segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Fatos & Personagens: o celibato eclesiastico

Papa Gregorio VII

Uma senhora feudal explica como se deve cuidar dos bens terrenos

Do papa de Roma ao mais humilde padre de paróquia, não há sacerdote que não profira palestras sobre a vida sexual. Como podem saber tanto de uma atividade que estão proibidos de praticar?

Já no ano de 1074, o papa Gregório VII tinha advertido que só os casados com a Igreja eram dignos de exercer o serviço divino. “Os sacerdotes devem escapar das garras de suas esposas”, sentenciou.

E pouco depois, no ano 1123, o Concílio de Latrão impôs o celibato obrigatório. Desde então a Igreja Católica conjura a tentação carnal através do voto de castidade e é a única empresa de solteiros no mundo religioso. A Igreja exige dos seus sacerdotes dedicação exclusiva, um regime full time que protege a paz das suas almas, evitando brigas conjugais e gritos de bebês.

Talvez, quem sabe, a Igreja também tenha querido preservar seus bens terrenos, e assim os pôs a salvo do direito de herança das mulheres e de seus filhos. Embora seja um detalhe sem importância, vale a pena recordar que no começo do século XII a Igreja era dona da terceira parte de todas as terras da Europa.

(Eduardo Galeano, Espelhos, L&PM, 2008, p. 82)

Ano Novo: maternidade de Maria


Bem-aventuradas as pessoas que promovem a Paz!
(Nm 6,22-27; Sl 66/67; Gl 4,4-7; Lc 2,16-21)
Na celebração cristã do Novo Ano se entreleçam três eventos: o começo de um novo ano civil, a festa da maternidade de Maria e a Jornada Mundial pela Paz. Para começar, lembremos que um ano novo, marcado pela novidade regeneradora da Paz, não costuma chegar da noite para o dia, ao som e luz de fogos de artifício. As novidades promissoras e duradouras são gestadas muito pacientemente no ventre profundo da história e das pessoas de boa vontade, daquelas que acolhem os dons e convites que vêm dos desertos, das periferias e das fronteiras, dons que desestabilizam e põem a caminho. As novidades promissoras e duradouras vêm do fogo do Espírito, acolhido no íntimo da oração e posto em ação no ardor das lutas. Na sua costumeira mensagem para a Jornada Mundial pela Paz, Bento XVI sublinha a importância de sermos lúcidos/as promotores/as da paz em todos os âmbitos e níveis da vida social.
“O Senhor te abençoe e te quarde!”
A cada ano o mundo reconhece oficialmente uma pessoa como referência para a construção da Paz e lhe concede o Prêmio Nobel. Normalmente este reconhecimento é justo e dá força a pessoas que lutam com poucos meios, arriscando a própria vida para que os outros vivam e convivam melhor. O prêmio do ano 2012 foi para a União Européia, como reconhecimento pelo imenso empenho na superação das arestas entre as nações e no estabelecimento de caminhos de cooperação continental.
Nascido e acolhido também por nós e no meio de nós, Jesus de Nazaré pacifica o mundo estabelecendo relações novas, baseadas na justiça, inclusive na justiça internacional. E ele cumpre a promessa de Deus e a esperança humana através de cada um/a de nós, dos homens e mulheres de boa vontade, dos/as líderes autênticos/as e das organizações que não se resignam à paz aparente,  à paz eivada de indiferença e baseada no equilíbrio de forças ou no terrorismo estatal.
Moisés recebeu de Deus, ensinou a Aarão e todos nós aprendemos: somos convidados a abençoar e bendizer (dizer o bem) as pessoas, grupos, comunidades e organizações. Que o nosso desejo em relação a todos/as seja tão belo e tão profundo quanto as palavras que podemos repetir durante todo o dia de hoje: “Deus te abençoe e te guarde! Deus mostre seu rosto brilhante e tenha piedade de ti! Deus mostre seu rosto e te dê a paz!” Assim seremos princípios e príncipes da Paz.
“Os pastores retiraram-se louvando e glorificando a Deus...”
O tempo de Natal segue adiante, e a liturgia também continua convidando a penetrar mais profundamente o mistério da encarnação de Deus. Hoje contemplamos a chegada dos pastores à gruta ou ao estábulo de Belém. Lá eles encontram Jesus no seio de um casal pobre e migrante. Ficam vivamente impressionados com o que vêem, e comparam com tudo aquilo que tinham ouvido. Como pode uma criatura tão frágil ser portadora da Paz a todos os homens e mulheres de boa vontade?
Parece que os pastores conseguiram compreender o mistério de um Deus a quem não apraz a força dos cavalos ou dos tanques, dos cortejos de acólitos, das doutrinas – mesmo as eclesiásticas! – e dos códigos de direito – mesmo os canônicos! –, nem tampouco os kamikazes e os homens-bomba. Deus se alegra com o despojamento voluntário e solidário de quem se faz próximo e peregrino com os deslocados e, por isso, volta louvando e glorificando a Deus por tudo o que vê e ouve.
Jesus recebe o nome proposto pelo Anjo a Maria no anúncio-convite. Ele se chama boa notícia da salvação: Deus salva seu povo do pecado. Ele age libertando, perdoando. Estamos livres do débito que temos conosco mesmos/as e com os outros por não conseguir realizar a utopia que realmente sonhamos. Estamos livres da culpa de termos ficado aquém ou errado o alvo. Deus não espera que cheguemos heroicamente a ele. Ele mesmo vem decididamente ao nosso encontro. Ele é nossa Paz!
