sábado, 30 de junho de 2012

Miriam de Nazaré (8)


Este é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do ensaio, que ensaia uma reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.

3)      O horizonte libertador da pedagoga “cheia de graça” (1)

Na análise do significado do “sinal” de Caná, acenamos, de passagem, para o modo de ser e de agir pedagógicos de Miriam de Nazaré. Importa, agora, aprofundar e ampliar esta perspectiva pedagógica da mãe de Jesus, estendendo seu horizonte para outras situações referidas pelos evangelistas. Somos cientes das dificuldades hermenêuticas deste intento, uma vez que a dimensão educativa e pedagógica presente nas atitudes e nos ensinamentos de Miriam de Nazaré está praticamente ausente nos milhares de obras que já se escreveram sobre mariologia. Daí, o caráter ensaístico do presente tópico e, ao mesmo tempo, a justificativa para inseri-lo num texto sobre educação e feminismo e a partir de um enfoque histórico e filosófico da educação. Não pretendemos desmerecer os clássicos tratados de pedagogia; pedimos, tão-somente, passagem para novas tematizações. Cabe observar, ainda e preliminarmente, que utilizamos as categorias “educação” e “pedagogia” em seu sentido amplo de formação e orientação do ser humano no seu permanente desabrochar biopsicossocial.

Partindo do pressuposto da indissociável relação entre mariologia e cristologia, iniciamos este tópico com algumas observações sobre a educação recebida por Jesus em seus anos vividos em Nazaré, certos de que o papel educativo executado por Miriam, ao lado do seu esposo José, plasmou a formação e a personalidade de seu filho Jesus. A seguir, daremos ênfase para a dimensão auto-educativa da pedagogia miriana e, por último, buscaremos extrair do Magnificat a riqueza dos ensinamentos libertadores da mestra de Nazaré.

3.1    Influências externas e internas que moldaram os anos de formação de Jesus de Nazaré[i].

Vista parcial de Nazaré hoje
Do ponto de vista histórico-biográfico, no sentido moderno de biografia, quase nada pode ser referido sobre os anos de formação de Jesus. Os cerca de trinta e dois anos anteriores ao seu ministério público são e continuarão sendo “anos obscuros” para a historiografia moderna. As únicas armas hermenêuticas disponíveis são as da analogia histórica e as generalizações extraídas do contexto geográfico, histórico e temporal e aplicadas às condições familiares e individuais dos habitantes de um determinado lugar.

A despeito das evidentes limitações em termos de fontes históricas confiáveis, podemos pressupor que Jesus, como criança, adolescente e jovem, tenha passado pelas fases normais do desenvolvimento físico, sexual, intelectual, social e religioso, bem como do amadurecimento natural do ser humano, assistido e orientado por seus pais José e Miriam. Alguns textos neotestamentários dão suporte a esta pressuposição e generalização, pois, lemos, em Lc 2,40: “E o menino (em grego: paidíon) crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria” e em Lc 2,52: “E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens”. Por seu turno, o autor da epístola aos Hebreus observou: “Convinha, por isso, que (Jesus) em tudo se tornasse semelhante aos irmãos” (Hb 2,17; cf. 4,15: “...pois ele foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado).
Fora destes informes gerais, é inútil pretender obter dados precisos, p. ex., sobre a problemática sexual, a formação da auto-identidade, o Q.I. ou sobre particularidades físicas, psicológicas, artísticas ou intelectuais de Jesus. Vale a máxima filosófica: “O que se afirma gratuitamente, pode ser gratuitamente refutado”. Em termos de história da educação, porém, é legítimo nos interrogar, à luz da analogia e generalização histórica, sobre as influências externas (línguas que aprendeu, tipo de educação que recebeu, ofício que exerceu e condição socioeconômica em que viveu) e internas (relações familiares, estado civil etc.) que marcaram seu crescimento e desenvolvimento e sua formação humana.

Quanto às línguas que Jesus falava, é preciso ter em mente que os idiomas usados na Palestina no tempo de Jesus eram o latim, o grego, o hebraico e o aramaico. Não há razão para se pensar que Jesus falou, e muito menos leu, o latim, já que ele era empregado quase exclusivamente por funcionários romanos. Seu contato e domínio do grego são admissíveis, tendo em vista as peregrinações regulares com sua família à cidade helenizada de Jerusalém e a necessidade de um conhecimento mínimo deste idioma em sua oficina de carpintaria para fazer negócios e passar recibos. O hábito de Jesus de pregar nas sinagogas e debater com escribas e fariseus sobre questões do Antigo Testamento, na sua vida pública, permite deduzir que devia ter alguma noção deste idioma bíblico. Como Rabi que pregava a camponeses judeus da Galiléia, da Samaria e da Judéia, cuja língua usual era o aramaico, é certo que seus ensinamentos foram pronunciados neste idioma. São muitos os traços aramaicos que aparecem explícitos nos evangelhos gregos.

Quanto à questão se Jesus sabia ler ou escrever, é razoável supor que a formação religiosa de Jesus foi intensa e profunda, incluindo o aprendizado da leitura do hebraico bíblico. Além dos seus pais, o mais provável canal de instrução seria a sinagoga de Nazaré, que poderia servir como uma espécie de “escola elementar” religiosa. A prova indireta de Jo 7,15: “Como entende ele de letras sem ter estudado?” se, de um lado, insinua que Jesus era alfabetizado, constatação corroborada com sua comprovada habilidade em debater os textos das Escrituras e suas interpretações com fariseus devotos, escribas profissionais e autoridades, tanto nas sinagogas como no Templo de Jerusalém, por outro lado, parece insinuar que Jesus não freqüentou nenhuma escola formal. Aliás, o termo “escola” (em grego: scholè) nunca ocorre no Novo Testamento, à exceção da “Escola de Tiranos” pagã que Paulo utilizou em Éfeso, onde se entretinha com seus discípulos diariamente pelo espaço de dois anos cf. At 19,9-10).

Material rabínico dos séculos II ao V d.C. (Mixná, Talmude Palestino e Babilônico) dá conta de um amplo sistema educacional judaico existente na Palestina. É confiável aplicar retroativamente às décadas iniciais da era cristã este material de séculos diferentes? Admitindo-se a correção histórica desta retroatividade homogeneizadora, já no século I d.C. a maioria das crianças judias recebia escolarização. Em todas as cidades maiores, e mesmo em povoados menores, existiam as chamadas “beth ha-sepher” (“casa do livro”). A escrita era uma atividade profissional nem sempre proporcionada concomitantemente à aprendizagem da leitura. Aos doze ou treze anos, o menino terminava seus estudos na escola. A alguns poucos alunos privilegiados e mais brilhantes proporcionava-se uma educação mais avançada, na “Beth ha-midrash”, onde se dedicavam ao estudo da Torá com mestres da Lei. Estas escolas eram raras, não existindo um sistema educacional formal e obrigatório após os doze ou treze anos.

