sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Debate: a idéia de sacrificio


Basta de sacrifícios!


A idéia de sacrifício parece conatural às religiões, e o cristianismo não foge à regra. É verdade que a Igreja católica – nem as Igrejas Ortodoxas e Portestantes – não aceita nem prescreve a prática de sacrifícios de pessoas humanas ou de animais. Mas isso não impediu que a linguagem sacrificial adentrasse e predominasse na sua linguagem litúrgica. E, da tradição católica esta cosmovisão passou à cultura ocidental e chegou até à linguagem da economia.

O antropólogo francês René Girard pesquisou amplamente o fenômeno religioso do sacrifício. Ele concluiu que, divididos por causa da inveja, da cobiça e da competição, os seres humanos projetam toda tensão que esta luta gera sobre uma vítima (animal ou humana). O sacrifício ritual desta vítima  – conhecida popularmente como bode expiatório – sobre a qual é supostamente descarregada toda a violência social propiciaria a reconciliação e limitaria a violência que, de outra forma, vigoraria incontrolável na sociedade. Ao mesmo tempo, serviria para apaziguar a cólera de Deus, que teria sido ultrajado pelos pecados cometidos pelos indivíduos e pelo agregado social, e para evitar a punição à qual ele teria direito.

Estes aspectos antropológicos e culturais do sacrifício foram desde logo aplicados a Jesus Cristo. Isso aparece já de forma embrionária na interpretação da paixão, morte e ressurreição de Jesus narrada nos evangelhos. Aquela que inicialmente era apenas uma entre outras hermenêuticas do desfecho da vida de Jesus, pouco a pouco se tornou predominante e, em alguns momentos, praticamente a única. Para isso contribuiu também uma interpretação superficial e interesseira da carta aos Hebreus.

À luz da perspectiva sacrificial, a morte de Jesus Cristo teria sido o pagamento exigido por Deus Pai pelas incomensuráveis ofensas perpetradas pela humanidade contra ele. Uma ofensa absoluta só poderia ser perdoada mediante um pagamento de valor absoluto: o sacrifício do próprio filho de Deus. Com isso, as conotações e tramas políticas e sociológicas que levaram Jesus à morte desaparecem completamente. Mesmo a perspectiva profética da sua vida, e a perseguição e prisão como consequências dessa missão, acaba completamente apagada. Jesus seria como um cordeiro imaculado e calado que se deixa imolar para apaziguar as relações humanas e sociais e para aplacar a presumida e iminente ira divina.

Isso tem importantes consequências para a concepção do que seja a vida cristã. Os crentes demonstrariam autenticamente sua fé em Deus repetindo sacramentalmente este sacrifício, ritualizado especialmente na Eucaristia. Os sacramentos seriam a repetição simbólica – incruenta – do sacrifício que Jesus fez de si mesmo no Calvário. Como se a colina do Calvário perdesse todo seu aspecto de lugar de exclusão e de violência e se tornasse um templo vistoso e acolhedor, no interior do qual Jesus teria se auto-oferecido serenamente em sacrifício de agradável odor, entre cânticos harmoniosos e em meio a uma nuvem de incenso... Mas não foram os próprios senhores que templo que tramaram sua morte?!

Já no primeiro testamento está presente uma perspectiva profética que contesta a necessidade de sacrifícios e propõe substituílos pelo louvor. A glorificação de Deus se faz mediante o louvor, e não através dos sacrifícios. E isso não tem nada a ver com a dor provocada em si mesmo ou nos outros, e muito menos com a morte imposta violentamente. Uma leitura atenta da carta aos Hebreus nos ajuda a entender que a morte violenta imposta a Jesus, assumida por Jesus como dom radical e livre de si mesmo, significa o fim de toda espécie de sacrifício. Como Jesus, recebemos de Deus um corpo, e nós o glorificamos engajando nossa vida para realizar sua vontade, dando o melhor de nós mesmos para que todos tenham vida abundante.

O que é a Eucaristia, senão celebração da bondade compassiva de Deus manifestada em Jesus Cristo e renovação de nossa aliança com ele? Se nossa vida é substancialmente o reconhecimento dessa misericórdia, nós glorificamos a Deus vivendo em nome de Jesus, ou seja: embarcando no mesmo dinamismo que nos leva a ser dom, aliados/as, irmã/os, companheiros/as. E os sacramentos recordam isso e nos confirmam sempre de novo neste caminho. Agradamos a Deus e pacificamos o mundo engajando-nos radicalmente na eliminação da violência e na criação e sustentação de laços que nos tornam uma só família e um só povo.

Itacir Brassiani msf

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