“O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a Paz!”
Suspiramos por uma Paz que é t­ão necessária quanto urgente. Uma paz que não venha apaziguar superficialmente as relações humanas passando ao largo das relações desiguais que precisam ser mudadas. Gememos e sofremos por uma Paz geral, concreta e profunda que parece atrasada e até impossível. Lutamos por esta Paz em todas as frentes, tanto que quase perdemos a paz.
Esta Paz não está unicamente no fim do caminho, na plena confraternização entre lobos e cordeiros, serpentes e crianças. Ela está no caminho, na caminhada, nos/as caminhantes. Está nas pessoas inconformadas que ousam mudar, renovar, começar de novo, e isso a cada dia. Está nos homens e mulheres que adquiriram a sabedoria que vê nas sementes as flores e os frutos que virão depois, que encarnam nas relações cotidianas os sonhos e utopias que, literalmente, parecem não ter um lugar.
Em cada missa o presidente da celebração reza pedindo a Paz a Jesus Cristo, lembrando que ele a ofereceu aos discípulos, na noite da páscoa. E deseja que a Paz de Jesus Cristo, não aquela paz pequena construída sobre o medo do poder do outro, esteja sempre conosco. E nós respondemos que o amor de Cristo nos uniu e, portanto, estamos em paz e dispostos/as a fazer o possível para que esta Paz presida as relações entre pessoas, povos, nações e religiões. É aqui que começa o mundo novo celebrado no Natal.
“E todos recebemos a dignidade de filhos/as...”
Na mensagem para a Jornada Mundial da Paz celebrada hoje em todo o mundo, Bento XVI nos convida a entrar no imenso mutirão dos/as construtores/as da paz, convictos/as de que o desejo de paz é uma aspiração humana essencial e universal que coincide com o anelo por uma vida mais humana, feliz e bem sucedida. Mas esta paz tão desejada quanto essencial implica em uma convivência social baseada na verdade, na liberdade, no amor e na justiça.  “A paz é uma ordem de tal modo vivificada e integrada pelo amor que as pessoas sentem como próprias as necessidades e exigências alheias e vêem os outros como coparticipantes dos próprios bens e estendem sempre mais no mundo a comunhão dos valores espirituais.”
Mas o Papa lembra também que os/as construtores/as da paz devem ter presente que as ideologias do liberalismo radical e da tecnocracia tentam convencer o mundo da prioridade do crescimento econômico sobre a sadia convivência social e sobre os próprios Direitos Humanos. Por isso, a promoção e a construção da paz não pode ser reduzida a um punhado de bons sentimentos, belos mas ingênuos. Os cristãos, para quem a promoção da paz é uma vocação irrenunciável, devem ter presente que esta é uma missão que sopõe uma atitude crítica e uma postura profética frente às ideologias dominantes.
“Nascido de mulher, nascido sujeito à Lei...”
O último versículo do evangelho de hoje nos faz saber que Jesus foi circuncidado. Com este rito, Jesus é oficialmente acolhido no judaísmo, tornando-se partícipe da sua história e das suas utopias. Mas, como nos lembra o Pe. Berthier, com este sinal físico é dito também que ele quer levar no seu corpo a marca do pecado e o peso da dor que faz gemer a terra. E é do ventre desta dor assumida solidariamente que ele desperta a dignidade de todas as criaturas e o grito em coro: “Abbá, pai querido!”
Para os cristãos, o fundamento da Paz é a relação de Jesus Cristo. Nascido de mulher e sob a Lei, Jesus conduz à liberdade todas as pessoas, começando pelos últimos, pelas pessoas que são colocadas à margem. Ele confirma que  Deus reconhece todos/as como filhos/as e nos convida a superar relações pautadas pelo medo e pela dominação. Todos/as estão em paz com Deus! Todos podem proclamar “meu Papai querido!” É  aqui que a glória de Deus se espalha na terra inicia o ano e o mundo novos.
Na condição de filhos/as, somos também herdeiros/as. Qual é a herança que recebemos? Nada menos que o Reino de Deus, o horizonte que deu sentido e força à prática de Jesus, a “shalom” que proporciona o “tudo de bom” que repetimos nestes dias de passagem, o convívio sadio que descansa em bases de justiça. Somos herdeiros/as do sonho de uma humanidade que se reconhece como família de nações, de povos, de etnias e de religiões, diferentes mas igualmente respeitáveis, dignas e  irmãs.
Deus querido, Pai e Mãe! Faze-nos construtores/as de Paz neste ano que se inicia. Ensina-nos a contemplar e compreender o anseio de Paz e de comunhão que pulsa no coração do mundo. Suscita em nós o canto que brota da dignidade indestrutível de filhos e filhas. Faz de nós e das nossas comunidades incansáveis construtores da Paz. E dá-nos experimentar, como o concedeste a Maria e aos pastores, a alegria de reconhecer a grandeza de Deus na pequenez e na fragilidade humana. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

domingo, 30 de dezembro de 2012

Ícones da missão: Simeão


Simeão: uma vida inteira à espera


Havia em Jerusalém um homem cujo nome era Simeão. Este homem era justo e temente a Deus, esperando a consolaçäo de Israel; e o Espírito Santo estava sobre ele. E fora-lhe revelado, pelo Espírito Santo, que ele näo morreria antes de ter visto o Cristo do Senhor. E pelo Espírito foi ao templo e, quando os pais trouxeram o menino Jesus, para com ele procederem segundo o uso da lei.
Ele, então, o tomou em seus braços, e louvou a Deus, e disse:
‘Agora, Senhor, despedes em paz o teu servo, Segundo a tua palavra, pois já os meus olhos viram a tua salvação que tu preparaste perante a face de todos os povos; luz para iluminar as nações e glória de teu povo Israel.’
E José, e sua mãe, se maravilharam das coisas que dele se diziam.E Simeão os abençoou, e disse a Maria, sua mãe: ‘Eis que este é posto para queda e elevação de muitos em Israel, e para sinal de contradição. E uma espada traspassará também a tua própria alma; para que se manifestem os pensamentos de muitos corações.’ (Lucas 2,25-35)

Simeão, junto com Ana, és símbolo do idoso no Novo Testamento. Tu havias visto tanta coisa: a terra sendo conquistada pelos romanos e as humilhações; o templo reconstruído por Herodes sem antes reconstruir o coração; o desaparecimento dos profetas e a emergência de tantos pregadores; tantas lágrimas do povo pobre e a arrogância dos poderosos...

Nada de novo sob o sol. Ou melhor, era noite. Mas tu, memória viva da escritura santa, conhecedor de Deus graças ao seu Espírito, prescrutavas a noite com a certeza de que a aurora despontaria. Tinhas a convicção de que teus olhos c ansados a veriam antes de se fecharem no sono da morte. Ademais, teu próprio nome dizia isso: “Deus atendeu”.

Somente tu sabes e podes dizer como ardia teu coração naquela manhã. Com disposição e agilidade, mais do que a força das tuas pernas cansadas permitiam, saíste de casa e foste ao templo. Finalmente havia chegado!