O Talmude estabeleceu normas para o pagamento dos professores para que também as crianças pobres tivessem acesso à escola. Esta geralmente estava anexa à sinagoga, sendo a instrução ministrada em salas ou construções contíguas, ou, em certos casos, no pátio da casa do profesor.
Mesmo não admitindo a plena historicidade destas informações da literatura rabínica posterior, podemos deduzir a formação e instrução não apenas profissional e religiosa, mas também escolar, a partir do tipo de ministério público exercido por Jesus. Estas extrapolações mostram que a vida pública de Jesus estava centrada na religião judaica. Todos os evangelistas o apresentam participando de debates eruditos sobre as Escrituras, que lhe foi conferido o título de “Rabi” (mestre), e que é comum nos evangelhos vê-lo pregando e ensinando nas sinagogas e no Templo. O impacto produzido nos ouvintes ou interlocutores demonstra que o nível de instrução de Jesus era elevado, o que não teria sido o caso se fosse analfabeto.

E qual a formação profissional de Jesus? No evangelho de Marcos, os judeus de Nazaré fazem uma pergunta retórica sobre Jesus, o menino criado na cidade e que agora, adulto, pretende lhes dar lições na sua própria sinagoga: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria” (Mc 6,3). Em nenhum outro lugar do Novo Testamento é feita qualquer referência expressa a respeito da profissão exercida por Jesus de Nazaré. O evangelista Mateus reformula a pergunta: “Não é este o filho do carpinteiro?” (Mt 13,55), transferindo a profissão para o seu pai José. Lucas, por sua vez, modifica ainda mais o texto de Marcos: “Não é este o filho de José?” (Lc 4,22). Em suma, a profissão de carpinteiro (em grego: téktôn), atribuída a Jesus ocorre apenas num meio versículo de Marcos. Não existe, porém, razão para pensar que esta indicação seja historicamente inexata. De acordo com os costumes da época, Jesus deve ter aprendido a profissão de carpinteiro na oficina do próprio pai José[ii].

A situação sócio-econômica da família de Nazaré, ainda que não possa ser identificada com a relativa segurança econômica de comerciantes, artesãos de cidades ou de lavradores independentes que possuíam alguma extensão de terra, certamente era melhor que a dos trabalhadores diaristas, dos servos contratados, dos artesãos ambulantes, dos lavradores sem-terra e, sobretudo, dos escravos. Embora modesto, o padrão de vida de Jesus, Maria e José era melhor que o de muitos habitantes de Nazaré e de outras cidades ou povoados da Galiléia[iii]. Os conhecimentos gerais que Jesus demonstra possuir em seus ensinamentos, nas parábolas do ministério público, são uma prova indireta que adquiriu uma sólida formação na área da agricultura, do pastoreio, do comércio, do artesanato, sem falar da economia doméstica, cuja aprendizagem assimilou na companhia e no exemplo de sua mãe.
Ao lado das influências externas nos anos de formação de Jesus, tais como: língua, instrução, profissão e realidade sócio-econômica, há também condições internas, como: laços familiares, estado civil e sua condição de leigo, que contribuíram para moldar a personalidade e a identidade de Jesus no ambiente de Nazaré.

Quanto à situação familiar, já acenamos aos dados dos evangelhos concernentes aos pais, aos irmãos e irmãs de Jesus. Assim, tomando em consideração os aspectos puramente filológicos e redacionais de Mc 6,3: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”, uma mente aberta aceita tranqüilamente a opinião de que os irmãos e as irmãs de Jesus referidas no versículo acima realmente eram irmãos legítimos e biológicos, e não primos (como afirmou por primeiro Jerônimo, século IV d.C.) ou meios-irmãos (segundo a opinião de Hegesipo e do livro apócrifo Proto-evangelho de Tiago, ambos do século II d.C.).

Concernente ao estado civil de Jesus, não podemos ter certeza absoluta se  foi casado ou não. O total silêncio sobre esposa e filhos em contextos onde figuram seus diversos parentes permite deduzir, como opinião mais provável, que ele nunca se casou. Sua opção pelo celibato deve ser interpretada como o resultado de sua missão profética e religosa.

Referente à condição de Jesus como leigo, cabe dizer que nasceu, exerceu seu ministério e morreu como Galileu leigo. Não existe tradição histórica confiável, tanto nos sinóticos como no quarto evangelho, que afirme ter sido ele de linhagem levítica ou sacerdotal. A própria epístola aos Hebreus, redigida por um cristão de alta erudição no final do século I d.C., interpretada erroneamente por cristãos e teólogos apresentando Jesus como sumo sacerdote, afirma explicitamente: “Na verdade, contudo, se (Jesus) estivesse na terra, não seria nem mesmo sacerdote” (Hb 8,4). Para o autor da carta aos Hebreus, Jesus se torna sacerdotes somente por ter passado pelo sacrifício da cruz. Durante sua vida terrena, permaneceu leigo.


Bertilo Brod



[i] Para o presente tópico, seguimos, em grande parte, as pegadas abertas por John MEIER, op. cit., p. 251-365 e respectivas notas.
[ii] O sentido clássico de téktôn talvez correspondesse melhor, na linguagem moderna, a “marceneiro” do que a “carpinteiro”, que este último recebeu um sentido mais restrito, como sendo o trabalhador que constrói ou repara estruturas de madeira ou suas partes componentes, ao passo que o ofício de marceneiro englobava a lida com pedras, chofre ou marfim, e a fabricação de arados, cangas de animais, além de peças de mobiliário, a construção de casas e a preparação do madeiramento para tal fim.
[iii] Para um estudo da determinância das condições sociais, políticas e religiosas da Galiléia na formação de Jesus e do seu movimento, veja-se: FREYNE, Sean. A Galiléia, Jesus e os evangelhos: enfoques literários e investigações históricas. São Paulo: Loyola, 1996.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

CARTA DAS RELIGIÕES E O CUIDADO DA TERRA


A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil é signatária de uma Carta das Religiões sobre o cuidado da Terra. O documento  foi elaborado e aprovado por iniciativa da Comisssão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Interreligioso no espaço da Coalizão Ecumênica Interreligiosa "Religiões por Direitos" durante a Cúpula dos Povos na Rio + 20.


