quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Discutindo o conceito de gênero


A Igreja e o conceito de ‘gênero’

Recusar a tomar conhecimento de certas obras ou de trocar argumentos com certos parceiros sem mostrar um a priori benevolente e propenso ao debate não é a melhor maneira de progredir rumo à verdade. A opinião é de Anne-Marie de la Haye, secretária do Comité de la Jupe, grupo de católicos e católicas leigos franceses, em artigo publicado no sítio da entidade, 27-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto, publicada em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517325

Somos cristãs e cristãos, vinculados à mensagem do evangelho, e vivemos fielmente esse vínculo no seio da Igreja Católica. A nossa experiência profissional, os nossos engajamentos associativos e as nossas vidas de homens e de mulheres nos dão a competência para analisar as evoluções das relações entre os homens e as mulheres nas sociedades contemporâneas, e para discernir os sinais dos tempos.

Tomamos conhecimento das recomendações do nosso Santo Padre, o Papa Bento XVI, dirigidas ao Pontifício Conselho Cor Unum, nas quais ele expressa a sua oposição contra o que ele chama de "teoria do gênero", colocando-a no mesmo plano das "ideologias que exaltam o culto da nação, da raça, da classe social". Consideramos essa condenação infundada e difamatória. A recusa que a acompanha de colaborar com toda instituição suscetível a aderir a esse tipo de pensamento é, a nosso ver, um erro grave, tanto do ponto de vista do caminho intelectual, quanto da escolha das ações tomadas a serviço do evangelho. Afirmamos aqui, com a máxima solenidade, que não podemos subscrevê-la.

Em primeiro lugar, ela é esterilizante. Com efeito, no domínio do pensamento, recusar a tomar conhecimento de certas obras ou de trocar argumentos com certos parceiros sem mostrar um a priori benevolente e propenso ao debate não é a melhor maneira de progredir rumo à verdade. O que teria acontecido se Tomás de Aquino tivesse se abstido de ler Aristóteles, com o pretexto de que ele não conhecia o verdadeiro Deus e que as suas obras lhe haviam sido transmitidas por tradutores muçulmanos?

Além disso, in loco, saber se se deve ou não colaborar com atores animados por ideias diferentes das nossas é uma decisão que só pode ser tomada naquele lugar e naquele determinado momento, em função das forças políticas e da urgência da situação. O que teria acontecido, a propósito da luta contra o nazismo e o fascismo, se os resistentes cristãos tivessem se recusado a lutar ao lado dos comunistas, ateus e solidários de um regime criminoso?

Vamos agora ao fundo da questão: deixemos de permitir que se diga que a noção de gênero é uma máquina de guerra contra a nossa concepção de humanidade. É falso. Ela é o resultado de uma luta social, isto é, a luta pela igualdade entre homens e mulheres, que se desenvolveu há cerca de um século, inicialmente nos países desenvolvidos (Estados Unidos Europa), e da qual os países em desenvolvimento estão agora começando a sentir os frutos. 

Essa luta social estimulou a reflexão de pesquisadores em inúmeras disciplinas das ciências humanas; essas pesquisas ainda não terminaram e não constituem, de fato, uma "teoria" única, mas sim um campo diversificado e sempre em movimento, que não deveria ser reduzido algumas de suas expressões mais radicais.

O verdadeiro problema, portanto, não é o que se pensa da noção de gênero, mas sim o que se pensa da igualdade homem/mulher. E, de fato, a luta pelos direitos das mulheres coloca novamente em discussão a concepção tradicional, patriarcal, não igualitária, dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres na humanidade. Nas sociedades em desenvolvimento, em particular, a situação das mulheres ainda é tragicamente não igualitária. O acesso das mulheres à educação, à saúde, à autonomia, ao controle da sua fertilidade se depara com fortes resistências das sociedades tradicionais. 

Pior ainda: em alguns lugares, é constantemente ameaçado até mesmo o simples direito das mulheres à vida, à segurança e à integridade física. Não se pode, como faz o papa nos seus discursos sobre esse assunto, fingir que se saúda como autêntico progresso o acesso das mulheres à igualdade dos direitos e, ao mesmo tempo, continuar defendendo uma concepção de humanidade em que a diferença dos sexos implica uma diferença de natureza e de vocação entre os homens e as mulheres. Há nisso uma distorção intelectual insustentável.