Quem? Um rei acompanhado de sua corte e seu exército? Um milagreiro capaz de despertar a fé até dos mais céticos? Um encantador de multidões aclamado por todos ou um nacionalista incendiado de amor pela pátria e de furor?

Não! Um bebê, filho de gente pobre. Naquela manhã não havia nada de extraordinário no templo. Apenas uma cena absolutamente cotidiana. Um primogênito estava sendo apresentado e resgatado com uma oferta de gente pobre. De fato, pertencia a Deus, como todas as primícias.

Um casal orgulhoso do filho que trazia e, ao mesmo tempo, retraído diante da solenidade do templo. Muita gente viu aquele casal com a criança nos braços, mas somente tu, Simeão, tiveste olhos para ver profundamente. Eras um homem de silêncio e, por isso, teu olhar conseguiu ir além das aparências e teus pensamentos não permaneceram nos lugares-comuns.

No fim da vida, do alto do monte, Moisés avistou a terra prometida. Tu acolheste entre os braços a Promessa de Deus! E tinhas a impressão que os teus eram os braços de todas as gerações que te antecederam, da gente do teu tempo e de todas as gerações que ainda viriam. Eras também os nossos braços que acolhiam o Esperado.

Admiro esta tua vida inteiramente dedicada à espera. Uma vida que não se inquieta com a aproximação da morte. Gosto deste teu modo de esperar: não para ti mesmo, mas para as gerações que vêm. Te admiro mesmo! Tu entregas ao futuro não o orgulho da tua vida fiel e justa mas um bebê, salvador teu e de todos/as. Quem era aquela criatura mais jovem que tu, o Esperado pelos povos?

Vê que todos estamos sentados: habituados à noite, não esperamos mais nada. E imaginamos salvarmo-nos por própria conta, cabeças-duras e bêbados de onipotência! Como gostaríamos de permanecer jovens como tu, com um olhar que prescruta o horizonte, capazes de ver uma salvação que é permanentemente dada e que está sempre vindo!...

O Servo, entrevisto por Isaías, dizia sobre Deus: “Fez de  mim uma seta pontiaguda e em sua aljava me escondeu” (Is 49,2). Simeão, que Deus te atenda e te responda! Pede a ele que possamos ser como tu: flecha com uma só ponta. Que todos os nossos desejos, nossas energias, recursos e decisões sejam convergentes e nos façam uma flecha para o arco de Deus.

E não importa se Deus nos mete no arco retesado ou na aljava. Não importa se tivermos a impressão de sermos usados ou colocados no banco de reserva, na espera. Não importa nem mesmo aquele banco de reserva extremo que é a morte, porque sabemos que estamos nas suas costas, nas suas mãos.

(Teresina Caffi, In cammino con il Vangelo, EMI, Bologna, 2008, p. 38-41)

sábado, 29 de dezembro de 2012

Debate: Jesus é rei e sacerdote?


Uma traição piedosa e espiritualmente promovida

Sei que este é um problema meu, mas tem algumas coisas que, mesmo quando revestidas de piedade e gozando de plena ortodoxia, me desolam e conseguem até me irritar. São atitudes e práticas que soam como piedosas e perigosas traições de Jesus Cristo. E uma delas é a antiga e duradoura mania de esvaziar o divino paradoxo de Jesus Cristo revestindo-o e imobilizando-o com as vestes de rei e sacerdote.

Não desconheço que já nas comunidades apostólicas encontramos indícios dessa perigosa identificação. O recorrente uso do título Kyrios/Senhor para se referir a Jesus é um sinal muito claro desta tendência. E todos/as conhecemos algumas passagens, especialmente nas cartas paulinas e católicas, que aplicam a Jesus reconhecido como Messias os títulos de rei e de sacerdote. Basta citar, a título de ezemplo, a carta aos Hebreus e o Apocalipse de São João.

Mas o que o passar dos anos e a ideologia do poder religioso nos fez esquecer é que, para as comunidades apostólicas, estava absolutamente claro que o Cristo relido sob a figura do sacerdote e do rei – expressões máximas da dignidade humana no horizonte religioso e político daquele tempo – era aquele carpinteiro galileu, profeta e peregrino, supeito aos olhos do templo e do império, executado exemplarmente fora dos muros da cidade.

Toda a literatura neotestamentária parte volta sempre a este ponto tão historicamente seguro quanto paradoxal: aquele homem desprezado, contestado e descartado como pedra inútil na construção do mundo do poder é a máxima expressão da madura dignidade humana e a mais profunda e completa manifestação da divindade. Aquele que se despojou voluntariamente de toda aparência de superioridade e se apresentou como simples ser humano é o único senhor diante do qual todos os joelhos devem se dobrar. Aquele homem relativizado e reduzido a nada, a zero, pelos poderes religiosos e políticos é o tudo e o absoluto no qual a humanidade a nela e se realiza plenamente.

O que me intriga e me tira do sério é a velha e resistente prática de esquecer o estábulo de Belém, a carpintaria de Nazaré, as estradas da Galiléia, as casas dos/as pecadores/as, as multidões curadas e saciadas no deserto, os pobres que ouviam boas notícias, a hipocrisia do sinédrio, a cruz da colina das caveiras, o grito sem resposta, a sepultura tomada de empréstimo, a coragem das mulheres e demais discípulos... para imobilizar Jesus Cristo no meio de uma nuvem de incenso e de uma muralha de candelabros no interior dos templos. Ou então, a traição descarada que retira Jesus da cruz e da sua cabeça a coroa de espinhos para fazê-lo sentar num palácio e apresentá-lo sentado num trono com a coroa imperial sobre a cabeça.

Mas ao lado, ou por detrás desta traição mais descarada e detestável, há uma outra, mais sutil e não menos perigosa. Trata-se do modo de demonstrar nossa fé em Jesus Cristo. Não está suficientemente claro que Jesus pede a quem o reconhece como Messias de Deus e deseja segui-lo conversão de mentalidade e participação ativa na sua missão de promover uma vida abundante para todas as pessoas, começando pelo amor preferencial aos últimos? É isso que nos é ensinado e ensinamos hoje?