CARTA DAS RELIGIÕES E O CUIDADO DA TERRA


No Espaço da Coalizão Ecumênica e Inter-religiosa "Religiões por Direitos", no quadro da Cúpula dos Povos na Rio+20 para a Justiça Social e Ambiental, contra a mercantilização da vida e em defesa dos bens comuns, os líderes religiosos do Brasil signatários, por iniciativa da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Interreligioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de Religiões pela Paz, reuniram-se para debater a relação entre as religiões e as questões ambientais.   Como resultado do diálogo, concordou-se que a agenda das religiões na atualidade não deve desconsiderar a agenda do cotidiano da vida das pessoas na sociedade e das exigências da justiça ambiental.
A agenda das religiões deve incluir os elementos que traçam os projetos do ser humano na busca de realização da sua existência e afirmar compromissos efetivos com a defesa da vida no planeta.  Religiões, sociedade e meio ambiente não são realidades distanciadas, mas estreitamente correlatas.  As tradições religiosas contribuem para a ampliação da consciência dos seus seguidores sobre os valores fundamentais da vida, pessoal, social e ambiental, orientando para a convivência pacífica e respeitosa entre os povos, culturas e credos, e destes com toda a criação.
Assim, é fundamental na agenda das tradições religiosas hoje:
a)        Apresentar ao mundo o sentido da existência humana.  A humanidade vive momentos de pessimismo, com sensação de fracasso e desânimo, sobretudo nas situações e ambientes de crises econômicas, de injustiças, de violência e de guerras. Comprometemo-nos em fazer com que as nossas tradições religiosas afirmem de modo concreto o valor da vida de cada pessoa, independente da sua condição social, religiosa, cultural, étnica e de gênero, ajudando-as na superação dos problemas que lhes afligem no cotidiano, sejam eles de caráter sócio-econômico-cultural e político, sejam eles de caráter pisíquico-espiritual.
b)       Afirmar juntos o valor sagrado da vida, sobretudo do ser humano, considerando as diferenças nas formas de compreensão e de explicitação desse valor. Comprometemo-nos em promover um efetivo respeito pela dignidade da pessoa e dos seus direitos acima de interesses econômicos, culturais, políticos e religiosos.  Afirmamos que crer em um Ser Criador implica em desenvolver uma espiritualidade que tenha compromisso com a promoção e defesa da vida human, pois o ser humano é a razão do serviço religioso que nossas tradições de fé oferecem ao mundo.
c)        Promover a educação e a prática do respeito mútuo, do diálogo, da convivência pacífica e da cooperação entre as diferenças, fundamental no mundo plural em que vivemos. Assumimos o compromisso de trabalhar para a convergência dos diferentes paradigmas culturais e religiosos dos povos, como uma possibilidade para melhor entendermos o mundo dentro de suas inter-relações e a convivência entre todos os seres humanos.
d)       Explicitar mais e melhor o que já possuímos em comum.  Nossas tradições já condividem valores religiosos, como a fé em um Ser Criador, o cultivo da relação com Ele, a compreensão da origem e do fim de cada pessoa. Comprometemo-nos a partilhar as riquezas que possuímos para fortalecer as relações inter-religiosas que possibilitam a cooperação entre os credos na solução dos problemas que afligem o nosso país e o mundo em que vivemos.
e)        Discernir juntos os valores que constroem a paz no mundo.  Sabemos que a paz não é simples ausência da guerra, mas é fruto da justiça e da prática da caridade. Comprometemo-nos na promoção da convivência pacífica entre os povos e o desenvolvimento do sentido da fraternidade e da solidariedade universal, superando todo fundamentalismo e exclusivismo, bem como o consumismo irresponsável que causam conflitos entre as pessoas e os povos.
f)         Viver a compaixão para com os mais necessitados, empobrecidos e excluídos da sociedade. Assumimos realizar juntos projetos sociais que fortalecem a solidariedade nas comunidades religiosas e na família humana.
g)        Promover o valor e o cuidado da criação. Tomamos conhecimento das ameaças à vida do planeta, conseqüências dos interesses econômicos que constroem uma cultura utilitarista e consumista na sociedade em que vivemos. Comprometemo-nos com o desenvolvimento de uma nova ética na relação com o meio ambiente, capaz de orientar novas atitudes defensoras de todas as formas de vida, sustentadas em políticas públicas de justiça ambiental e numa mística/espiritualidade que explicite a gratuidade e o dom da vida na criação.
h)       Contribuir efetivamente para com as iniciativas ligadas à construção e promoção da cidadania. Comprometemo-nos na qualificação de uma vivência religiosa dos membros de nossas tradições que favoreça o convívio social dos credos, a afirmação da tolerância e da liberdade religiosa.
i)          Solicitar à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável Rio+20 reconhecer que os imperativos morais de todas as religiões, convicções e crenças exigem o cuidado da Terra, e que a cooperação inter-religiosa é uma dimensão imprescindível para alcançarmos o desenvolvimento sustentável de toda a humanidade. Enfim, propomos-nos a desenvolver novos comportamentos, com prevalência da ética da tolerância, da liberdade, do respeito, da dignidade, da convivência da diversidade cultural e religiosa, dos direitos humanos.  São elementos de uma ética mínima que  devemos afirmar tanto a partir de uma consciência ética secular, como da consciência das convicções religiosas que possuímos.

Rio de Janeiro, 19 de junho de 2012
Exmo. e Revmo. Dom Francisco Biasin (Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso daConferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Rev. Pe. Peter Hughes (Secretário Executivo do Departamento de Justiça e Solidariedade do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM)
Revmo. Dom Francisco de Assis da Silva (Primeiro Vice-presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC)
Rev. Dr. Walter Altmann (Moderador do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas (CMI)
Rev. Nilton Giese (Secretário Geral do Conselho Latino-americano de Igrejas (CLAI)
Rabino Sergio Margulies (Representante da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ)
Sami Armed Isbelle (Diretor do Departamento Educacional e de Divulgação da Sociedade Beneficente Mulçumana do Rio de Janeiro (SBMRJ)
Ialorixá Laura Teixeira (Coordenadora Estadual do Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileiras - Rio de Janeiro (INTECAB)
Irmã Jayam Kirpalani (Direitora Européia da Universidade Espiritual Mundial Brahma Kumaris)
Elias Szczytnicki (
Secretário Geral e Diretor Regional de Religiões pela Paz América Latina e o Caribe)

quinta-feira, 28 de junho de 2012

13° Domingo do Tempo Comum


O que Deus deseja é que em tudo haja igualdade.
(Sb 1,13-15; 2,23-24; Sl 29/30; 2Cor 8,7-9.13-15; Mc 5,21-43)

