sábado, 12 de janeiro de 2013

Missão em Moçambique: aspectos de uma realidade complexa (2)


A propósito dos cinco anos da missão de Moçambique (2)


Dependência econômica

Alguns passos foram dados, outros resultados obtidos e enormes desafios ainda persistem. Somos brancos (mucunhas, apelido pejorativo, inicialmente dado aos dominadores portugueses). As construções, veículos são deles e não da comunidade. Os cristãos, na sua maioria dizem que ajudam os missionários, não consideram Centro de Formação como algo da comunidade.  Resistem em contribuir economicamente. O dízimo é taxa anual. Muitos apenas pagam quando precisam ou buscam sacramentos. Coletas, nada mais do que 12 anuais. Na missão, agora são feitas em produtos (milho e feijão), num momento do ano, com o título de coleta de ação de graças, mediante fixação de um mínimo por comunidade. Muitas comunidades continuam fazendo mínimos esforços. A metade desta coleta é entregue à diocese. 50% do dízimo também é destinado à diocese. 

A luta cotidiana para (sobre)viver
A missão consegue algum resultado satisfatório. Para cobrir despesas de combustível existe uma taxa paroquial anual por comunidade.  Podemos considerar que houve crescimento significativo em receita, mas sem acompanhamento respectivo de conscientização eclesial.  Somos uma Igreja dependente do exterior: província, congregação e outras entidades de ajuda. A carência das comunidades, sob todos os pontos de vista, também da imaginação, uso do cérebro, é vastíssima, diria até assustadora.

Situação religiosa

Se no Brasil falamos, tantas vezes, do fenômeno do sincretismo religioso, aqui ele é bem mais intenso e vigoroso. Curandeiro, feiticeiro, médico tradicional são buscados com assiduidade. O doente vai ao hospital e depois ao curandeiro.  O adivinho é necessário para “decifrar” os acontecimentos. Muitos conflitos, envolvendo outras lideranças locais acontecem nas comunidades.

Cultos tradicionais são comuns. Ritos de iniciação, funerais, em geral, são privativos dos leigos. Agora a diocese está incentivando os ritos de iniciação nas comunidades, o que gera conflitos com autoridades locais, especialmente os régulos, antigos chefes tribais e seus ajudantes. Todos costumam cobrar taxas, exigir donativos em alimentos. É o fenômeno chamado de cabritismo, pois muitas vezes se exige um cabrito em troca de favores ou trabalhos religiosos.
Diversos régulos acompanhados de feiticeiros visitam residências e exigem contribuições em dinheiro. Quem se nega a pagar, corre o risco de represálias como prisão, mediante criação de pretextos múltiplos. Sair da prisão custa dinheiro. Há pouco houve um trabalho intensivo de expulsão de maus espíritos do mercado público local de Mecuburi. Os curandeiros, vindos de fora, cobravam 50 meticais de cada comerciante, que já pagam taxa anual e dias de uso do seu espaço. É impressionante a criatividade para “garfar” de todas as autoridades locais, criam múltiplos artifícios para roubar, por isso jamais despreze a criatividade ou inteligência da população local.

O serviço e a necessidade

Retornando à pastoral propriamente dita, nem sempre nosso modo de observar os fatos concordam com as motivações que levam os cristãos a assumir serviços ou ministérios nas comunidades. Não raro o espírito de serviço, ausente ou rarefeito, é substituído pela sede de poder. Diversas comunidades, dominadas por famílias ou clãs, fazem o impossível para não perder o “osso”. Ancião cessante cria nova comunidade e leva consigo sua “turma” para seguir mandando. As eleições de anciãos, muitas vezes, são feitas por cooptação.

O desejo de poder, mesmo que inconsciente, é forte. A conivência ou o acobertamento de exageros como cobranças extras ou a inclusão de apadrinhados em listas de sacramentos, sem idade mínima ou preparação adequada também ainda é comum.  O que nós, num primeiro momento, admiramos como dedicação, muitas vezes, envolve subterrâneos outros, não visíveis a olho nu. Toda oportunidade que possibilite espaço de poder e chance de ganhar alguma coisa é sempre bem vinda.  A título de ilustração, na comunidade de Nacuacuali, onde se localiza a missão, teve sacramentos no Natal. As lideranças cobraram cem meticais, cachaça (vinho como aqui se fala) e farinha, dos jovens catecúmenos; dos casais cobraram galinhas... Tudo isso, no frigir dos ovos, é uma artimanha para ganhos extras.

Residencia dos missionarios, em Mecuburi
Outra dimensão aponta para a onipresença do partido que governa o país. Boa parte de nossas lideranças são filiados. É obvio que o fazem na esperança de alguma vantagem. Em qualquer aldeia, bairro ou similar o partido está presente, organizado. Além do régulo, com seus coadjuvantes, encontramos chefes de população, secretários de bairros e outros. Todos recebem algum tipo de auxílio oficial. O partido se expande qual tiririca, pela semente e pela raiz. Pessoas mais vividas neste continente não hesitam em afirmar que a África vive um tempo de ditaduras de partidos.