Pode até ser... Mas o que pedem e fazem na prática as diversas Igrejas cristãs é muito diferente. Tudo dá a entender que o essencial é professar com a língua e em público que Jesus é o Senhor, participar dos encontros de louvor e libertação, frequentar os sacramentos, aceitar sem discutir o pesado código moral que cheira a passado e a dominação, ler a bíblia ou rezar o terço, inclusive as mil ave-marias... Como se Jesus Cristo fosse um milagreiro, um legislador, um sacerdote, um rei sequioso de nobilidade, de bajulação e de poder. Não é isso uma incrível traição de Jesus, mais detestável ainda por ser justificada em nome da piedade e da ortodoxia?

Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Festa da Sagrada Familia


Na família humana, Deus faz morada e abre caminhos
(Eclo 3,3-17; Sl 127/128; Col 3,12-21; Lc 2,41-52)
Neste domingo que se segue ao Natal celebramos a Festa da Sagrada Família, para mim muito especial. Nesse dia, mais que noutros, estaremos atentos/as ao que nos ensina e inspira este modelo de espiritualidade e de missão. Na Família de Nazaré Deus entrega seu mais precioso dom à humanidade e, através dela, a humanidade dá a Deus sua resposta mais profunda e mais generosa. Acompanhemos a atenção de José aos sinais dos tempos e sua resposta aos apelos de Deus. Para defender a vida das pessoas que ama, José deve migrar a um país estrangeiro, e para inserir seu filho nas lutas e esperanças do seu povo, fixa residência em Nazaré. É nesta família humilde, aberta aos planos de Deus e inserida nas tradições do próprio povo que a terra e o céu se abraçam e começa uma nova história.
“Deus honra o pai nos filhos...”
No dia em que festejamos a família de Jesus não podemos ceder à piedosa tentação de imaginar uma família idealizada e espiritualizada, alheia à própria realidade histórica e cultural. Do ponto de vista sociológico, a família de Jesus é uma família hebraica absolutamente normal, tão normal que sequer despertou a atenção dos vizinhos e da sinagoga. Ela viveu como uma simples família crente, freqüentando a sinagoga, meditando as profecias, esperando a vinda do Messias.
A santidade da Sagrada Família não consiste numa hipotética compenetração espiritual, nem nas práticas religiosas ou na pureza ritual dos seus membros. A santidade da família de Nazaré se fundamenta na abertura radical à vontade libertadora de Deus; na centralidade da pessoa de Jesus e nas relações que sua presença provoca entre os demais membros; no dinamismo de confiança, acolhida, doação e serviço solidário que ele instaura.
Como entusiasta devoto da Sagrada Família, o Pe. Berthier diz que nela somos convidados a contemplar a vida encarnada, anônima e cotidiana do Filho de Deus. Dito em linguagem atual, na Sagrada Família contemplamos o mistério de um Deus que, no amor e por amor, faz-se humano com tudo o que isso significa em termos de inserção na história, na cultura e na opacidade e na dureza da vida cotidiana. Na Sagrada Familia temos o mais lindo e vivo quadro do encontro entre a divindade e a humanidade.
“Jesus desceu, então, com seus pais, para Nazaré.”
Contemplemos este quadro real de uma família que caminha em meio às contigências da história, guiada pela fecunda obscuridade da fé. Ela percorre o duro caminho dos refugiados. E depois toma o rumo da marginalidade, estabelecendo residência em Nazaré. Praticamente ninguém percebe nada de especial. O essencial permanece oculto ao olhar privado da luz da fé. José se deixa guiar pelos sonhos, mediante os quais Deus lhe fala ao coração e suscita iniciativas corajosas e lúcidas.
É por obediência ao que lhe diz o anjo, que José leva a família Nazaré. A população da Galiléia era mestiça, tanto do ponto de vista étnico como religioso, e era considerada uma região de gentios (cf. Is 8,23). Nunca chegou a ser uma região verdadeiramente judaica, pelo menos do ponto de vista religioso. E a vila de Nazaré era um pequeno povoado que epresentava pouco os judeus. É possível que lá tenha instalado residência um ramo marginal da descendência de Davi.
Para a Sagrada Família, morar em Nazaré significou assimilar a esperança cultivada pelo “resto de Israel”, pelo “broto das raízes de Jessé”. Significou também não se afastar das raízes populares e do vínculo com os pobres; significou assumir resolutamente o caminho que leva à periferia, àqueles que estão longe, e privilegiar a encarnação no cotidiano que tece a vida normal de todas as pessoas. Eis aqui uma perspectiva que os missionários jamais devem abandonar!
“Todos os anos os pais de Jesus iam a Jerusalém para a festa da Páscoa.”
Como expressão da eterna compaixão de Deus pela humanidade e da resposta absolutamente generosa ao dom de Deus, a Sagrada Família inspira nossas famílias a ser espaço de enraizamento nas utopias do nosso povo e de crescimento humano e espiritual; a formar uma comunidade que tece seus vínculos num amor inclusivo e aberto; a caminhar discernindo Palavra e a vontade de Deus nos complexos sinais dos tempos; a dedicar-se inteiramente à missão de levar todos/as a formar a única família do Pai.
Neste sentido, a Sagrada Família relativiza tanto o modelo patriarcal como o modelo burguês de família. A cena descrita de forma estilizada por Lucas no evangelho de hoje o deixa muito claro. A família não é um valor absoluto e o pai não é uma autoridade incontestável. Enquanto realidade humana e social, a família cristã deve se abrir e se subordinar ao dinamismo do Reino de Deus, à comunhão de todos os homens e mulheres, dignos porque existem e porque são por Deus queridos e amados.
Mas há um outro elemento interessante, subtentendido na cena. A abertura da família ao mundo religioso também não é suficiente para que ela realize sua vocação. É verdade que a família de Nazaré peregrina anualmente a Jerusalém e que Jesus permanece no templo (ou na sinagoga) em meio aos doutores da lei. Mas esta família crescerá e amadurecerá – estará “naquilo que é do Pai” – voltando à vida cotidiana em Nazaré. É na plena inserção no mundo que a família se torna aquilo que é.
“Não sabíeis que devo estar naquilo que é de meu Pai?”
Na sua meditação sobre o evangelho de hoje, o Papa Bento XVI lembra que o adolescente Jesus manifesta um lado liberal e revolucionário, uma liberdade própria de quem é filho e não escravo. Se a peregrinação a Jerusalém normalmente era feita em comunidade – como a Igreja, que é uma comunidade sinodal, a caminho – podemos dizer que Jesus não teme o afastamento e o dissenso profético, convocando a própria comunidade familiar e eclesial a uma fidelidade mais radical a Deus.
Tanto Maria e José  como a comunidade eclesial são convocados por Jesus a não temer a cruz. Os três dias de procura angustiada de Jesus recordam os três dias que vão da prisão à ressurreição, passando pela flagelação, pelo abandono e pela morte de Jesus. A família e a Igreja jamais podem pretender possuir Jesus e tê-lo sob controle. Se os filhos devem obediência aos pais e o povo aos seus pastores, todos – pais e pastores – devem viver a radical obediência a Deus, vivida exemplarmente por Jesus.
Bento XVI lembra também que a fé de Maria e de José – assim como a nossa, a de todas as famílias – é uma fé a caminho, uma fé que seguidamente experimenta a escuridão e que precisa amadurecer. Não é verdade que sobre Jesus e sobre Deus sabemos tudo e só temos a ensinar! Quanta coisa precisamos ‘ruminar’ pacientemente para entender! Mas não temos motivos para desanimar, pois o próprio Jesus se submeteu a um lento e longo processo de crescimento humano e espiritual...
 “Por que me procuráveis?”
A cena evangélica que estamos refletindo nos dá a conhecer as primeiras palavras pronunciadas por Jesus segundo Lucas. E são duas perguntas. “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar naquilo que é do meu Pai?” São perguntas que interpelam nossas famílias e cada um/a de nós sobre as razões que nos movem na busca ou no seguimento de Jesus Cristo e sobre o horizonte maior no qual nos situamos como pessoas e como famílias: as ‘coisas de Deus’, ou seja, a vida humana plena, libertada, solidária. A missão cristã da família não começa nem termina em si mesma.
Portanto, nada de um certo ’familismo’ ingênuo e escapista, muito a gosto da velha moral eclesiástica e do novo espiritualismo de alguns movimentos. A família é chamada a ser escola de comunhão e participação, espaço de crescimento onde cada membro é suporte para o crescimento do outro. É o amor – e não a lei, a autoridade ou o sangue – que une os membros da família na sua diversidade e faz com que todos sejam, ao mesmo tempo, conselheiros e aprendizes, como nos lembra Paulo na sua carta. Em outras palavras: submissão e suporte recíprocos, sem privilégios de nenhum tipo.
“Revesti-vos do amor, que une todos na perfeição.”
Jesus Salvador, Deus-Conosco, filho de Maria e de José, nosso irmão querido! Tu viveste a aventura e os desafios que a vida familiar encerra e nos ensinaste, com palavras e com a vida, que a família morre se não rompe os estreitos limites do sangue e dos papéis estabelecidos. Guia nossas famílias e nossas comunidades no caminho que tu mesmo percorreste: no amor terno e comunicativo; na obediência, dedicação e fidelidade recíproca; na atenção permanente à desconcertante Palavra de Deus; na abertura às dores mais profundas e aos sonhos mais caros da humanidade; no empenho lúcido e generoso na tarefa de derrubar as barreiras, até que todos/as sejam uma só família. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