É triste constatar, mas vamos nos acostumando com os atos, atitudes e estruturas contrárias ao Evangelho de Jesus Cristo. A cultura funciona de modo semelhante ao nosso corpo: se começamos ingerindo pequenas doses de veneno letal e formos aumentando levemente a medida, as células, tecidos e aparelhos vão se habituando e acabam não reagindo mais. Assim também acontece com a corrupção, a injustiça e a mentira: às custas de doses diárias, ininterruptas e crescentes deste veneno, os cristãos assimilamos esse material venenoso e mortífero como natural e não conseguimos mais esboçar reações contrárias. Até as Igrejas, uma vez institucionalizadas, são tentadas a obedecer mais à diplomacia e às exigências do status social que ao Evangelho, e acabam priorizando as pessoas e setores que em tudo já foram premiadas com ações preferenciais.
“Deus não fez a morte e não se alegra com a perdição dos vivos.”
É velho o hábito de debitar a Deus a conta da morte, tanto das pessoas queridas quanto das massas anônimas e mais ou menos distantes. Resistimos quase instintivamente a assumir nossas responsabilidades e a investigar as causas dos males, mas precisamos encontrar uma lógica nos acontecimentos que escapam ao nosso controle. E como nos ensinaram que Deus se reveste de poder e de conhecimento absolutos, ele acaba sendo responsabilizado.
Os sábios hebreus já procuraram enfrentar a questão da causa e do sentido da morte, tanto da morte física e inevitável no fim dos anos como da morte imposta e da morte social (marginalização e exclusão). “Deus não fez a morte e não se alegra com a perdição dos vivos”, dis o livro da Sabedoria. Deus cria o mundo por amor e inscreve este dinamismo no segredo das coisas. Por isso, “não é o mundo dos mortos que reina sobre a terra”, e o Deus vivo é o horizonte maior no qual a vida e a morte adquirem sentido.
“Veio então um dos chefes das sinagogas, chamado Jairo...”
O mundo no qual Jesus se movimenta e atua não é a metafísica abstrata mas a sociedade concreta. O que está em questão no evangelho proclamado hoje não é a morte enquanto tal, mas a morte social, que denominamos marginalização. Jesus não se interessa prioritariamente por conceitos ou leis. Ele está implicado com a vida e a dignidade concretas das pessoas. Sua preocupação não é com coisas assim ditas espirituais mas com aquilo que melhora ou dificulta o bem viver do seu povo.
As ações e palavras de Jesus estão referidas e um contexto sociocultural bem específico. Lucas coloca à nossa frente duas categorias de pessoas. Na primeira categoria entra Jairo, que tem nome, é chefe de uma sinagoga e chefe de uma família. Entra também sua filha que, estando doente, pode contar com a assistência própria da sua classe social. Jairo trata Jesus como alguém do seu nível, fazendo-lhe a reverência devida às pessoas consideradas dignas. Mas parece que a polidez esconde a falta de fé.
Na segunda categoria está uma mulher sem nome, um ser anônimo e perdido no meio da multidão, encurvada sob o peso de uma hemorragia que a leva às mãos de exploradores duplicam sua condição de marginalizada: mulher, impura e pobre. Ela não tem nome, nem família, nem honra. Vive sob o manto da vergonha, esta sensibilidade pessoal diante do que os outros pensam de sua honra. Ninguém intercede em seu favor. E ela sabe que não pode se aproximar de Jesus como as pessoas honradas.
“Quem me tocou?”
Definitivamente, Jesus não respeita os costumes do código de honra que rege as relações sociais de Israel. Já sabemos que ele faz questão de subverter a ordem quando se trata de socorrer as pessoas em situação de vulnerabilidade. Neste caso, Jesus deixa em segundo plano o atendimento ao pedido de Jairo, uma pessoa com status e reconhecimento social, a se entretém com uma pessoa triplamente proscrita. E não quer nem saber se com isso coloca em risco a vida da filha de Jairo.
Diversamente de Jairo que, respeitosamente se inclina aos pés de Jesus e lhe solicita sua intervenção, a mulher anônima e sem classe, aproxima-se por trás e toca-lhe o manto, marcando-o com a impureza que lhe era atribuída. Este gesto desesperado de uma pessoa habituada ao sofrimento não passa incógnito a Jesus. Ele interrompe tudo para falar com esta pessoa sem nome e desclassificada. “Quem tocou na minha roupa?... Ele olhava ao redor para ver quem o havia tocado.”
“Filha, a tua fé te salvou. Vai em paz e fica livre da tua doença.”
Jesus não obedece as leis do código de honra e inverte as coisas. Maria já havia proclamado que Deus rebaixa os orgulhosos e eleva os humildes. E Jesus repetirá que, no código do coração de Deus, os últimos são os primeiros e os primeiros são os últimos. A mulher, vítima de uma sociedade patriarcal, de um sistema de pureza e de um sistema médico explorador, mesmo sem pedir nada, tem prioridade sobre o pedido de uma reconhecida autoridade.
Só depois de curada, e sabendo que era procurada, a mulher cai aos pés de Jesus, conta o drama que vivera e que chegava ao fim, expõe a vergonha que carregava por ser vista e tratada como impura. O medo e a vergonha desaparecem e dão lugar à alegria quando ela escuta da boca de Jesus: “Filha, tua fé te salvou. Vai em paz e fica livre da tua doença.” Ela é a verdadeira e amada filha de Deus. Seu gesto não foi demonstração de desespero mas de uma fé autêntica e fecunda, fé que deve ser imitada.
Com isso, Jesus inverte radicalmente o status da mulher empobrecida e duplamente marginalizada. Levantando-se do mais baixo degrau da escala da honra, ela interrompe uma missão em favor da filha de alguém que está no mais alto degrau desta escala. Proclamando-a “filha”, Jesus a coloca no centro e a integra no grupo das pessoas realmente honradas diante de Deus. Além de restaurar sua saúde,a ação e a palavra de Jesus lhe dão um status superior ao dos discípulos, pois eles não têm fé (cf. Mc 4,40).
“Não tenhas medo, somente crê.”
Depois desta cena, que não é um parênteses e sim um destaque, Jesus segue seu caminho em direção à casa de Jairo. Ele se mostra indiferente à notícia de que a menina morrera, e segue como se não tivesse perdido nada. Mais ainda: pede que Jairo siga o exemplo daquela mulher anônima e considerada socialmente inferior. “Não tenhas medo, somente crê.” Que inversão! A mulher impura não deve ser evitada mas imitada. Os pobres são nossos mestres!
O convite para que Pedro, Tiago e João o acompanhem sublinha a importância da ação. Chegando à casa, Jesus observa a agitação e as lamentações, conformes ao que o costume ditava para estes momentos, mas não vê demonstração de fé. Tanto que os presentes deixam de lamentar e passam a zombar de Jesus. Enquanto a mulher sofrera por 12 anos a exploração e a marginalização, a menina usufruíra 12 anos do privilégio de ser filha do chefe da Sinagoga. Mas estava à beira da morte.
À menina, Jesus ordena que se levante, o que acontece prontamente. O que estava à beira do colapso e necessitava ser regenerado era exatamente a ordem social representada por Jairo. Com esta ação Jesus mostra que se esta ordem social deseja ser salva e viver precisa abrir-se à fé e aderir ao dinamismo do Reino de Deus, que é uma nova ordem, um outro mundo, no qual todas as pessoas gozam do mesmo status, de igual dignidade. Somente isso liberta os marginalizados e poupa os ‘honrados’.
“O que se deseja é que haja igualdade.”
A exortação de Paulo está ligada a uma questão diferente: a partilha econômica solidária entre as comunidades cristãs. Mas o argumento ao qual ele recorre serve também para a questão que Jesus enfrenta no texto que acabamos de refletir. Tanto a partilha de bens com quem necessita como a prioridade aos últimos da escala social, são questões ligadas à sinceridade do amor e ao reconhecimento e restauração da igualdade fundamental de todas as pessoas humanas.
Jesus de Nazaré, profeta do Reino de Deus, amigo e próximo das pessoas menosprezadas e excluídas: tua delicadeza para com a mulher anônima e mestra na fé nos comove e nos interpela, e a cura da filha de Jairo nos convoca a salvar nossas instituições subordinando-as à lógica do reino de Deus. Como comunidade de discípulos e discípulas te pedimos: ajuda-nos a tirar a máscara de amor e de fé com que tua Igreja encobre a discriminação das mulheres e o distanciamento das pessoas e grupos marginalizados. Que nossa missão seja fazer com que os últimos sejam os primeiros. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Festa de São Pedro e São Paulo


Eles permaneceram firmes como se vissem o invisível.
(At 12,1-11; Sl 33/34; 2Tm 4,6-8.17-18; Mt 16,13-19)

Terminamos este mês cheio de memórias de santos populares festejando São Pedro e São Paulo. Como sempre, é preciso respeitar e partir da piedade popular, mas também escutar o testemunho das Escrituras e chegar à vida real, com suas possibilidades e desafios. Se é verdade que Pedro é o primeiro líder dos cristãos e Paulo é o apóstolo dos povos, não podemos esquecer que ambos, cada um a seu modo e a seu tempo, foram discípulos de Jesus e passaram por sucessivas crises e dificuldades, provaram a prisão e foram martirizados. Eles fazem parte daquela ‘nuvem de testemunhas’ da qual fala a Carta aos Hebreus (12,1): viveram e morreram firmes na fé, como se vissem o invisível (cf. Hb 11,13.27). Escutemos e acolhamos com reverência o testemunho destes nossos irmãos maiores, colunas que sustentam e vidas que interpelam as comunidades cristãs de hoje.
 “Enquanto Pedro era mantido na prisão...”
O primeiro Papa foi presidiário! Esqueçamos por um instante a cena contada por Mateus e centremos nossa atenção no acontecido narrado nos Antos dos Apóstolos. Herodes maltratava os cristãos e havia mandado matar Tiago. Percebendo que isso agrada aos judeus, aproveita para aumentar sua baixa popularidade e manda prender Pedro, providencia uma guarda competente e de confiança e permite-se festejar tranquila e cinicamente a páscoa judaica.
Para que servem a Pedro as chaves prometidas por Jesus Cristo se não ajudam a soltar as algemas que o prendem ou abrir a porta da prisão, mantida sob rigorosa vigilância? Pedro está imerso na penumbra desta e outras perguntas quando uma luz ilumin sua cela, uma mão toca seu ombro e uma voz ordena que se levante depressa. As algemas que o prendem caem no chão, os guardas que vigiam não vêem nada e a porta que separa a cela da cidade se abrem sozinhas...
Em vez de centrar nossa atenção nos aspectos miraculosos da cena, fixemo-nos na condição de vida de Pedro e dos demais irmãos na fé. Acusados publicamente, apedrejados nas praças, trancafiados nas prisões, degolados a fio de espada... Mas nada disso cala a voz ou detém sua ação. Que diferença de uma Igreja que faz o sucessor de Pedro desfilar no papa-móvel sob aclamações como ‘Cristo venceu, Cristo reina, Cristo impera’ e procura protegê-lo hermeticamente das críticas da imprensa... Às vezes penso que o sucessor de Pedro é prisioneiro da própria Cúria e suas tradições...
“Chegou o tempo da minha partida...”
Paulo, por sua vez, foi denunciado, perseguido, encarcerado e finalmente executado. Depois de ter sido um fariseu zeloso e violento e ter acumulado muitos méritos e honras por causa disso, Paulo faz a experiência de ser conquistado por Jesus Cristo e, diante do bem supremo desta acolhida gratuita e imerecida, considera tudo o mais como lixo e déficit na contabilidade da vida (cf. Fil 3,1-14) e se lança incansavelmente no anúncio desta boa notícia, especialmente às pessoas de origem pagã.
O zelo e o ardor que Paulo demonstrara pelo judaísmo se transforma em zelo pela fé em Jesus Cristo. Mas isso provoca desconfiança por parte dos próprios cristãos e ódio por parte dos seus irmãos judeus. Para resumir esta história que conhecemos bem, depois de sucessivos enfrentamentos e perseguições, Paulo também acaba na prisão. Sendo cidadão romano, exige o direito de ser julgado decentemente em Roma, e para lá é conduzido.
Mas ninguém conseguiu colocar sob algemas aquilo que o fazia livre: a Boa Notícia de Jesus Cristo. “Por ele, eu tenho sofrido até ser acorrentado como um malfeitor. Mas a Palavra de Deus não está acorrentada” (2Tm 2,9). Paulo sabia muito bem em quem colocara sua confiança, não se envergonhava de compartilhar a sorte dos encarcerados e pedia que ninguém se envergonhasse dele ou de testemunhar a favor de Jesus Cristo, que também foi preso e condenado (cf. 2Tm 1,8).
“A Igreja orava continuamente a Deus por ele.”
Pedro e Paulo são filhos, irmãos e pais da fé numa Igreja que confirmou com a vida aquilo que anunciou com as palavras. De um lado, Pedro, Paulo e os demais cristãos detidos mantém contato com as suas comunidades de base, inclusive através de cartas às suas principais lideranças; de outro, as comunidades não ficam indiferentes, apesar da crise de fé provocada por uma perseguição feita em nome de Deus e da religião e dos riscos políticos e sociais que que estas relações implicam.
O vínculo entre a comunidade dos discípulos e discípulas e seus líderes presos se mostra de um modo singelo e comovente no relato dos Atos dos Apóstolos. “Enquanto Pedro era mantido na prisão, a Igreja orava continuamente por ele.” Um pouco antes, quando Pedro e João haviam sido liberados da prisão, a comunidade pedia em oração: “Agora, Senhor, olha as ameaças que fazem, e concede que teus servos anunciem corajosamente a tua Palavra” (At 4,29). A Igreja pede coragem, e não tranquilidade.
Pedro faz a profunda experiência da presença fiel de Deus na prisão. Saindo do cárcere, vai à casa da mãe de João Marcos, onde a comunidade está reunida em oração. Quando Rosa, a mãe de Marcos, abre a porta e vê que é Pedro, é tomada de tamanha alegria que o deixa plantado do lado de fora e vai anunciar à comunidade reunida, a qual pensa que Rosa está doida. Aberta a porta, Pedro entra e conta entusiasmado o que havia acontecido, e depois recolhe-se num lugar escondido.
“Tu és o Messias, o Cristo, o Filho do Deus vivo!”
O que sustenta as Igrejas e comunidades cristãs é o encontro com Deus em Jesus Cristo. O que o evangelho de hoje nos propõe é substancialmente isso. Num lugar marcado pela influência e pelo domínio estrangeiro (a cidade se chamava Cesaréia e depois Neronias!!!), Jesus faz uma pergunta, que é central no terceiro bloco narrativo de Mateus (11,2-16,20). E esta é a primeira vez que um discípulo o reconhece e proclama Messias, embora um pouco antes, depois da tempestade acalmada, todos os discípulos houvessem proclamado, de joelhos: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus” (Mt 14,33).
Não esqueçamos que, mesmo sem rejeitar a confissão de Pedro e dos demais discípulos, Jesus chama a si mesmo Filho do Homem, e não  Filho de Deus (cf. Mt 11,19; 12,8; 12,32), acentuando assim seus vínculos com a humanidade. Só quem está aberto e sintonizado com a lógica de Deus pode reconhecer a presença de Deus nas ações e palavras deste filho da humanidade e irmão de todos os seres humanos. Esta é a base sólida sobre a qual Jesus Cristo constrói a comunidade cristã, literalmente, a assembléia dos chamados. “Não foi um ser humano que te revelou isso...”
Da experiência de fé e da adesão a Jesus Cristo brota a missão. As lideranças e comunidades que conseguem dar este passo recebem as chaves do Reino de Deus, ou seja: a missão de continuar a tarefa libertadora de Jesus. A imagem das chaves e a metáfora ligar-desligar estão relacionadas a esta missão de construir o Reino de Deus na perspectiva das Escrituras e do caminho trilhado e proposto por Jesus Cristo, enfrentando conflitos mas jamais sucumbindo. Quem recebe as chaves da porta do Reino de Deus não teme as portas do inferno, e até a prisão pode ser uma oportunidade de evangelização.
“O Senhor veio em meu auxílio e me deu forças.”
Crer, confiar, partilhar e anunciar: estes são os verbos essenciais da gramática dos cristãos. Só chega à meta estabelecida quem conjuga estes verbos em todos os tempos, modos e pessoas e percorre estas etapas. Escrevendo a Timóteo desde a cela da prisão, Paulo faz um balanço da sua vida e suas palavras são eloquentes e comoventes: “Chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé.” Um pouco antes, havia escrito: “Estou suportando também os sofrimentos presentes, mas não me envergonho. Sei em quem acreditei” (2Tm 1,12).
Os santos e santas são filhos/as da Igreja, os mais belos entre seus frutos: profetas, mártires, confessores/as, construtores/as de uma terra renovada na qual a Justiça faz morada (cf. 2Pd 3,13). Mas são também pais e mães da Igreja, gente que aceita gerar no sofrimento e na alegria uma assembléia de irmãos e irmãs, de homens e mulheres convocados/as e convocadores/as, amigos/as entre si e solidários/as com todas as vítimas e sofredores, em permanente ritmo de missão.
A glória dos santos e santas não vem dos milagres mais ou menos forçados ou das honras e aplausos encomendados, mas do Deus vivo, e por isso os humildes que os vêm podem se alegrar. Quem reconhece o Filho de Deus encarnado na humanidade não está livre das dificuldades, mas sabe que “o anjo de Deus acampa em volta dos que o temem”, como diz o Salmo. Por isso, feliz a pessoa que nele crê e espera: viverá firme como quem vê o invisível.
Pe. Itacir Brassiani msf

