quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Fatos & Personagens: Coisas da velha Republica


O delito de comunidade

São bombardeados e metralhados pelos aviões. A tiros de canhões são atacados por terra. Degolam-nos, queimam-nos vivos, crucificam-nos. Quarenta anos depois do extermínio da Comunidade de Canudos, o Exército Brasileiro arrasa (em 1937) a Comunidade de Caldeirão, ilha de verdor no Nordeste, pelo delito de negação da propriedade privada.

Em Caldeirão, nada era de ninguém: nem os teares, nem os fornos de tijolos, nem o mar dos milharais em torno das casas, nem a vasta neve de algodoais que havia ao longe. Donos eram todos e nenhum, e não havia despidos nem famintos. Os indigentes tinham-se feito comuneiros ao chamado da Santa Cruz do Deserto, que o Beato José Lourenço, peregrino do deserto, tinha carregado até aqui. A Virgem Maria tinha escolhido o lugar para onde a cruz devia vir e tinha escolhido o ombro do Beato para trazê-la. Onde o Beato cravou a cruz, brotou água incessante.

Mas este Beato esquálido era o próspero sultão de um harém de onze mil virgens, segundo acusam os jornais de distantes cidades. Como se fosse pouco, era também um agente de Moscou que escondia um arsenal em seus celeiros.

Da Comunidade de Caldeirão, nada deixaram, nem ninguém. O potro Trancelim, que só o Beato montava, foge a galope pelos montes pedregosos. Procura em vão algum arbusto que lhe ofereça sombra, debaixo deste sol dos infernos.

(Eduardo Galeano, O século do vento, L&PM, 2010, p. 160-161)

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