Fatos & Personagens: Oscar Niemeyer


Saudades do futuro

Oscar Niemeyer entrou no ano 2007 com cem anos de idade e oito novas obras em execução.

O arquiteto mais ativo de todos não se cansava de transformar, projeto após projeto, a paisagem do mundo.

Seus velhos olhos não subiam ao alto céu, que nos humilhava, mas estavam sempre novos para ficar, prazerosos, contemplando a navegação das nuvens, que eram sua fonte de inspiração para as próximas criações.

Lá, na nuveria, ele descobria catedrais, jardins de flores incríveis, monstros, cavalos a galope, aves de muitas asas, mares que explodiam, espumas que voavam e mulheres que ondulavam ao vento e no vento se ofereciam e no vento iam embora.

Cada vez que os médicos o internavam no hospital, Oscar matava o aborrecimento compondo sambas, que cantava junto com os enfermeiros.

E assim esse caçador de nuvens, esse perseguidor da beleza fugitiva, deixou para trás seu primeiro século de vida, e continuou em frente (até o dia 5 de dezembro de 2012).

(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 406)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Memória dos Santos Inocentes


Proclamemos nossa fé com a própria vida!
(1Jo 1,5-2,2; Sl 123/124; Mt 2,13-18)
As luzes natalinas continuam acesas, ainda há doces que esperam pela nossa degustação, mas a festa do natal parece terminar em tragédia anunciada: no dia 26 fizemos memória do primeiro mártir cristão (Santo Estêvão) e no  dia 28 recordamos (e festejamos!) o martírio das crianças de Belém pelas mãos do fraco, prepotente e sanguinário rei Herodes. Na festa dos Santos Inocentes, somos chamados/as a proclamar com a vida aquilo que professamos com os lábios. Convidados a participar da eucaristia do universo com um coração simples e puro, com uma fé feita mais de ações que com palavras e promessas. E interpelados a fazer justiça, ao menos não esquecendo as crianças que, no passado e no presente, são desrespeitadas em seus mais elementares direitos e feridas no corpo e na alma.
“Deus é luz e nele não há trevas.”
São João nos diz que Deus é Luz e que nele não há trevas. Convida-nos também a caminhar na luz de Cristo, que significa assumir serenamente nossos limites e pecados e viver em comunhão com os/as demais. Mediante a comunhão viva e ativa com as irmãs e  irmãos pecadores, abrimo-nos solidariamente a eles/as, o sangue de Jesus Cristo purifica os nossos pecados e sua luz resplandece em nosso corpo. “Se caminhamos na Luz, então estamos em comunhão com os outros”.
A proposta de Jesus é que procuremos sempre evitar o pecado. Mas sabemos também que, se e quando pecamos, ele não é nosso acusador, mas nosso advogado. Ele já deu a vida antecipadamente como pagamento pelas nossas dívidas. Nossa vida está salva, redimida e, por isso, não precisamos ter medo que alguém nô-la roube. Nós a podemos doar livre e gratuitamente. Esta vida que é dom que nos foi concedido, não nos pertence, mas também ninguém poderá roubá-la.
“O anjo do Senhor apareceu em sonho a José...”
Nos sonhos, José reforça a consciência da própria vocação: tomar conta da vida do Menino e protegê-lo ante todos os riscos e ameaças. A vida, em todas as suas formas e expressões, é santa e precisa ser cuidada. A vida dos pobres e pequenos é mais santa ainda, e merece um cuidado redobrado. Em vista disso precisamos estar prontos/as a arriscar nossa própria vida e desprezar as aparentes e frágeis seguranças. Nisso José, Maria e (mais tarde) Jesus são mestres, desde sempre.
Mateus nos mostra que José, o carpinteiro de Nazaré e marido de Maria, se inspira noutro José, aquele que fora vendido aos mercadores do Egito. É dele que aprendeu a sonhar. As preocupações e esperanças experimentadas durante o dia se transformam em sonhos noturnos. Mediante os sonhos, o pai e protetor de Jesus toma consciência da urgência das situações, mostra-se pronto e faz-se obediente à vontade de Deus. “José levantou-se, de noite, com o menino e a mãe, e retirou-se para o Egito.”
“Quando Herodes percebeu que os magos o tinham enganado, ficou furioso...”
O risco escondido no ventre das posições de poder é provocar o obscurecimento da mente e da fé e fazer pensar que a coisa mais transcendente a ser feita é assegurar a sua própria continuidade. Assim o fez Herodes e muitos outros que o seguiram, ontem e hoje, nos palácios reais ou eclesiásticos, nas cúrias de todos os nomes e latitudes. Deus não chama seu filho entre os habitantes dos palácios, mas o protege nos caminhos e brechas da história e o chama dentre os exilados e deserdados.
Herodes fica furioso porque os magos o fazem de bobo. Acostumado a se impor pelo medo, não consegue admitir que alguém o desobedeça suas. A fúria que dorme sob o disfarce da complacência é acordada pelo mais simples sinal de insubmissão. A raiva contra os magos se volta contra as crianças. Com medo de um concorrente ao trono, Herodes opta pelo extermínio dos inocentes. “E mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o território vizinho, de dois anos para baixo.”
“Ouviu-se um grito em Ramá, um choro e grande lamento...”
Não importam tanto os acontecimentos históricos quanto a serena constatação de que o medo e a prepotência dos poderosos sempre fazem vítimas, e as crianças são atingidas em primeira linha, tanto pela fuga, pela fome, pela morte  ou pela orfandade como por outras consequências da violência. Como diz o evangelista, citando o profeta Jeremias, a violência sofrida pelos inocentes é um grito que brada aos céus, provoca um lamento inconsolável e não deriva da vontade de Deus.
A Igreja acolhe o testemunho das crianças anônimas de Belém e as reconhece como mártires. Elas nem mesmo haviam conhecido Jesus e, menos ainda, tinham aderido ao seu caminho. Mas tiveram a vida estraçalhada por causa de Jesus Cristo. Mesmo sem dizer uma só palavra, eles confessaram com o sangue a chegada do Filho de Deus, abriram com seus pequenos corpos os caminhos do Reino de Justiça e de Paz, e testemunharam a violência mórbida e desumanizadora de Herodes.
“Do Egito chamei o meu filho...”
Anjilus Soren é um rapaz que vive perto de Chockarhat, Bangladesh. Sempre que vai ao mercado desta cidade, que fica a apenas um quilômetro da sua casa, Anjilus tem vontade de tomar um chá, como é tradição no seu país. Mas isso não é possível, porque os donos dos bares e restaurantes se recusam a servi-lo, pois ele é da tribo Santali. Dizem que tudo o que alguém dessa tribo toca, fica impuro. Todos os que pertencem à tribo Santali são odiados pelos muçulmanos Bengali...
Mi Swe é uma jovem birmanesa que vive na Austrália, mas não por livre escolha sua. Em 1983 sua família teve que deixar a Birmânia e viver num campo de refugiados, na Tailândia. Em 1995 o exército invadiu o campo e destruiu tudo, e sua família teve que fugir para outro campo de refugiados, onde nasceu Mi Swe. Sem segurança, sem escola e passando fome, o pai de Mi Swe pediu asilo à Austrália, pelo qual teve que esperar 15 anos. Ali a família está tentando reconstruir a vida.
Estes dois fragmentos biográficos de crianças e adolescentes golpeados pela violência podem ser completados por milhares de outros que todos conhecemos muito bem. As inocentes vítimas de uma violência vendida como cultura e promovida como sinal de liberdade em Newtowm não podem nos fazer esquecer das crianças-soldados em alguns países do continente Africano, dos descendentes de indígenas destruídos em sua identidade cultural, dos crianças do carvão no interior do Brasil...
 “A armadilha quebrou e recuperamos a liberdade.”
Apesar das aparências contrárias, a liturgia de hoje não é um lamento, mas um convite à confiança. Depois de lembrar nossas fragilidades e limites, João afirma na sua carta: “Temos junto do Pai um defensor!” E a comunidade peregrina que canta seu salmo no templo, não cansa de repetir: “Bendito seja o Senhor!...” Em todos os riscos e acidentes enfrentados na longa peregrinação de subida para Jerusalém os fiéis romeiros haviam experimentado claramente que o Senhor estava ao lado deles.
A fé que herdamos das primeiras comunidades nos diz discretamente que aqueles que semearam violentamente a morte dos inocentes não duraram muito (cf. Mt 2,20). E a voz popular que ressoa no Salmo 123/124 rejubila: “Como um passarinho, fomos libertados da armadilha do caçador... A armadilha quebrou, e recuperamos a liberdade... Nosso auxílio está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra!” Sim, Deus está ao lado dos pequenos e peregrinos, e impede que as águas do mar da vida os sufoquem.
Por isso, na festa dos Santos Inocentes somos convidados a ultrapassar a simples denúncia dos maus-tratos impostos às crianças, assim como a reinvindicação dos seus legítimos direitos. Esta é uma oportunidade para lembrar, junto com o sangue e as lágrimas derramadas, as inúmeras e belas iniciativas postas em movimento para quebrar as armadilhas que ameaçam a vida das crianças. E sem esquecer que tantas delas são concebidas e levadas aidante por comunidades eclesiais e religiosas.
“O nosso auxílio está no nome do Senhor!”
Deus pai e mãe das vítimas, dos migrantes, dos órfãos e das viúvas: no Menino da manjedoura mostraste ao mundo a glória da compaixão, e na fuga para o Egito partilhaste o destino de todos/as os/as  perseguidos/as por causa do teu Nome. Aprendemos  que é da boca dos pequeninos que recebes o perfeito louvor. As crianças de Belém anunciaram com o próprio sangue  a glória de teu Filho nascido na manjedoura. Faz com que nossa vida, tanto nos grandes momentos como nas práticas cotidianas, testemunhe  nossa fé em Jesus de Nazaré e na aurora invencível do teu Reino. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