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Kalimantan: impressões, emoções e reflexões (8)

Glória a Allah e ao seu profeta Maomé!



Allah, o nome sagrado dos mussulmanos

Chegamos em Smarinda no 13 de março. Esta cidade está localizada na costa oriental da ilha de Kalimantan, e é a capital da província omônima. É uma das maiores cidades da ilha, e sua população está em torno de 600.000 habitantes. Desenvolveu-se em torno do importante porto fluvial, sustentada historicamente pela extração e exportação de madeira e, hoje, pela exportação de carão mineral.
A presença dos Missionários da Sagrada Família nesta cidade remonata à primeira metade do século XX, sustentada pelos missionários holandeses e alemães, que ousaram enfrentar o desafio de anunciar Jesus Cristo e implantar a Igreja num território controlado pelo islamismo. Quem lê a história sabe que o islamismo também é relativamente recente na Indonésia. A religião do profeta Maomé chegou no arquipélago que compõe este país no século XVII, um pouco depois da chegada do cristianismo no continente hoje conhecido como latino-americano. Até então, neste conjunto de 12.000 ilhas predominavam o induísmo, o budismo e as religiões tribais, ditas animistas.
Muitas vezes me perguntei como foi possível transformar essa gente – que não pertence etnicamente ao povo árabe e que já tinha sua religião – em um povo quase totalmente mussulmano, numericamente a maior população mussulmana do planeta. Os principais agentes desta transformação foram os comerciantes árabes. Quando os sultões locais estavam em luta entre si e buscavam apoio estratégico nos comerciantes de procedência árabe, estes o asseguravam à condição de que estes líderes locais se convertessem ao islamismo.
Isso pode nos parecer estranho, mas não foram muito diferentes os caminhos trilhados pelo cristianismo nas Américas... A diferença é que as metrópoles ibéricas impuseram a adesão ao cristianismo casada com a dominação colonial, enquanto que aqui a dominação foi econômica, e nunca chegou a ser política. Os próprios colonizadores holandeses, de origem cristã reformada, mantiveram durante três séculos o domínio econômico e político sobre a Indonésia e, apesar do fanatismo que caracterizava seu calvinismo, não moveram um dedo para desislamizar ou cristianizar este povo.
Por isso,o visitante que hoje circula pela Indonésia, exceção feita a algumas ilhas (como é o caso de Flores), vê por todo lado mesquitas e mais mesquitas. Umas pequenas e simples, outras imponentes e luxuosas, as mesquitas dominam de forma absoluta a paisagem, tanto no espaço urbano como na zona rural. Não é raro encontrar mais de uma na mesma quadra, ou a menos de 100 mestros uma da outra (como ocorre com o acúmulo de templos católicos em Roma...).
O monumental centro islamico de Samarinda
Esta onipresença quase invasiva da fé islâmica se torna mais palpável ainda no hábito que impõe às mulheres e nos infinitos alto-falantes que, seis vezes por dia, das 4:00 da manhã às 10:00 da noite, convidam e guiam os fiéis na oração, indiferentes à perturbação dos estrangeiros que, como nós, reinvindicam respeito ao direito de trabalhar e descansar sem serem perturbados. Do início ao fim da viagem, meu colega não cansava de protestar contra isso, assim como contra o uso de véu imposto às mulheres (que também não podem entrar nas mesquitas, território exclusivo dos homens...)
Assim, uma das primeiras coisas que chamam a atenção do visitante em Samarinda, junto com o movimentado porto e a congestionada ponte que dá acesso à cidade,  é o imenso e monumental centro islâmico, uma mesquita como jamais havia visto. Perto dela, nossas grandes igrejas parecem minúsculos oratórios. Refiro-me à própria catedral e à paróquia São Lucas, a primeira residência MSF que visitamos em Samarinda, cuja igreja matriz tem lugar para 800 pessoas. Lá residem e trabalham três coirmãos: um vem de Java, outro de Flores, e o terceiro é um juniorista de Madagascar, que inicia aqui seu estágio pastoral de dois anos. Juntos, animam a paróquia, que conta com aproximadamente 3.000 fiéis, distribuídos em 16 comunidades, além da pastoral da juventude em âmbito diocesano.
Igreja paroquial S. Lucas, Samarinda
O pároco e superior da comunidade local de Samarinda é o Pe. Felix Sumarjono, 43 anos, natural de Jogyakarta, Java, que escolheu a Província de Kalimantan por convicção missionária. O vigário paroquial e responsável diocesano pela pastoral da juventude é o Pe. Yohanes Kopong Tuan, 34 anos, originário de Flores. No final dos anos 90, como jovem juniorista, Pe. Kopong foi um dos primeiros indonesianos a fazer seu estágio pastoral em Madagascar, do qual guarda boas recordações.
Esta é a razão pela qual o Fr. Jean Christian Razafiarison Rija, malgache de 31 anos, foi acolhido por ele em Samarianda,  e recebeu dele as primeiras lições de língua e de cultura indonesiana. Com seu colega e conterrâneo Fr. David, eles permanecerão em Kalimantan durante dois anos, numa interessante e desafiadora iniciativa de integração interprovincial e intercultural que vem de alguns anos e foi retomada neste ano. Se isso é exigente para uma pessoa adulta num mesmo país, imagina para jovens ainda na etapa inicial de formação e num país tão diferente...
