de que a catástrofe se aproxima e de que o mundo
será destruído, nem de um convite ao medo e à fuga diante dos dramas da
história. Ao contrário, Jesus convida
seus discípulos/as a entrar na história e tomar posição nas lutas inadiáveis que
estão sendo travadas.
Sol, lua e
estrelas simbolizam os poderes aparentemente sólidos e a ordem que quer passar
por indestrutível. Esta solidez é mentirosa, pois o advento do filho do homem, do homem novo, depõe os poderosos dos seus
tronos e eleva os humildes; afirma a dignidade dos últimos; faz germinar
sementes e florir os desertos; desarticula as forças e arruína as estruturas
que criam e mantém a injustiça e a opressão. Mas isso supõe nossa tomada de posição, não ocorre sobre as nossas
cabeças.
Jesus nos adverte
que o questionamento e o abalo da ordem velha e cambaleante não é tudo. Estes são apenas sinais precursores de que o
humano está nascendo, está perto, batendo à porta e pedindo para entrar. E
na medida em que ele for acolhido e se tornar senhor e regra da nossa vida, uma
nova humanidade nascerá, sem fronteiras nem restrições, “reunindo as pessoas
que Deus escolheu, do extremo do céu ao extremo da terra.”
“Então
verão o filho do homem vindo nas nuvens...”
A imagem do sol
que se apaga e das estrelas que caem é impressionante e pode nos amedrontar.
Consciente disso, Jesus passa do cosmos à flora: acrescenta a parábola da figueira, pedindo que
prestemos atenção a sinais mais pequenos
e discretos. Nós já sabemos que a figueira cheia de folhas simboliza o
templo que, em sua aparente exuberância, é incapaz de produzir frutos para o
povo faminto e, por isso, é amaldiçoada e seca (cf. 11,12-14; 20-26). A ordem social baseada no templo exclui e
explora os pobres e beneficia os puros e ricos. Esta ordem poderosa deve
chegar ao fim para que desponte um outro mundo.
Mas quem
provocará esta passagem, quem
conduzirá esta revolução? O ‘filho do
homem’, o Messias pobre e servidor e seus seguidores/as. Não nos impressionemos
com a imagem do “Filho do Homem vindo sobre as nuvens com grande poder e
glória”, pois esta não é senão uma
referência ao Cristo elevado na cruz, zombado pelos doutores da lei e
chefes dos sacerdotes (cf. 15,31-39). No meio da escuridão e no coração da aparente
tragédia daquele que se apresentou como filho do homem, o soldado romano
reconhece: “De fato, esse homem era mesmo o Filho de Deus” (15,39). No filho do homem fiel e solidário,
perseguido e crucificado, resplandece o que é verdadeiramente humano e se
revela a glória e o poder de Deus. É a palavra da cruz que jamais passará.
O advento do humano se realiza definitivamente em Jesus Cristo
crucificado, em sua solidária fidelidade a todos os seres humanos. É em torno dele
que se reúnem as pessoas escolhidas que, tendo-o como cabeça, formam um corpo
verdadeiramente humano, capaz de transfigurar a história. Os santos mártires
Roque, Afonso e João (+19.11.1628) são membros reconhecidos deste corpo, mas
seus companheiros Ignácio Ellacuría, Ignácio Martín, Juan Ramón, Armando,
Segundo e Joaquim (+16.11.1989), assim como Zumbi dos Palmares (+20.11.1695)
não ficam por menos. No céu claro do novo mundo em gestação, eles empalidecem o
sol e são mais estáveis que todos os grandes astros.
“Também meu corpo repousa seguro.”
A alegria e a
segurança dos cristãos suscita e sustenta um engajamento profético que não
conhece o medo, porque é filho da esperança. A paz que deve nos caracterizar
toma distância da passividade e se aproxima da insatisfação com tudo o que é
velho, desumano ou infra-humano. E no tenso dinamismo de forçar o advento do humano no mundo, nós mesmos/as vamos sendo
gerados/as como novas criaturas, como seres apenas mas plenamente humanos.
Rezemos com o
Salmo 15/16, que expressa a fé daqueles/as que pouco contam nas hierarquias e
não possuem grandes bens. “És tu meu Senhor, fora de ti não tenho bem
algum. O senhor é minha herança e meu cálice. Sempre coloco à minha frente o
Senhor, ele está à minha direita, não vacilo. Disso se alegra meu coração,
exulta a minha alma; também meu corpo repousa seguro.”
Pe.
Itacir Brassiani msf
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