Como negar, de fato, que as relações homem/mulher são objeto de aprendizagens influenciadas pelo contexto histórico e social? Fingir conhecer absolutamente, e com o desprezo de toda pesquisa realizada com as aquisições das ciências sociais, qual parte das relações homem/mulher deve fugir da análise sociológica e histórica manifesta um bloqueio do pensamento nada justificável. 

Por trás desse bloqueio do pensamento, suspeitamos que há uma incapacidade de tomar partido na luta pelos direitos das mulheres. Porém, essa luta não é, talvez, a dos oprimidos contra a sua opressão, e o papel natural dos cristãos talvez não é o de derrubar os poderosos de seus tronos?

Levantar-se a priori contra até mesmo o uso da noção de gênero é confundir a defesa do evangelho com a de um sistema social particular. A Igreja, de fato, cometeu esse erro há dois séculos e meio, confundindo defesa da fé e defesa das instituições monárquicas, e mais tarde dos privilégios da burguesia. Refazendo um erro semelhante, nós nos condenaríamos a uma marginalização ainda maior do que a que já nos encontramos. 


Como não temer que essa condenação apressada seja uma das correntes de uma cruzada antimodernista que visa a demonizar uma evolução contrária às posições adquiridas pela instituição?

É por isso que, com profunda preocupação, nós apelamos aos fiéis católicos, aos padres, aos religiosos e religiosas, aos diáconos, aos bispos, para que evitem à nossa Igreja esse impasse intelectual e para que saibam reconhecer, por trás de uma disputa sobre termos, o que verdadeiramente está em jogo na luta pelos direitos das mulheres e o lugar certo da sua Igreja nessa luta evangélica.


quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Fatos & Personagens: Hitler


A catapulta

Em 1933, no dia 30 de janeiro, Adolf Hitler foi nomeado primeiro-ministro da Alemanha. Poudo depois, celebrou um ato imenso, como correspondia ao novo dono e senhor da nação.

Modestamente, gritou: “Eu estou fundando a Era da Verdade! Desperta, Alemanha! Desperta!” E os rojões, os fogos de artifício, os cânticos e as ovações multiplicaram os ecos.

Cinco anos antes, o partido nazista havia conseguido menos de três por cento dos votos. O salto olímpico de Hitler ao topo foi tão espetacular como a simultânea queda, rumo aos abismos, dos salários, dos empregos, da moeda e de todo o resto.

A Alemanha, enlouquecida pelo desmoronamento geral, desatou a caça aos culpados: os judeus, os comunistas, os homossexuais, os ciganos, os débeis mentais e os que tinham a mania de pensar além da conta.


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 44)