Em Samarinda temos também um dos cinco bispos MSF da Indonésia, dois dos quais já eméritos. Refiro-me a Dom Florentinus Sului, à frente da Arquidiocese de Samarinda desde 1993. Ele foi ordenado bispo aos 45 anos de idade e 20 de presbítero. Visitamos sua residência e fiquei pasmo: é um verdadeiro e enorme palácio como jamais vi em minha vida, menos ainda em se tratando de bispos. Só o refeitório e sala anexa (para aumentá-lo quando aumenta o número de comensais) me pareceram maiores que o bispado de Santo Angelo, de Passo Fundo ou de Ipameri... E nem quero falar dos hall’s, das salas de trabalho e recepção do bispo, da capela interna para mais de 100 pessoas, das inúmeras casas anexas, da equipe de serviço...
Palacio espiscopal: a vontade é virar as costas e nem olhar...
Não consigo aceitar coisas como essa, por mais que tentem me convencer, como tentou fazer meu colega, de que se trata de demonstrar a seriedade e a solidez da da Igreja católica numa linguagem que o povo daqui aprecia. E onde fica o Evangelho, meu Deus?! O que eu vi simplesmente grita aos ouvidos de quem quiser ouvir: o bispo é um príncipe, e ponto final. E eu que pensava que nestas bandas o cristianismo, que chegou há pouco mais de 100 anos, pudesse mostrar um rosto diferente...
Claro que pessoalmente o bispo se nos mostrou muito acolhedor e fraterno. Chegou a nos presentear um colar típico da sua etnia (dayak), sinal de acolhida na intimidade do seu povo. Ele é uma pessoinha simpática, de pouco mais de 1,50 m de altura, que veste as coloridas roupas do seu povo. Dirige uma diocese que conta com aproximadamente 108.000 católicos, um apreciável percentual (para os padrões indonesianos) de 10% da população da região. São 25 paróquias (das quais 6 estão sob os cuidados dos MSF), cuja animação pastoral é feita por 38 padres, 14 dos quais são diocesanos.
Segundo Dom Florentinus, os principais desafios que a diocese enfrenta são: a carência numérica de padres e religiosos/as; a falta de agentes especializados, inclusive para a administração; a formação de catequistas e professores de ensino religioso (estes últimos, para atuar nas escolas públicas). Para enfrentar este último desafio, a diocese acaba de inaugurar um centro de formação de nível superior, pois é este o nível exigido pelo estado.
Casa grande, bispo pequeno...
Com o bispo moram três padres: um diocesano, seu secretário pessoal; um verbita, ecônomo da diocese; um MSF, o Pe. Gabriel Bong Njungun, 74 anos, que atuou muitos anos como ecônomo diocesano, sofreu um derrame, mas continua convivendo com o grupo. Aqui está um outro elemento que me entriga: pelo pouco que vi, além dos palácios nos quais residem, os bispos daqui têm ao seu redor um grupo de padres totalmente liberados para alguns trabalhos: ecônomos, secretários, motoristas... Aqui ninguém conhece a figura do coordenador pastoral, nem a prática da visita pastoral. Ouvi estarrecido que alguns bispos (inclusive nossos) às vezes celebram a missa dominical nas sua capelas privadas... E isso tudo em meio a uma população majoritariamente pobre e mussulmana e de uma Igreja que carece de padres...

sábado, 23 de junho de 2012

Miriam de Nazaré (7)

Esta é a segunda parte de um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor. Este fragmento faz parte do segundo capítulo do ensaio, que trata das questões crucias da mariologia.


2)      Questões cruciais de mariologia bíblica (3)

O grupo de trabalho católico-protestante que organizou a obra coletiva Maria no Novo Testamento concluiu: “O grupo de trabalho concordou que a questão da historicidade da concepção virginal não podia ser estabelecida pela exegese histórico- crítica” (Apud MEIER, loc. cit., p. 242, nota 75)[i].

Como se configura, então, a teologização da concepção virginal de Jesus? Leonardo Boff, embora aceite a historicidade dos relatos de Mt 1,18-25 e de Lc 1,26-38, transcreve, com base em Hans Küng[ii], duas formulações do “teologúmeno” da concepção virginal. A primeira representa Miriam e José como um casal piedoso e puro, aguardando o Messias e suplicando a Javé que se digne escolher um de sua prole. Javé atende a súplica. Jesus, gerado pelo amor de Miriam e José, foi assumido hipostaticamente pelo Filho eterno para ser o Redentor. Miriam concebeu seu filho virginalmente, não num sentido biológico, e sim, num sentido pessoal e moral de doação plena e de amor puro a Deus, onde o amor para com José não concorria com o amor a Deus, mas fez com que este, num amor ainda mais puro e eterno, aceitasse o filho de Maria e José para ser o sacramento de seu Filho unigênito na história. Deus não excogitou uma maneira sobrenatural de fazer conceber Jesus (sem o sêmen humano e sem romper o hímen), mas dentro do matrimônio humano, veículo puro para introduzir Deus na carne humana.

