Na
família humana, Deus faz morada e abre caminhos
(Eclo 3,3-17; Sl 127/128; Col 3,12-21;
Lc 2,41-52)
Neste domingo que se segue ao Natal celebramos a Festa da Sagrada Família, para mim muito
especial. Nesse dia, mais que noutros, estaremos atentos/as ao que nos ensina e
inspira este modelo de espiritualidade e
de missão. Na Família de Nazaré Deus entrega seu mais precioso dom à
humanidade e, através dela, a humanidade dá a Deus sua resposta mais profunda e
mais generosa. Acompanhemos a atenção de José aos sinais dos tempos e sua
resposta aos apelos de Deus. Para defender a vida das pessoas que ama, José
deve migrar a um país estrangeiro, e para inserir seu filho nas lutas e
esperanças do seu povo, fixa residência em Nazaré. É nesta família humilde,
aberta aos planos de Deus e inserida nas tradições do próprio povo que a terra
e o céu se abraçam e começa uma nova história.
“Deus
honra o pai nos filhos...”
No
dia em que festejamos a família de Jesus não podemos ceder à piedosa tentação
de imaginar uma família idealizada e espiritualizada, alheia à própria realidade
histórica e cultural. Do ponto de vista sociológico, a família de Jesus é uma família hebraica absolutamente normal, tão
normal que sequer despertou a atenção dos vizinhos e da sinagoga. Ela viveu
como uma simples família crente, freqüentando a sinagoga, meditando as
profecias, esperando a vinda do Messias.
A
santidade da Sagrada Família não consiste numa hipotética compenetração
espiritual, nem nas práticas religiosas ou na pureza ritual dos seus membros. A
santidade da família de Nazaré se fundamenta na abertura radical à vontade libertadora de Deus; na centralidade da pessoa de Jesus e nas
relações que sua presença provoca entre os demais membros; no dinamismo de
confiança, acolhida, doação e serviço solidário que ele instaura.
Como entusiasta devoto da Sagrada Família, o Pe.
Berthier diz que nela somos convidados a contemplar a vida encarnada, anônima e
cotidiana do Filho de Deus. Dito em linguagem atual, na Sagrada Família contemplamos o mistério de um Deus que, no amor e
por amor, faz-se humano com tudo o que isso significa em termos de inserção
na história, na cultura e na opacidade e na dureza da vida cotidiana. Na
Sagrada Familia temos o mais lindo e vivo quadro do encontro entre a divindade
e a humanidade.
“Jesus
desceu, então, com seus pais, para Nazaré.”
Contemplemos este quadro real de uma família que caminha em meio às contigências da história, guiada
pela fecunda obscuridade da fé. Ela percorre o duro caminho dos refugiados. E
depois toma o rumo da marginalidade, estabelecendo residência em Nazaré. Praticamente
ninguém percebe nada de especial. O essencial permanece oculto ao olhar privado
da luz da fé. José se deixa guiar pelos sonhos, mediante os quais Deus lhe fala
ao coração e suscita iniciativas corajosas e lúcidas.
É por obediência ao que lhe diz o anjo, que José leva
a família Nazaré. A população da Galiléia era mestiça, tanto do ponto de vista
étnico como religioso, e era considerada uma região de gentios (cf. Is 8,23). Nunca
chegou a ser uma região verdadeiramente judaica, pelo menos do ponto de vista
religioso. E a vila de Nazaré era um pequeno povoado que epresentava pouco os
judeus. É possível que lá tenha instalado residência um ramo marginal da
descendência de Davi.
Para a Sagrada Família, morar em Nazaré significou assimilar a esperança cultivada pelo “resto
de Israel”, pelo “broto das raízes de Jessé”. Significou também não se
afastar das raízes populares e do vínculo com os pobres; significou assumir
resolutamente o caminho que leva à periferia,
àqueles que estão longe, e privilegiar a encarnação no cotidiano que tece a
vida normal de todas as pessoas. Eis aqui uma perspectiva que os missionários
jamais devem abandonar!
“Todos
os anos os pais de Jesus iam a Jerusalém para a festa da Páscoa.”
Como expressão da eterna compaixão de Deus pela
humanidade e da resposta absolutamente generosa ao dom de Deus, a Sagrada
Família inspira nossas famílias a ser espaço de enraizamento nas utopias do
nosso povo e de crescimento humano e espiritual; a formar uma comunidade que
tece seus vínculos num amor inclusivo e aberto; a caminhar discernindo Palavra
e a vontade de Deus nos complexos sinais dos tempos; a dedicar-se inteiramente
à missão de levar todos/as a formar a única família do Pai.