4° Domingo do Tempo Comum


Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão!
(Jr 1,4-5.17-19; Sl 70/71; 1Cor 12,31-13,13; Lc 4,21-30)
O Papa João Paulo II ensinava que a profecia nasce da intimidade com a Palavra de Deus. A pessoa que acolhe e escuta a Palavra sente a voz de Deus queimar como brasa, e não consegue ficar indiferente frente às práticas de opressão e de discriminação. O próprio Jesus nos confirma isso: depois de ler e acolher a palavra do profeta Isaías, se propõe a cumpri-la fielmente, esquecendo-se dos próprios parentes e compatriotas e priorizando as pessoas mais pobres necessitadas. Rompendo com as expectativas do seu povo, Jesus tem que enfrentar sua oposição e perseguição. E este tem sido o caminho seguido por milhares de discípulos e discípulas no decurso da historia. Mas, “se calarem a voz dos profetas, as pedras calarão; se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas se abrirão...”
“Médico, cura-te a ti mesmo!”
Tive a oportunidade de pisar em terras bolivianas e sempre volto lá com satisfação. Na Bolívia, como em muitos países do mundo terceiro e pobre, a corrupção penetrou no próprio coração da cultura e se tornou um hábito, uma instituição. E não me parece justo dizer que ela tenha suas raízes no próprio povo. Sabemos que os povos nativos se orientavam por outros parâmetros, mas foi a convivência multisecular com a dominação espanhola que acabou incubando este e outros vícios.
Na Bolívia, mas não apenas lá, os cargos e funções públicas são vistas e exercidas em benefício das pessoas e grupos que as detêm. É uma espécie de investimento em vista de vantagens. As funções públicas são um negócio como tantos outros. O estado serve para socializar os custos e privatiza os benefícios. É como se o médico atuasse apenas para tratar sua própria saúde ou como se o sacerdote ministrasse apenas em vista da própria salvação.
Infelizmente este espírito está muito disseminado no mundo e tende a contaminar todas as instituições, inclusive a Igreja. Como não se preocupar com uma Igreja que se ocupa unicamente com seu próprio crescimento e suas rubricas, e se esquece que existe para que todos tenham vida? Como não se espantar com uma hierarquia focada na sua própria multiplicação e nos privilégios do seu estado, enquanto o povo de Deus morre de fome de pão e de Evangelho?
“Fiz de ti profeta das nações...”
A vocação profética é essencial na vida cristã. A Igreja é uma comunidade profética, sacerdotal e de serviço. Mas ninguém é instituído profeta, nem aprende este ofício num seminário ou numa escola de teologia. A profecia é dom do Espírito, dom que recebemos com temor e tremor. Como não é uma escolha que podemos fazer ou não fazer, a profecia se nos impõe e, em nome da fé, não podemos recusá-la sem comprometer a autenticidade da fé.
A profecia nasce e se desenvolve no ventre de uma comunidade que se coloca à escuta da Palavra de Deus. Quem não se fecha à voz de um Deus que fala e interpela, sente a Palavra queimar suas entranhas e não consegue viver indiferente frente à causa de Deus, que é a causa dos pobres, das vítimas, dos excluídos. Uma comunidade que ouve e medita a Palavra acaba avançando e amadurecendo no serviço à Boa Notícia de Deus.
Vemos isto na experiência de Jeremias. Ele tem a sensação de que a Palavra que o chama é anterior ao próprio nascimento. “Antes de formar-te no seio de tua mãe, eu já contava contigo. Antes de saíres do ventre, eu te consagrei e fiz de ti profeta para as nações.” É isto que percebemos também no próprio itinerário de Jesus: depois de ler e acolher a palavra do profeta Isaías na sinagoga de Nazaré, ele conecta irreversivelmente a sua vida com a causa dos oprimidos.
“Não tenhas medo deles...”
Às vezes escutamos falar da solidão que experimentam as pessoas que exercem o poder. Tanto na sociedade como na Igreja, parece que as pessoas estabelecidas em autoridade experimentam um certo distanciamento dos seus iguais. Talvez aqui se misturem sentimentos de superioridade quase divina por parte das autoridades e temores um pouco infantis e doentios por parte dos outros. Mas, se consideramos a determinação de tantos para conquistar e permanecer nas funções, parece que se trata de uma solidão que traz muitos benefícios colaterais...
O profeta experimenta uma solidão profunda e benfazeja. Na medida em que descobre que sua missão não é delimitada pelo sobrenome da família ou pelas cores da própria raça, e nem termina nas fronteiras de sua Igreja, a pessoa despertada e dinamizada pelo Espírito de Deus acaba frustrando as expectativas dos próprios compatriotas e familiares e experimentando um progressivo ostracismo. Infelizmente nem mesmo as Igrejas tratam muito diversamente seus membros ‘feridos’ de profecia.
Um olhar atento aos evangelhos nos leva a perceber como Jesus foi experimentando esta progressiva marginalização. Houve um momento em que sua fama se espalhava por toda a região e todos o elogiavam (Lc 4,14-15). Enquanto lia as escrituras, todos tinham os olhos fixos nele e testemunhavam a seu favor, maravilhados com as palavras cheias de graça que saíam da sua boca (Lc 4,22). Mas o entusiasmo logo se transformou em fúria e desejo de eliminá-lo (Lc 4,28-30).
“Mas nenhum deles foi curado senão Naamã, o sírio...”
A solidão do profeta nasce do próprio caráter da sua missão. Ele provoca afastamento dos familiares e compatriotas e atrai o ódio de alguns porque, em nome do Absoluto da Compaixão de Deus, questiona e deslegitima privilégios defendidos como direitos sagrados. O profeta sofre a marginalização e a perseguição na medida em que afirma a primazia dos últimos da escala social ou estabelece o direito daqueles que não têm direitos formalmente reconhecidos.
Com Jesus tudo ia bem enquanto ele falava de pobres e oprimidos em geral. Seus ouvintes acolhiam sua palavra pensando nos israelitas oprimidos pelos romanos. Mas quando ele convida a ir além, quando pede para que abram os olhos e o coração para os oprimidos e discriminados pelo próprio judaísmo, quando questiona a ideologia do privilégio dos judeus frente aos pagãos, a admiração de muda em rejeição. E a referência às práticas inclusivas de Elias e Eliseu acabaram sendo fatais para sua fama.
A profecia tem seu preço, e tanto a pessoa como a instituição que a encarnam devem estar dispostas a pagá-lo. Jesus recorre a um provérbio da sabedoria popular e diz que nenhum profeta bem recebido em sua própria terra. Mas este é apenas um lado da medalha. O outro lado é o seguinte: nenhum profeta que sente a compaixão de Deus queimar suas entranhas consegue permanecer preso aos estreitos muros da raça, da nação, da religião ou de qualquer instituição. O profeta é um incansável transgressor de fronteiras, um incurável construtor de brechas.
“Se e tivesse o dom da profecia...”
O profeta sabe que quando as seguranças culturais, afetivas e institucionais desaparecem, pode experimentar uma acolhida mais profunda, uma segurança que conduz à maturidade e à liberdade autêntica. “Desde o colo da minha mãe és minha proteção”, proclama o salmista. Deus tatuou o nome de vocês na palma de sua mão, insiste o profeta Isaías. O Senhor é meu pastor e nada me faltará, repetimos frequentemente. É na debilidade que somos fortes, diz Paulo.
Escrevendo aos cristãos de Corinto, Paulo chama a atenção para a centralidade do amor e a relatividade de todas as funções e instituições. Se a profecia deslizar para o discurso enraivecido, incoerente e acusatório, será pouco mais que nada. O que dá consistência e verdade à profecia é o amor, este dinamismo que reconhece a dignidade do outro como outro e o serve em suas necessidades. A profecia que brota do amor, orienta-se pelo amor e conduz a um amor que não reconhece fronteiras.
“Sobre ti me apoiei desde o seio materno...”
Jesus de Nazaré, profeta de um mundo sem fronteriras nem hierarquias, amigo dos pequenos e oprimidos! Cura nossos ouvidos, para que se abram à tua Palavra. Ajuda-nos a acolher a missão profética que nos confiaste ainda no seio materno e que devemos continuar, apesar das nossas fraquezas. Abre nossos olhos e nossas mãos ao belo, amplo e diverso mundo a ser construído, um mundo que desconhece e os estreitos e mesquinhos muros das culturas, nações e religiões. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

