Mais
que rei, Jesus é Pastor, Profeta, Servo e Testemunha.
(Dn 7,13-14; Sl 92/93; Ap 1,5-8; Jo 18,33-37)
Muitos nos perguntamos sobre sentido e a relevância da
festa de hoje. Desde o final do século XIX algumas comunidades católicas
propunham a celebração de Cristo Rei como forma de propagar a dignidade de
Jesus Cristo, de afirmar os direitos da Igreja frente à sociedade liberal e de destacar
a importância da doutrina cristã na formulação das leis civis. Esta festa
acabou sendo instituída oficialmente em 1955, pelo Papa Pio XII. Hoje temos consciência de que é preciso
evitar toda forma de triunfalismo e, ao mesmo tempo, destacar o mistério de
Jesus Cristo: ele é testemunha da verdade e profeta um Novo Tempo de paz,
solidariedade e partilha. Jesus Cristo derruba os muros políticos, econômicos e
ideológicos que se sucederam àquele derrubado em 1989 e continuam segregando e
agredindo grupos e povos irmãos.
“Foi-lhe
dado poder, glória e reino...”
No ocidente, o ideal do poder praticamente se confunde
com a noção de pessoa. O poder é visto como definidor da liberdade e medidor da
qualidade de vida. A economia, a cultura, a comunicação e até a religião o
servem submissas. Nossa cultura atribui ao poder qualidades divinas, o que faz
com que as pessoas que o acumulam sejam cotejadas e protegidas como símbolos da
divindade. E quando uma pessoa reúne em si mesma os três poderes – legislativo,
executivo e judiciário - como os ditadores,
os monarcas absolutos e o papa, isso chega a um perigoso extremo.
Profundamente tocado pela contradição de uma Igreja
que se deleita com o luxo e com o poder, real ou aparente, nosso querido Dom
Helder Camara escrevia, durante o Concílio Vaticano II: “Assim como na hora da
Providência, o Papa foi livrado por Deus dos Estados Pontifícios, dia virá em
que o Pai livrará o Vigário de Cristo do luxo do Vaticano. Durante o bombardeio
de Roma cheguei a pensar que Deus ia agir, deixando que uma bomba liquidasse o
que de outro modo seria impossível de largar. Não daria certo: Rockfeller
reconstruiria um Vaticano ainda mais amplo e luxuoso.”
Nosso saudoso Dom Helder tinha razão, e sua liberdade
nos faz falta. Penso que a identificação
de Jesus de Nazaré com a figura do rei é um erro e um delírio bem ao estilo dos
amantes do poder. Jesus não foi nem sacerdote e nem rei. Como profeta e reformador, irmão dos pobres e dos
pecadores e servidor dos oprimidos, ele
revelou o melhor que pode haver no ser humano e fez brilhar no mundo a
glória de Deus. Quando celebraremos solenemente a festa de Cristo Servo de todas as criaturas?
“Ele é a
testemunha fiel.”
A única razão aceitável para aproximar Jesus Cristo da
figura do rei seria a de contrastar e
relativizar todos os demais poderes, inclusive as autoridades eclesiásticas.
É verdade que o livro do Apocalipse de São João atribui repetidamente a Jesus o
poder, a riqueza, a honra, a glória, a sabedoria, a força e louvor e tudo o
mais (cf. Ap 5,12-13). Mas não podemos esquecer que tudo isso se diz daquele que é a pedra rejeitada, a vítima do
próprio poder estabelecido.
No Apocalipse, Jesus é também “a testemunha fiel, o
primeiro a ressuscitar dos mortos” e, nessa condição de testemunha e vítima da
pena de morte, transpassado e crucificado, é “chefe dos reis da terra”.
Amando-nos até o fim e partilhando a sorte dos condenados, Jesus perdoou nossas
dívidas e nos constituiu como povo novo e
soberano, do qual ele mesmo é guia e líder inconteste. Antes e mais que
rei, ele é o Pastor que dá a vida pelo
seu rebanho, a Testemunha fiel do
amor de Deus que acusa os que exploram seu povo.
“Tu és o
rei dos judeus?”
É paradoxal a cena de Jesus diante de Pilatos. Um preso
despojado de tudo, acusado pelos seus próprios compatriotas, sem direito à
defesa, está cara a cara com uma autoridade plenipotenciária e a serviço de um
poder invasor. Um homem habituado às estradas está diante de um senhor
habitante de palácios. A cena insinua um confronto radical, e a pergunta de
Pilatos é clara: “Tu és o rei dos judeus?” Pilatos não pergunta se ele é um
rei, mas se é o rei; e não o refere a Israel (povo escolhido por Deus) mas
aos judeus
(um povo ou uma raça em meio a tantas).