Neste sentido, a Sagrada Família relativiza tanto o
modelo patriarcal como o modelo burguês de família. A cena descrita de forma
estilizada por Lucas no evangelho de hoje o deixa muito claro. A família não é um valor absoluto e o pai
não é uma autoridade incontestável. Enquanto realidade humana e social, a
família cristã deve se abrir e se subordinar ao dinamismo do Reino de Deus, à
comunhão de todos os homens e mulheres, dignos porque existem e porque são por
Deus queridos e amados.
Mas há um outro elemento interessante, subtentendido
na cena. A abertura da família ao mundo religioso também não é suficiente para
que ela realize sua vocação. É verdade que a família de Nazaré peregrina
anualmente a Jerusalém e que Jesus permanece no templo (ou na sinagoga) em meio
aos doutores da lei. Mas esta família crescerá e amadurecerá – estará “naquilo
que é do Pai” – voltando à vida cotidiana em Nazaré. É na plena inserção no mundo que a família se torna aquilo que é.
“Não
sabíeis que devo estar naquilo que é de meu Pai?”
Na sua meditação sobre o evangelho de hoje, o Papa
Bento XVI lembra que o adolescente Jesus manifesta um lado liberal e
revolucionário, uma liberdade própria de
quem é filho e não escravo. Se a peregrinação a Jerusalém normalmente era feita
em comunidade – como a Igreja, que é uma comunidade sinodal, a caminho – podemos dizer que Jesus não teme o afastamento
e o dissenso profético, convocando a própria comunidade familiar e eclesial a
uma fidelidade mais radical a Deus.
Tanto Maria e José
como a comunidade eclesial são convocados por Jesus a não temer a cruz.
Os três dias de procura angustiada de Jesus recordam os três dias que vão da prisão à ressurreição, passando pela
flagelação, pelo abandono e pela morte de Jesus. A família e a Igreja jamais
podem pretender possuir Jesus e tê-lo sob controle. Se os filhos devem
obediência aos pais e o povo aos seus pastores, todos – pais e pastores – devem
viver a radical obediência a Deus, vivida exemplarmente por Jesus.
Bento XVI lembra também que a fé de Maria e de José –
assim como a nossa, a de todas as famílias – é uma fé a caminho, uma fé que seguidamente experimenta a escuridão e
que precisa amadurecer. Não é verdade que sobre Jesus e sobre Deus sabemos tudo
e só temos a ensinar! Quanta coisa precisamos ‘ruminar’ pacientemente para
entender! Mas não temos motivos para desanimar, pois o próprio Jesus se
submeteu a um lento e longo processo de crescimento humano e espiritual...
“Por que me procuráveis?”
A cena evangélica que estamos refletindo nos dá a
conhecer as primeiras palavras pronunciadas por Jesus segundo Lucas. E são duas
perguntas. “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar naquilo que é do
meu Pai?” São perguntas que interpelam nossas famílias e cada um/a de nós sobre
as razões que nos movem na busca ou no seguimento de Jesus Cristo e sobre o
horizonte maior no qual nos situamos como pessoas e como famílias: as ‘coisas
de Deus’, ou seja, a vida humana plena, libertada, solidária. A missão cristã da
família não começa nem termina em si mesma.
Portanto, nada de um certo ’familismo’ ingênuo e
escapista, muito a gosto da velha moral eclesiástica e do novo espiritualismo
de alguns movimentos. A família é chamada
a ser escola de comunhão e participação, espaço de crescimento onde cada membro
é suporte para o crescimento do outro. É o amor – e não a lei, a autoridade
ou o sangue – que une os membros da família na sua diversidade e faz com que
todos sejam, ao mesmo tempo, conselheiros e aprendizes, como nos lembra Paulo
na sua carta. Em outras palavras: submissão e suporte recíprocos, sem
privilégios de nenhum tipo.
“Revesti-vos
do amor, que une todos na perfeição.”
Jesus Salvador,
Deus-Conosco, filho de Maria e de José, nosso irmão querido! Tu viveste a
aventura e os desafios que a vida familiar encerra e nos ensinaste, com
palavras e com a vida, que a família morre se não rompe os estreitos limites do
sangue e dos papéis estabelecidos. Guia nossas famílias e nossas comunidades no
caminho que tu mesmo percorreste: no amor terno e comunicativo; na obediência, dedicação
e fidelidade recíproca; na atenção permanente à desconcertante Palavra de Deus;
na abertura às dores mais profundas e aos sonhos mais caros da humanidade; no
empenho lúcido e generoso na tarefa de derrubar as barreiras, até que todos/as
sejam uma só família. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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