domingo, 27 de janeiro de 2013

Fatos & Personagens: Mozart


Para que você escute o mundo

No dia 27 de janeiro de 1756 nasceu Wolfgang Amadeus Mozart.

Séculos depois, até os bebês amam a msica que ele nos deixou.

Está comprovado, muitas vezes e em muitos lugares, que o recém-nascido chora menos e dorme mais quando escuta a musica de Mozart.

É a melhor maneira de dizer “bem-vindo ao mundo”, a melhor forma de dizer: “Esta é a sua nova casa. Ela soa assim...”


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 41)

sábado, 26 de janeiro de 2013

Fatos & Personagens: Evo Morales


Segunda fundação da Bolívia

No dia 26 de janeiro de 2009, um plebiscito popular disse sim à nova Constituição proposta pelo presidente Evo Morales. Até este dia, os índios não eram filhos da Bolívia: eram sua mão de obra, e só.

Em 1825, a primeira Constituição outorgou a cidadania a três ou quatro por cento da população. Os demais – índios, mulheres, pobres, analfabetos – não foram convidados para a festa.

Para muitos jornalistas estrangeiros, a Bolívia é um país ingovernável, incompreensível, intratável, inviável. São os que se enganaram de ‘in’: deveriam confessar que a Bolívia, para eles, é um país invisível. E não há nada de estranho nisso, porque até esse dia também a Bolívia foi um país cego para si.


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 40)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Fatos & Personagens: Aleijadinho


Aleijadinho

O homem mais feio do Brasil cria a mais alta beleza da arte colonial americana. O Aleijadinho talha em pedra a glória e a agonia de Ouro Preto, a Potosí do ouro.

Filho de uma escrava africana, esse mulato tem escravos que o movem, o lavam, lhe dão de comer e atam os cinzéis aos seus cotocos de braço.

Atacado pela lepra, ou sífilis, ou quem sabe o quê, o Aleijadinho perdeu um olho e os dentes e os dedos, mas esse resto dele talha pedras com as mãos que faltam.

Noite e dia trabalha, como vingando-se, e brilham mais que o ouro seus cristos, suas virgens, seus santos, seus profetas, enquanto a fonte do ouro é cada vez mais avara em fortunas e mais pródiga em desventuras e revoltas.

Ouro Preto e a região inteira querem dar razão à antecipada sentença do conde de Assumar, que foi seu governador: “Parece que a terra exala tumultos e a água, motins; as nuvens vomitam insolências e os astros, desordens; o clima é tumba de paz e berço de rebeliões.”

(Eduardo Galeano, Espelhos, L&PM, 2008, p. 158)

3° Domingo do Tempo Comum


Que a Palavra ouvida se torne Palavra vivida!
(Ne 8,2-10; Sl 18b/19b; 1Cor 12,12-30; Lc 1,1-4; 4,14-21)
A própria Sagrada Escritura nos apresenta belas e abundantes passagens que sublinham a importância da Palavra de Deus e elogiam sua fecundidade. O Salmo 18/19 recorre a várias metáforas para ilustrar seu dinamismo: os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; seus mandamentos são como luz que orienta; as decisões do Senhor são verdadeiras e justas; seus projetos são preciosos como o ouro e doces como o mel. Graças a Deus, a atenção à Palavra de Deus tem crescido em nossas comunidades, a ponto de a Bíblia ser hoje uma das principais fontes da espiritualidade cristã e da ação pastoral. Neste domingo, Lucas nos toma pela mão e nos leva à sinagoga de Nazaré. Lá Jesus nos inicia na leitura e na prática da Palavra de Deus, mostrando-nos seu núcleo mais vivo e transcendente.
“Jesus voltou para a Galiléia com a força do Espírito.”
Na pessoa de Jesus Cristo, Espírito e Palavra coincidem com exatidão. Pregação e ação, promessa e presença também se identificam. Tendo sido concebido por obra e graça do Espírito Santo, por ocasião do batismo Jesus é também ungido pelo Espírito e se subordina publicamente à sua inspiração. Conduzido pelo Espírito, vai ao deserto e enfrenta e vence as tentações. É sob o influxo deste mesmo Espírito que Jesus deixa o deserto para inserir-se nas lutas e tradições do seu povo.
Fundamentando-se nas informações de testemunhas oculares e querendo oferecer-nos uma narração ordenada dos acontecimentos históricos que envolveram Jesus, Lucas nos comunica que Jesus iniciou sua vida pública nas sinagogas dos povoados da Galiléia. Sua ação é como a de um mestre e reformador eloqüente e experimentado. Mas Jesus de Nazaré não pretende simplesmente negar as instituições da sua religião e começar tudo de novo. “Ele ensinava nas sinagogas e todos o elogiavam.”
O mesmo Espírito que faz Jesus crescer na consciência de ser filho amado e servo enviado, também o leva à inserção na caminhada religiosa e política do seu povo. E ele começa pela Galiléia dos suspeitos e pelos lugares onde a Palavra de Deus era lida e meditada: as sinagogas. O mesmo Espírito que suscita a Palavra nos conduz a ela, abre nossos ouvidos e adestra nossas mãos para a luta. Mas, atenção: a Palavra de Deus não se indentifica simples e diretamente que aquilo que temos escrito na Bíblia!
“Conforme seu costume, no sábado Jesus entrou na Sinagoga.”
Jesus freqüentava a sinagoga com seu povo, e isso era um hábito, e não algo que fazia esporadicamente. O evangelista diz que isto era um costume de Jesus. E não se trata de uma ação meramente estratégica ou exemplar, mas de uma atitude referencial de busca e de escuta. Numa palavra, uma postura de discípulo. Como qualquer pessoa que se põe nos caminhos de Deus, Jesus necessitava de um horizonte e de uma referência para sua vida e sua missão. Pela Palavra de Deus, saberemos por onde andar...
Como havia ocorrido no batismo, também na Sinagoga, apesar da sua crescente fama, Jesus se apresenta como mais um no meio do povo. Sedento e faminto das promessas mais incríveis de Deus, ele busca orientação na Palavra de Deus. “E levantou-se para fazer a leitura.” Habituado à escuta da Escritura Sagrada, Jesus busca luzes na profecia de Isaías. Procura diligentemente e encontra a passagem na qual o profeta tenta suscitar a esperança num povo radicalmente desesperançado.
Como havia feito Esdras no passado, Jesus lê a palavra que Deus suscitara mediante o profeta “para todos os homens e mulheres e todos os que tinham uso da razão”. Mas lê também para si mesmo, ou melhor, busca nela uma orientação pessoal para melhor entender sua missão. É escuta e da docilidade à Palavra de Deus, que grita também nos sinais dos tempos, que nos vem a força para romper com a passividade e aceitar a missão. A Palavra de Deus não pode passar por nós sem deixar um sinal...
“O Espírito do Senhor está sobre mim porque ele me consagrou.”