O delegado do império diz que foram os chefes dos sacerdotes
e o próprio povo que lhe entregaram Jesus. Jesus foi mais odiado pelo seu povo que
pelos invasores romanos? As autoridades religiosas rejeitaram seu messianismo,
seu direito de se apresentar como mediador de Deus. “Ela (a luz) veio para a
sua casa, mas os seus não a receberam” (Jo 1,11). Astuto, Pilatos se
interessava mais pela ação que pelos títulos. E pergunta que tipo de liderança
Jesus desenvolve. “O que fizeste?”
“Eu nasci
e vim ao mundo para dar testemunho da verdade”
A resposta de Jesus chama a atenção para a diferença e a originalidade libertadora da sua ação, mas infelizmente tem sido
manipulada a serviço das pessoas e grupos que desejam abençoar a omissão dos
cristãos frente aos desafios da história. Jesus diz que seu reino “não é deste
mundo”, pois sua ação se distancia da
força e do poder, tem outro dinamismo e se rege por outra finalidade. Ele
age solidariamente para responder às necessidades do seu povo, recusa assumir o
poder (cf. Jo 6,15) e se opõe duramente aos príncipes do mundo (cf. Jo 12,32;
16,11).
Jesus aceita a
qualificação de rei, mas recusa a
redução da sua missão ao povo judeu. “Você está dizendo que eu sou rei.”
Ele não é nem o único rei, nem apenas
dos judeus. Jesus preside e dirige o amplo movimento do reino de Deus, que reúne
todos os homens e mulheres de boa vontade, promove a liberdade e a vida de
todos/as e não usa da força para defender os privilégios das elites. “Se o
meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse
entregue às autoridades dos judeus.” Ele é rei exatamente e apenas na medida em
que dá sua vida por todos.
Jesus avança na caracterização da sua pessoa e da sua missão:
“Eu nasci e vim ao mundo para dar
testemunho da verdade.” Sua prioridade é ser testemunha da verdade, ou
seja, do amor incondicional de Deus por todas as criaturas, especialmente pelos
oprimidos. E esta missão coloca em posição secundária sua segurança e sua vida.
A verdade é que Deus ama a ponto de dar a
própria vida, e isso não expressa a fraqueza mas a invencível força de Deus.
“E o
mundo todo o verá, mesmo aqueles que o transpassaram”
Não é de menor importância a afirmação de que Jesus dá
testemunho da verdade no mundo. A
questão da verdade se decide no seio da
história, nas suas tensões e confrontos, e não na estirilizada
interioridade do coração humano ou na alieante paz dos templos ou cúrias.
Ademais, a verdade não é uma questão de
conceitos e raciocínios, mas de ação e de vida. Jesus testemunha a verdade
de Deus comprometendo-se radicalmente com a afirmação da dignidade das pessoas
sem dignidade.
E isso o leva à cruz. É na cruz que se revela e realiza a realeza de Jesus Cristo. Nada
mais paradoxal que esta figura de rei. Nada
mais distante da imagem de rei do que a figura de um escravo ou um executado.
Para libertar o povo da opressão, Jesus não recorre à violência que, assimilada
pelo povo, sustenta a própria opresssão. Renunciando à violência, Jesus ajuda
seu povo a descobrir a verdade sobre si mesmo: sua dignidade inalienável e a
força da consciência. Ao mesmo tempo, revela o rosto de Deus e desmascara as
ideologias que o invocam para oprimir os mais fracos.
“Todo
aquele que está com a verdade, ouve a minha voz”
A pompa, as vestes majestosas, o incenso e as marchas
triunfais que costumam reaparecer em festas como a de hoje podem seduzir nossa
mente e nos fazer surdos à Palavra de Jesus. O evangelista Marcos nos lembrou
com insistência que a Plavra de Jesus aponta para a partilha com os pobres,
para a figura do servo e para a doação de si. Quem testemunha a verdade no
mundo, mesmo se não ostenta o sinal do batismo, efetivamente ouve sua voz. E
quem ouve sua Palavra na celebração da comunidade e a medita no seu coração não
pode deixar de fazê-la verdade na história.
Jesus de Nazaré,
profeta e pastor, servo e testemunha:estamos reunidos/as em torno da tua mesa
para acolher te gesto testamentário e teu chamado a ser dom e semente. Participando
do teu corpo e do teu sangue, pedimos que graves em nosso corpo os sinais de tua
realeza: o amor fraterno e o serviço solidário. À tua palavra-oferta “isto é
meu corpo que é dado por vós”, respondemos: “Faremos a mesma coisa em memória
de ti.” Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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