Debate: encontro pessoal com Jesus Cristo


Tudo parte do encontro pessoal com Jesus Cristo?

Se coloco uma interrogação no final da frase acima não estou insinuando uma dúvida. Quero apenas suscitar uma rfelexão. De um certo tempo para cá esta frase, em tom afirmativo e alçada ao nível de princípio absolutamente fundamental, vem aparecendo reiteradamente nos discursos oficiais dos homens que dirigem a Igreja e ensinam oficialmente. Bento XVI e o Sínodo dos Bispos sobre a Nova Evangelização a repetiram à exaustão.

Confesso que a referência a este princípio e sua citação como se fosse um refrão e uma solução mágica para todos os probelmas me inquieta. Minha preocupação se localiza em duas questões: O que esta afirmação pretende desautorizar ou contestar? Qual é o conteúdo concreto que se subentende nesse encontro pessoal com Jesus Cristo?

Penso que esta afirmação é justa quando se opõe a um tipo de vida cristã que se resume num conjunto de idéias gerais sobre Deus ou na aceitação de um código complexo e pesado de normas morais, inspiradas numa visão pessimista e fragmentada da pessoa humana e do mundo. De tais estilos de vida cristã nada se pode esperar em termos de humanização e de evangelização do mundo contemporâneo.

Mas não posso concordar quando com esta afirmação o que se pretende é limitar ou eliminar o componente histórico da fé em Jesus Cristo. Suspeito que é isso que muitos ‘mestres e doutores’ pretendem com a repetição deste refrão. Os cristãos deveriam, pensam eles, se afastar dos projetos de transformação social, ou pelo menos relativizá-los substancialmente, pois a vida cristã se resolveria num encontro que ocorre no coração da pessoa humana ou na liturgia celebrada nos templos. Em definitivo: tudo se resumiria no encontro pessoal com Jesus, independentemente do engajamento no mundo à luz da solidariedade com as pessoas oprimidas ou marginalizadas.

Não sei como isso possa ser possível. Basta pensar um pouco naquilo que estamos celebrando nestes dias. Vou a Belém e encontro Deus na vulnerabilidade de um bebê, abrigado numa estrebaria. Vou a Nazaré e encontro Jesus trabalhando como carpinteiro e crescendo em todos os sentidos. Vou ao rio Jordão e vejo Jesus como ‘mais um’ na fila dos pecadores desejosos de endireitar caminhos. Voi à Galiléia e me dou com Jesus acolhendo pecadores, doentes e marginalizados e festejando com eles a graça libertadora ou a libertação gratuíta patrocinada por Deus.

Por mais que tente, não consigo encontrar Jesus Cristo senão em sua gloriosa presença na humanidade, não obstante nossas próprias e insuperáveis ambiguidades. Abro o santo livro e ele me diz que o Divino Verbo se fez carne humana e armou nela a tenda definitiva da sua presença. Aguço minha atenção e descubro que Maria e José, os Pastores, os Magos, Simeão e Ana me convidam a encontrar Cristo neste Jesus, tão humano como ninguém, frágil como todos/as nós. A mesma coisa me dizem os evangelistas e os discípulos e discípulas da primeira hora. Paulo não faz outra coisa que anunciar e testemunhar que em Jesus, nascido de mulher e assassinado na cruz, brilhou apareceu a filantropia de Deus e nele Deus se mostrou tal como é.

Mesmo quando me refugio no templo ou na capela, quando celebro o mistério eucarístico, não consigo me descolar dessa realidade. A grandeza do pão está na sua pequenez e naquilo que ele recorda e faz presente: a execução violenta de Jesus sob as autoridades judaicas e romanas e, concomitantemente,  o dom radical e absoluto que ele faz de si ao recusar-se a salvar a própria pele. Um dom nada romântico, pois ninguém conseguiu calar o grito desesperado que ele lança no escuro, do alto da cruz. Neste homem feito pedra rejeitada os cristãos encontram o Cristo esperado. Nesta criatura executada como bode expiatório alguns pagãos reconhecem o filho de Deus.

Sim, tudo parte do encontro pessoal com Cristo em Jesus de Nazaré. E isso quer dizer: ninguém encontrará o Deus verdadeiro fora da humanidade, especialmente da humanidade ferida e rejeitada; ninguém poderá anunciar o Evangelho ignorando e fazendo menos desse núcleo fundamental da fé cristã; a promoção humana e o engajamento na transformação do mundo são constantes e não apenas variáveis da evangelização. O resto deriva disso, e, com todo respeito, é secundário.

Itacir Brassiani msf

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Uma destruição massiva: a geopolítica da fome (final)


A ONU incluiu o direito à alimentação entre os Direitos Humanos (cf. artigo 25). É na perspectiva da luta por esse direito, um dos mais violados, que publiquei, durante três meses, uma série de breves textos sobre o escândalo da fome e o direito humano à alimentação. São informações e reflexões que simplesmente traduzo e resumo do recente livro Destruction massive. Géopolitique de la faim, de Jean Ziegler, relator especial da ONU para o direito à alimentação, de 2000 a 2008.
O livro foi publicado em outubro de 2011, pela editora Seuil (Paris).
Com esta página, concluo esta série de partilhas, agradecendo a atenção dos amigos/as e convocando a todos/as à militância pelo direito humano à alimentação.