O mesmo Espírito que inspira as Escrituras consagra e envia os profetas para recriar os vínculos que reunir um povo. “Para anunciar a Boa Notícia aos pobres; para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano da graça do Senhor.” Longe de inspirar apenas associações piedosas, canções novas e santuários bizantinos, o Espírito vincula seus ungidos/as a uma missão historicamente engajada e relevante, sempre em favor dos últimos.
É com o sopro da Palavra que Deus gera seus profetas e profetizas. É da familiaridade com a Escritura que nascem os agentes de Deus no mundo. Os ouvidos que ousam sintonizar com a Palavra de Deus não conseguem fazer-se surdos aos clamores dos últimos, sejam eles chamados de pobres, presos, cegos ou oprimidos. Tendo diante de si aqueles/as que são considerados/as e tratados/as como últimos da escala social, os/as ungidos/as de Deus pelo batismo anunciam a eles boas notícias.
“Para proclamar um ano da graça do Senhor...”
Jesus desenvolveu sua missão evangelizadora num tempo em que a gratuidade não estava em alta. Os invasores romanos exigiam tributos mesmo às custas da miséria do povo, e os sacerdotes do templo cobravam a reparação ritual até das faltas mais irrelevantes. Para os dirigentes do judaísmo, os pecados e impurezas deveriam ser pagos sem desconto algum. A pregação do perdão pelo arrependimento era coisa muito recente e suspeita, sustentada apenas pelo profeta que batizava nas margens do rio.
Para a religião judaica, pobres, presos, cegos e oprimidos eram pecadores e, por isso, devedores. Ou o seria o inverso? Jesus vai à Sinagoga para resgatar uma esperança popular enraizada na própria escritura e para questionar a pregação oficial. Ele entende que sua missão é anunciar que chegou o tempo do jubileu, do cancelamento de todas as dívidas, da remissão de todos os pecados. Para Jesus, Deus não é nem delegado de polícia, nem agente do Serviço de Proteção ao Crédito.
A liturgia da Palavra nos lembra que, já no Antigo Testamento, a função da Palavra é gerar vida e suscitar alegria. Depois de ouvir de pé a leitura e a interpretação da Palavra de Deus por Esdras e pelos levitas, o povo começou a chorar. “Hoje é dia consagrado a Javé, Deus de vocês. Não fiquem tristes e parem de chorar!” O Evangelho é, literalmente, uma boa notícia. Por isso, não pode ser reduzido a uma pesada e sofisticada doutrina moral, imposta a um povo já cansado e abatido.
“Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura.”
Junto com a tentação de reduzir o Evangelho a um conjunto de regras morais, corremos, pelo menos, outros dois riscos: tratá-lo como edificante acontecimento do passado ou aprisioná-lo num futuro hipotético e incerto. Efetivamente, a Boa Notícia de Jesus Cristo não é algo que aconteceu e se esgotou no tempo que se chama ontem, nem uma mensagem desencarnada para um tempo que ainda não veio e para um lugar que se chama alma ou céu.
A ‘homilia’ que Jesus fez sobre a profecia que acabara de ler foi breve e concreta. “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura, que vocês acabam de ouvir.” A comunidade, que estava como que suspensa diante da proclamação da Palavra e tinha os olhos fixos no jovem pregador, foi por ele chamada ao presente concreto. Como ouvinte habitual da Palavra de Deus, Jesus percebe que o tempo está maduro e que Deus se dirige a ele. O filho amado é também o profeta e reformador esperado.
A Palavra proclamada opera pela palavra encarnada e se realiza na ação engajada. É importante que a Palavra de Deus proclamada na liturgia seja explicada pelos/as ministros/as (ordinários/as ou extraordinários/as, pouco importa) e leve a assembléia a louvar, a suplicar e a pedir perdão. Mas se a profecia não se realizar no engajamento pessoal e comunitário nas lutas e movimentos de emancipação e libertação, será apenas meia-palavra, ou palavra vazia.
“Se um membro sofre, todos os membros participam do seu sofrimento...”
Busquemos alimento e orientação na Palavra de Deus. Se Jesus teve necessidade da Escritura, quem somos nós para deixá-la de lado ou usá-la apenas como ‘instrumento de trabalho’? A tragédia que se abateu sobre o povo do Haiti há três anos continua nos comovendo e fazemdo lembrar que os diferentes povos e nações não são senão diferentes membros de um mesmo corpo. E quando um membro sofre, todos sofrem e precisam sair da passividade. Mas sem esquecer que esta tragédia não pode ser vista isoladamente. A tragédia maior e mais dolorida é a indiferença do mundo diante da miséria que, tendo sido gerada no maldito ventre do colonialismo, há séculos martiriza o povo haitiano.
Pe. Itacir Brassiani msf

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Fatos & Personagens: Wiston Churchill


Pai civilizador

Em 1965, aos 24 de janeiro, morreu Wiston Churchill.
Em 1919, quando presidia o British Air Council, havia oferecido uma das suas frequentes lições da arte da guerra:

“Não consigo compreender tantos melindres sobre o uso do gás. Estou muito a favor do uso do gás venenoso contra as tribos incivilizadas. Isso teria um bom efeito moral e difundiria um terror perdurável.”

E em 1937, diante da Palestine Royal Commission, havia oferecido uma de suas frequentes lições de história da humanidade:

“Eu não admito que se tenha feito mal algum aos peles-vermelhas da América, nem aos negros da Austrália, quando uma raça mais forte, uma raça de melhor qualidade, chegou e ocupou seu lugar.”

(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 38)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Fatos & Personagens: os diversos rostos da discriminação


Os poucos e os todos
Em 1776, a Independência dos Estados Unidos antecipou o que depois iria acontecer, do México ao sul, com outras independências de outras nações americanas.

Para que não restassem dúvidas sobre a função dos índios, George Washington propôs a total destruição das aldeias indígenas, Thomas Jefferson opinou que aquela infortunada raça havia justificado seu extermínio e Benjamin Franklin sugeriu que o rum poderia ser um meio adequado para extirpar aqueles selvagens.

Para que não restassem dúvidas sobre a função das mulheres, a Constituição do Estado de Nova York acrescentou o adjetivo ‘masculino’ ao direito de voto.

Para que não restassem dúvidas sobre a função dos brancos pobres, os que assinaram a declaração de Independência eram todos brancos e ricos.

E para que não restassem dúvidas sobre a função dos negros, havia seiscentos e cinquenta mil escravos que continuaram sendo escravos na nação recém-nascida. Braços negros ergueram a Casa Branca.

(Eduardo Galeano, Espelhos, L&PM, 2008, p. 162)

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Fatos & Personagens: a mudança da corte portuguesa


A mudança de um reino

No dia 22 de janeiro de 1808, chegaram à costa do Brasil, sem pão e sem água, os extenuados navios que dois meses antes haviam partido de Lisboa.

Napoleão pisoteava o mapa da Europa, e já estava atravessando a fronteira de Portugal quando se desatou a correria: a corte portuguesa, obrigada a mudar de domicílio, marchava rumo ao trópico.

A rainha Maria encabeçou a mudança. E atrás dela foram o príncipe e os duques, condes, viscondes, marqueses e barões, com as perucas e as roupas faustosas que mais tarde foram herdadas pelo carnaval do Rio de Janeiro. E atrás, amontoados no desespero, vinham sacerdotes e chefes militares, cortesãs, costureiras, médicos, juízes, tabeliães, barbeiros, escrivães, sapateiros, jardineiros...

A rainha Maria não andava lá muito boa da cabeça, para não dizer que estava louca de pedra, mas foi ela que pronunciou a única frase lúcida que se ouviu no meio daquele manicômio: “Não corram tanto, que vai parecer que estamos fugindo!”

(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 36)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Fatos & Personagens: Santa Inês


Santa Inês

Na segunda metade do terceiro século, no dia 21 de janeiro de um ano por nós ignorado, foi martirizada em Roma, com apenas 13 anos de idade, a adolescente Inês. A sua grande coragem, oriunda de uma fé apaixonada e indestrutível, apesar da sua fragilidade física, fez dela uma das mártires mais famosas do cristianismo.

A narração da sua paixão (que chegou a nós em versão grega, latina e siríaca do século V) já era conhecida por todos os grandes mestres do cristianismo. Ambrósio, Agostinho, Damaso, Jerônimo, Máximo de Torino, Gregório Magno, Beda, Prudêncio e, mais tarde, os poetas do período carolíngeo, nos oferecem descrições tocantes da jovem Inês. São todos relatos baseados em tradições de antiquíssima memória.