A segunda formulação da doutrina da virgindade de Miriam centraliza a atenção sobre a cristologia e não a mariologia. A conceição virginal de Jesus, num sentido biológico, constitui um modelo literário para expressar a novo começo da humanidade inaugurado por Jesus. É o novo Adão, primícias do novo céu e da nova terra. É umna nova criação, obra não da história humana, mas de iniciativa exclusiva de Deus. Para expressar esta verdade teológica, utilizou-se como modelo de compreensão e de expressão a conceição virginal de Jesus. Começou-se, assim, a falar da virgindade de Miriam de Nazaré, primeiramente, antes do parto, mais tarde, no parto e, por fim, depois do parto[iii].

A dimensão teológica da “virgindade grávida” de Miriam é enfatizada por Gebara e Bingemer numa síntese feliz:

“Mais que o dado biológico, portanto, o relato bíblico nos apresenta um caminho teológico que conduz, através do testemunho da comunidade primitiva, à fé no Deus Salvador. A virgindade de Maria sublinha o direito que tem Deus de comunicar-se com seu povo não só por meio da palavra, mas também por gestos tangíveis e concretos que permitam ao povo compreender e ‘apalpar’ a salvação que lhe é oferecida” (GEBARA e BINGEMER, 1988, p. 123).

Confirma-se, assim, nosso intento de realçar na feminilidade de Miriam de Nazaré não apenas sua maternidade e esponsalidade, mas também sua virgindade. Mãe, esposa e virgem simbolizam três traços inseparáveis de uma “mulher” que concebeu e deu à luz um filho, chamado Jesus, o Messias anunciado no Antigo Testamento, que realizou, pela sua paixão, morte e ressurreição, a redenção da humanidade e do cosmo. Como não reconhecer na mãe de Jesus o símbolo e o ícone do mistério divino do Emanuel, do Deus-conosco?

A relação entre maternidade, esponsalidade e virgindade no contexto da feminilidade de Miriam de Nazaré, vale dizer, para o seu ser-“mulher”, precisa receber novas abordagens, também teológicas, enraizadas numa antropologia feminina menos androcêntrica e celibatária, como tem sido ao longo da formação da mariologia[iv]. Cabe enfatizar mais na mariologia a maturidade e dignidade humana de Miriam de Nazaré, dignidade que se enraíza na sua natureza feminina, em seu ser “mulher”, a mãe de Jesus, a esposa pura do carpinteiro José e o verdadeiro ícone da comunidade dos discípulos “serventes” de seu filho.

Uma das reações mais vigorosas contra as concepções estreitas e conservadoras da mariologia tradicional, que denigram o verdadeiro perfil humano de Miriam de Nazaré, encontramos na já citada teóloga Uta Ranke-Heinemann. Colocando-se na ótica de uma defesa feminista da dignidade da mãe de Jesus, escreveu:

“É um destino sombrio para uma mulher ter de viver num colete dogmático feito por homens. Maria encontrou-se nessa situação de forma sem paralelo. Não lhe foi permitido partilhar de nada que tivesse a ver com a sexualidade feminina, nada ligado ao processo natural de concepção e de parto de um filho. Não lhe permitiram conceber seu filho através do amor de um homem, teve de ser o Espírito Santo, e não pôde haver prazer. Não lhe foi permitido ter o filho de forma natural, porque teve de continuar intacta durante o parto. Por fim não lhe foi permitido ter outros filhos depois, já que isso significaria violação e vergonha. Assim, ela foi transformada numa espécie de criatura assexuada, à sombra de uma esposa e mãe, reduzida a sua função na história da salvação” (RANKE-HEINEMANN, op. cit., p. 365).

O sentido simbólico-teológico e arquetípico-figurado da virgindade é, sem dúvida, mais relevante do que as elucubrações e torneios moralistas em torno da historicidade da virgindade biológica de Miriam de Nazaré, pois este sentido expressa a orientação incondicionada da pessoa humana para o Absoluto, sua imediaticidade para Deus, na receptividade radical e na pronúncia do “sim” à irrupção do Reino de Deus na terra. Nesse “sim” da virgindade maternal e da maternidade virginal de Miriam se efetiva a colaboração humana para a salvação, colaboração que teve em Miriam o seu ícone perfeito.

“A acolhida que a Virgem revela em sua personalidade de mulher, como ícone concreto do feminino, que toda mulher pode realizar em si mesma e que todo homem é chamado a respeitar e receber como elemento de profunda reciprocidade de sua existência, é esse ser-em-profundidade, esse espaço isento de toda exterioridade e aparência, esse seio virginal, capaz de hospedar dentro de si o todo do mistério” (FORTE, op. cit., p. 181).

No simbolismo da virgindade de Miriam de Nazaré resplandece o ícone da participação das mulheres na salvação do mundo, ao defender o primado da vida sobre a teoria, do concreto sobre o abstrato, do ser sobre o ter e o fazer e da verdade sobre a aparência. A jovem “mulher” da Galiléia, em sua acolhida fecunda do projeto de Deus para a humanidade e o cosmo, acolhida simbolizada em seu ser-virgem, exerceu o seu ministério da fecundidade e o mistério do feminino, na gratuidade oblativa do seu “sim” generoso e materno.
Bertilo Brod

[i] Entre os inúmeros exegetas e teólogos que defendem a não-historicidade da concepção virginal de Jesus, merecem destaque Otto Knoch, Gerhard Lohfink, Rudolph Schnackenburg, John McKenzie, Gerhard C. Müller (cf. MEIER, op. cit., p. 243-4), Robert Brown, Hans Küng, X. Pikasa. R. Scheifler (cf. FORTE, op. cit., p. 165, notas 15 e 16), sem falar da renomada teóloga católica alemã Uta Ranke- HEINEMANN, em sua obra Eunucos pelo Reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja católica. 2. ed. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1996.
[ii] Cf. KÜNG, Hans. Ser cristão. Rio de Janeiro, 1976, p. 391-402).
[iii] Cf. BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 146-147.
[iv] A doutrina teológica tradicional da “virgindade no parto”, por exemplo, afirma que o hímen de Miriam permaneceu intacto, que o parto foi indolor, que não houve secundinas ou páreas e que Jesus foi concebido sem prazer sexual. A própria encíclica Redemptoris Mater, de João Paulo II, esposa, de certa forma, esta visão teológica tradicional, ao enfatizar que Miriam preservou “intactasua virgindade. O texto apócrifo do Proto-evangelho de Tiago, da metade do século II d.C., parece ter influenciado não poucos teólogos posteriores. Numa linguagem de verdadeira pornografia teológica se descreve ali a atitude de Salomé que somente acreditaria na virgindade no parto se pudese submeter Miriam a uma inspeção e “colocar o dedo dentro”...