Como erradicar a tragédia da fome?
A erradicação do escândalo da fome passa pela luta contra a corrupção dos dirigentes de muitos países do hemisfério Sul, contra sua venalidade, seu apego ao poder e ao dinheiro que esta posição lhes possibilita. A malversação do dinheiro público em certos países do Terceiro Mundo e o enriquecimento dos políticos é uma verdadeira calamidade. Onde vigora a corrupção, os países acabam sendo vendidos aos predadores do capital financeiro mundializado. Como combater eficazmente e vencer esses inimigos?

Che Guevara dizia que os muros mais fortes começam a cair a partir de suas rachaduras. E Gramsci dizia que o pessimismo da razão obriga o otimismo da vontade. Péguy poetizava que a esperança é a mais bela flor da criação, capaz de encantar o próprio Deus. A ruptura, a resistência e o apoio aos contra-poderes ou forças populares em todos os níveis é indispensável. É necessário contar também com homens e mulheres capazes de ações voluntariosas, concretas e simbólicas.

As soluções existem e os meios para realizá-las estão disponíveis. E os primeiros meios, especialmente no Ocidente do mundo, são o voto, a livre manifestação, a mobilização geral, a greve... Estes meios podem nos ajudar a fazer pressão em vista de uma mudança radical nas alianças e políticas. Não há impotência num mundo realmente democrático.

O reinado planetário dos trustes agroalimentares gera a miséria e a fome de centenas de milhões de seres humanos, enfim, a morte. Ao contrário, a agricultura familiar de sobsistência, se for apoiada pelos Estados e se puder contar com os investimentos e insumos dos quais necessita, é geradora de vida, e de vida para todos.

Em 2011, a Via Campesina apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU uma declaração, em cujo preâmbulo advertia: “Os camponeses e camponesas representam quase a metade da população mundial. Mesmo no mundo da tecnologia de ponta, as pessoas comem os alimentos produzidos por eles/as. A agricultura não é simplesmente uma atividade econõmica, pois está intimamente ligada com a vida e à sobrevivência na terra. A segurança dos povos depende depende do bem-estar dos camponeses e camponesas e da agricultura estável. Para proteger a vida humana é importante respeitar e colocar em prática os direitos dos camponeses. A violação contínua desses direitos ameaça a vida humana e o planeta.”

A erradicação do flagelo da fome começa com a indignação, que é o contrário da indiferença e o sinal de que não perdemos a humanidade. Como reza o belo poema de Léon Greco, imortalizado na voz de Mercedes Sosa: “Eu só peço a Deus que a dor não me seja indiferente; que a seca morte não me encontre vazio e só, sem ter feito o suficiente...” (p. 338-341)

Sonhos à luz do Natal


Realistas são as pessoas que sonham o impossível...


Taxam-me de sonhador e dizem que me falta senso de realismo. Eu mesmo às vezes me interrogo se não sou demasiadamente amargurado e crítico, pessoa insatisfeita, sempre do contra. Mas eu aprendi com Isaías...

Estou farto de holocaustos de bodes, de gordura de touros...
Parai de trazer oferendas mentirosas! Incenso é coisa aborrecida para mim!...
Não suporto mentira com festa religiosa...
Tudo isso é um peso que não aguento carregar.
Quando estendeis para mim as mãos, desvio o meu olhar...
Parai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem, buscai o que é correto, defendei o direito do oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva. (Is 1,11-17)

O que dizer de algumas das nossas solenes liturgias? São rituais que se ordenam à defesa e consolidação do poder. Às vezes são terrivelmente cínicas, especialmente quando insistem nas coisas do céu e desprezam as dores e anelos da terra. Na verdade são hipócritas, pois em nome da dimensão espiritual não fazem mais que perpetuar alguns domínios muito temporais...

Falando de Deus, o profeta Isaías nos convida a olhar longe, como somente as pessoas loucas e sonhadoras ousam fazer.  Num  momento em que o realismo exortava a ser armar e fazer alianças estratégicas com os impérios emergentes, o profeta que cresceu no templo mas percebeu seus insuperáveis limites falou que Deus está cansado das liturgias pomposas...

Ele nos vai mostrar a sua estrada, e nós vamos trilhar por seus caminhos.
Às nações ele dará a sentença, decisão para povos numerosos:
Devem fundir suas espadas para fazer pás de arado,
Fundir as lanças para delas fazer foices!... (Is 2,3-4)

Não penso que o caminho de Deus seja necessariamente aquele que nos leva a Roma e seu monarca de plantão. Não creio que é do trono que está em Roma (Pedro jamais teve um trono, e Jesus Cristo também não!) que virão as sentenças de defesa dos humilhados da terra. Daqui ultimamente só saem lamentações diante de um mundo que, tendo atingido a maioridade, recusa ser tratado como menor e até ousa discutir o espaço de Deus. Daqui são desferidos juízos como este que diz que as religiosas norteamericanas são coletivamente pós-modernas e pós-cristãs. Por isso, a liberdade está na nossa capacidade de sonhar...

Alegro-me imaginando o dia em que a Igreja aposente a guarda suíça e organize e envie aos quatro cantos do mundo brigadas de promotores da paz, da igualdade e da justiça.
Espero impacientemente o bendito momento em que os tronos móveis e imóveis, dourados e prateados que inundam o Estado do Vaticano dêm lugar a tolhas que enxuguem os pés e caminhos que levem ao encontro das pessoas comuns.
Anelo por um tempo novo, no qual a solenidade da liturgia seja selada pela presidência feminina e pela presença ativa de homens e mulheres de todas as cores e raças.
Suspiro pelo resgate de uma profecia capaz de sustentar nas pessoas da Igreja a coragem de dar nome aos opressores, de mandar que se acabem as guerras e de sustentar todas as lutas por emancipação.
Sonho com uma missão feita substancialmente de serviço à vida, tecida pacientemente de diálogo, colorida lindamente pelo testemunho, temperada equilibradamente pelo anúncio.
Postulo ardentemente a primazia da liberdade do Evangelho sobre a segurança do direito canônico, da esperança sobre a lembrança, do amanhã sobre o ontem, do caminho sobre os edifícios.
E esperando no Senhor, luto por uma Igreja amiga das criaturas, parceira das pessoas sonhadoras e inquietas, radicalmente democrática nas suas instituições, policêntrica e intercultural.

Itacir Brassiani msf