A iconografia que retrata Inês também conheceu um enorme desenvolvimento. Nas imagens, especialmente nas pinturas medievais, Inês aparece ao lado de um cordeiro, recordando seu nome (Agnese/agnus = cordeiro) e o sonho que seus pais tiveram, oito dias depois da sua morte, no qual a viram desfilando ao lado de um cordeiro sem mancha, junto com outros mártires.

No lugar onde ela foi sepultada, Constantina, filha do imperador Constantino, edificou uma basílica que, depois de muitas mudanças, foi reconstruída em estilo bizantino e que ainda hoje é uma das principais igrejas de Roma. Seu nome também é citado no Cânone Romano, a principal oração eucarística da Igreja latina.

(Comunità di Bose, Il libro dei testimoni, Paulus, Milano, 2002, p. 67)

100 anos da chegada dos MSF no Amapá


A figura do Pe. Julio Maria de Lombaerde msf

Júlio Emílio Alberto de Lombaerde. Sacerdote belga pertencente à Congregação dos Missionários da Sagrada Família, MSF. Nasceu em Beveren-Leie-Warengem em 7 de janeiro de 1878. Faleceu em Manhumirim, MG, em 24 de dezembro de 1944. Seus pais foram José de Lombaerde e Sidônia Steelandt. Em abril de 1895 entra para a Congregação dos Padres Brancos, na África, recebendo, como postulante, o nome de Irmão Optato-Maria, ficando ali até 1901. Em fevereiro de 1902 entra para a congregação dos Missionários da Sagrada Família (MSF), em Grave (Holanda). Faz os votos provisórios em 4 de outubro de 1903 e é ordenado em 13 de junho de 1908.

Em 15 de outubro de 1912 chega ao Brasil, através de Recife (Pernambuco), a bordo do transatlântico alemão Krefeld. Em 23 de outubro segue para Natal (RN) com mais quatro missinários, chegando n o dia seguinte (24). Dois dias depois parte para São Gonçalo (Minas Gerais). Em janeiro de 1913 segue viagem para Belém (Pará), chegando no dia 18. Permanece por um mês na capital paraense. Chega a Macapá, no Amapá, pela primeira vez, em 27 de fevereiro de 1913. Desta data até 23 de abril de 1916 trabalha como coadjutor do padre José Maria Lauth (MSF). A partir de então atua como vigário da paróquia de São José de Macapá até 1923.

Em 20 de novembro de 1916 funda a congregação católica religiosa feminina Filhas do Coração Imaculado de Maria, em Macapá. A partir de 1923 até 1926 atua em Belém. De 1926 a 1928 é vigário em Natal (RN). A partir de 25 de março de 1928 transfere-se definitivamente em Manhumirim-MG, até falecer, em 1944. Em 13 dezembro de 1917 funda em Macapá o Colégio de Santa Maria, para abrigar meninas em regime de internato e semi-internato. Em 14 de janeiro de 1918 funda uma escola infantil em regime de semi-internato em Macapá, para abrigar menores abandonados. Em 15 de fevereiro de 1918 funda em Macapá o cine Olímpia, que passa a funcionar aos domingos. Em 16 de março é nomeado diretor da Instrução Pública, pelo intendente de Macapá, Alexandre Vaz Tavares.

Em 18 de julho de 1919 monta um teatro educativo e religioso em Macapá, para os jovens aprenderem a falar em público. Em 17 de setembro cria a Banda Marcial São José, com 25 integrantes escolhidos entre os rapazes de sua confiança, pagando um maestro de Vigia (Pará) para regê-la. Em 15 de maio de 1923 é transferido para Icoaraci, em Belém (Pará). Em 25 de março de 1928 funda em Manhumirim (MG) a congregação masculina dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora. Em 25 de março de 1929 funda a congregação das Irmãs Sacramentinas de Nossa Senhora.

Escreveu dezenas de obras em francês e português, abordando ensinamentos católicos, romances, pregação e meditação. Na Europa foi responsável pela revista “Le Messager de La Sainte Familli” (Grave, Holanda). De 1916 a 1917 escreveu intensamente no jornal “Correio de Macapá”. De 1914 a 1934, por vinte anos consecutivos, escreveu no jornal “Voz de Nazaré”, de Belém. De 1926 a 1928, no Rio Grande do Norte, escreveu no “Diário de Natal”. Em 1928, m Manhumirim, fundou o jornal “O Lutador”, e fundou a editora “O Lutador” para impressão de suas obras. Falece m 24 de dezembro de 1944, em desastre automobilístico, em Vargem Grande (Presidente Soares, Minas Gerais).

Edgar Rodrigues