A caminhada eclesial

Falava-se muito em Igreja ministerial, existência de leigos, batizando ou assistindo casamentos, perspectivas de ordenação de presbíteros leigos, casados, de acordo com o livro de Professor Luciano, entitulado “Igreja Ministerial”, análise de um período de 1968 a 1986. O êxodo dos missionários (muitos expulsos) e a escassez de clero nativo obrigaram as dioceses a mudar.
Hoje este quadro está totalmente modificado.  Penso que a Igreja local fez um caminho de involução muito grande. As congregações religiosas, além do trabalho de canonização de seus fundadores, buscam espaço para sobreviver institucionalmente. Por detrás do espírito missionário há outras motivações, nem sempre tão cristalinamente evangélicas. O fenômeno missionário é bem mais complexo do que os discursos e planos.

O mesmo texto analisa a situação vocacional. Insiste na importância do clero manter suas raízes culturais, num estilo de vida simples, próximo do povo. O aburguesamento do clero é notório. O caminho vocacional é um trampolim de ascensão social e não raros os casos de presbíteros que emigram para a Europa ou EUA, motivados ou movidos pela perspectiva  de ganhar dinheiro. O compromisso com a família também é um componente cultural forte. O presbítero se sente mais ligado ao compromisso familiar do que à instituição igreja. É difícil entender o que se passa na cabeça do clero local que, com frequência, expressa animosidade contra os missionários “ricos”. As opções dos jovens são pífias, por isso a alternativa vocacional presbiteral é muito atraente.
O desafio da língua
Outro grande desafio é o da língua. Aqui se fala macua. Muitíssimas crianças, após cinco anos de escola, não falam nenhuma palavra em português.  Com a promoção automática é comum que, no término da 7ª classe, diversos adolescentes continuem analfabetos.  Aqui, com muita frequência, escola ainda está distante do ensino-aprendizagem. É deprimente o quadro, mas é a triste realidade.
O povo não fala português. Nós não falamos macua. Os tradutores, muitos deles que não conseguem entender nosso modo de pensar, acabam assumindo a tarefa de traidores. “Dizer” a missa em macua muda pouco. Nos tornamos peças foclóricas. Não tenho dúvida nenhuma de que um imenso fosso nos separa, culturalmente falando. Outras épocas evidenciam situações distintas: gramáticas, dicionários e congêneres foram elaborados por missionários brancos.
Evangelização ou sacramentalização?
No meu modo de entender, continuamos a fazer a tarefa da sacramentalização.  Isso já é um trabalho pesado, considerando as caóticas vias de circulação, número de comunidade, problemas de saúde... Não temos um foco preciso. Falamos bastante em formação, sem definição de um horizonte concretizável. Aliás, planejamento diocesano de pastoral inexiste. Apenas se elabora um cronograma anual de atividades, sujeito a constantes alterações e suspensão de agendas.
Sem planejamento (traçado de objetivo, definição de ações, previsão de recursos...) aqui se cultiva o hábito da elaboração de relatórios. A preocupação em fazer relatório é bem maior do que o efetivo empenho do trabalho. Relatório (seria uma atenuante de avaliação?) sem planejamento não permite mensurar nada. Antes a desculpa comum era a de que o povo não sabia ler.
A título de exemplo, registro a pouca expressão que encontra a dimensão bíblica na formação.  O missal local já apresenta também as leituras dominicais, de modo que a bíblia apenas é usada na hora da sua apresentação, no início da liturgia da palavra. Até os anciãos ou animadores apanham feio da bíblia, quando são desafiados a encontrar um texto. O professor Luciano, ao escrever sobre a Igreja de Moçambique (Igreja ministerial) aborda, repetidas vezes, a iniciação bíblica dos anciãos. Hoje a situação é bem distinta. O período enfocado pelo autor é de 1968 a 1986.
A missão como cuidado pastoral
A Pastoral perpassa a vida toda. Num universo onde a fome é endêmica, as condições de saúde péssimas, a começar pela qualidade e quantidade de água, a forma de produção primitiva, hábitos de alimentação que geram subnutrição, é impossível pensar que só  rezar é o suficiente. Com certeza, rezamos pouco e talvez até mal, mas não dá para conviver com o quadro atual. A miséria choca, mas a resignação, a descrença deste povo em si mesmo e o conformismo, aliado à resistência a mudanças, penetra mais fundo e machuca bem mais.
Alguns textos acerca da cultura macua que li afirmam que o futuro não está presente no seu modo de pensar. Vivem o agora. Não posso concordar. Os que conseguem crescer, como, por exemplo, os governantes, também os da cultura macua, costumam desmentir esta afirmação.  Dizem que este é um povo alegre. É uma face da realidade. O fenômeno das bebedeiras é outra dimensão que também fala da cultura. Talvez seja o reverso da aparente alegria.
Enfim, o quadro é ruim? Penso que não! Só entendo que não adianta tentar cobrir o sol com a peneira. Aqui a realidade é esta: quando se consegue andar o ritmo é lento. Uma coisa garanto: com a régua da racionalidade se consegue entender bem pouco deste mundo local.
Elmar Luiz Sauer msf

Nenhum comentário: