quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O Papa renunciou


Para além do fato

A renúncia de Bento XVI aconteceu. As análises de sociólogos, politólogos e outros têm detido na dupla referência da situação do Vaticano e da pessoa do Papa. O teólogo tende a ir por outra direção. Na verdade, esta se caracteriza como renúncia original, primeira e única. As anteriores, citadas em vários artigos, aconteceram por contingências políticas conturbadas e além da decisão serena das pessoas. Não serviram de símbolo nem de exemplo para outros. Por isso, desde a que se realizou no final do século XIII até hoje não havia acontecido nenhuma outra.

Com a teologia do primado desenvolvida e extremada, sobretudo depois do Concílio Vaticano I (1870), a renúncia de Bento XVI assume significado teológico e simbólico singular. A teologia reconhece nas ações pontifícias a assistência do Espírito Santo, não necessariamente garantindo-lhe ordinariamente a infalibilidade. Se assim acontece, o teólogo vê no gesto de Bento XVI, não simplesmente razões pessoais nem políticas, mas a presença do Espírito que sinaliza para toda a Igreja algo de profundo. Então nascem as interpretações.

Tal gesto vai além do presente e da função do Papa. Diz respeito a toda a Igreja. Ele nos faz lembrar uma blague do então vice-presidente do Brasil, Pedro Aleixo, ao comentar o AI-5. “Não temo tanto as arbitrariedades do Presidente da República, mas as do guarda da esquina”! Aqui inverto a reflexão. Admiro e espero que a lição do Papa não afete unicamente os próximos pontífices, mas toda a estrutura da Igreja. Não se trata simplesmente da renúncia a um cargo, mas da consciência que ela manifesta da pequenez humana diante das missões e da necessidade de reconhecer os próprios limites. Esses, em casos extremos, pedem a  saída, mas, normalmente, se manifestam na busca de ajuda, de dividir tarefas, de confiar em outros, de compartihar decisões. O termo político criado chama-se democracia. Mas, como anda muito gasto e aviltado, prefiro entender o gesto do Papa como alerta para toda a Igreja a fim de assumir o caminho da escuta, da autocrítica, da mútua e sincera “correção fraterna” de modo que cada vez mais pessoas se sintam responsáveis pelo todo da Igreja e não somente os hierarcas e pior ainda autoritariamente.

Se todos com alguma responsabilidade na Igreja se perguntassem pela provocação do Espírito Santo presente no gesto de Bento XVI, talvez se gestasse Igreja aberta às interpelações da cultura e sociedade da partilha. Os regimes autocráticos já desapareceram quase em todas as partes. Cabe à Igreja perguntar-se se o gesto do Papa não sinaliza  assumir o mesmo processo. Vemo-lo acontecer embrionariamente nas comunidades eclesiais de base, nas paróquias e dioceses pensadas em rede de comunidades, em promover Assembleias com poder decisório. O gesto do Papa vai bem mais longe, se não nos prendermos a conjunturas puramente pessoais e circunstanciais. Ele nos faz mergulhar nas águas profundas do Espírito que o inspirou.

João Batista Libânio sj

Terceiro Domingo da Quaresma


Sejamos solidários com os jovens em seus sofrimentos!
(Ex 3,1-8.13-15; Sl 102/103; 1Cor 10,1-6.10-12; Lc 13,1-9)
“Castigo de Deus por causa dos ritos idolátricos do vudu”. Esta foi a terrível leitura que um pastor estadunidense fez do terremoto que destruiu o Haiti e vitimou nossa conhecida doutora Zilda Arns.  Devemos perguntar a ele: o mesmo vale para o furacão Caterina, que há alguns anos arrasou parte dos EUA, e para o terromoto que destruiu uma região na Itália em plena semana-santa do ano 2009? Infelizmente nunca faltam pessoas que se comprazem em culpalizar as vítimas e alforriar os algozes, nem aquelas que se empenham em convencer-nos de que as tragédias que se multiplicam não passam de fatalidades imprevisíveis. E tem gente que, para desencorajar qualquer engajamento por um Outro Mundo, se esmera em recordar o destino trágico dos/as sonhadores/as e dos lutadores/as. Mas nos seguimos Jesus Cristo porque estamos dispostos/as a fazer-nos solidários/as com as pessoas em seus sofrimentos, especialmente com os jovens, um dos objetivos da Campanha da Fraternidade deste ano.
“Vou chegar mais perto para ver esta coisa estranha...”
Todos resistimos, mais ou menos, a encarar e dar nome aos males que nos rodeiam e com os quais às vezes colaboramos, direta ou indiretamente. Como ignorar sem culpa que os 300 maiores proprietários de terras do Brasil possuem o equivalente aos estados de São Paulo e Paraná juntos? E que mais de 30% do orçamento do Brasil é consumido pelo pagamento de juros da dívida pública, e só 11,73% vai para saúde, a educação,a habitação, a assistência social, a segurança e saneamento?
Para ver a realidade é preciso ter olhos perfeitos, mas isso não é suficiente. A realidade é dura e desafia os sentidos e a inteligência. O conhecimento e o reconhecimento dos fatos e das pessoas requer mais que inteligência: supõe abertura, sensibilidade, saída de si, conversão. Somos como Moisés que, num primeiro momento, só consegue ver ovelhas, pastagens, trabalho, interesses do sogro, projeto pessoal de vida. O máximo que consegue é deixar-se impressionar por algo que queima e não se extingue.
Deus irrompe na vida de Moisés a partir do sofrimento do seu povo, simbolizado no fogo. Deus chega dizendo, quase aos gritos, que está vendo a opressão do seu povo, que seus sofrimentos ferem seu coração e seus clamores ferem seus ouvidos, que desceu para fazê-lo subir. É como se Deus dissesse a Moisés: ‘E você não vê nada, não escuta nada?’ E nós, para onde voltamos nosso olhar e o que gostamos de escutar? “Escutando e compreendendo os gritos e clamores dos jovens, a Igreja é chamada não somente a evangelizar, mas também a ser evangelizada”, diz o Texto-Base da CF 3013 (cf. n° 3).
“Pensais que eram mais culpados do que qualquer outro?”
Não podemos esquecer que sobre a nossa ambígua realidade existem leituras insuficientes, erradas e perversas. Nosso ver e nosso julgar estão sempre a serviço de uma determinada ideologia, que comporta uma visão de pessoa, um ideal de sociedade e uma ética. Esta questão está bem ilustrada no episódio narrado por Lucas, no evangelho de hoje. O contexto mais amplo é o ensino sobre a missão profética e solidária dos discípulos e sobre a necessidade de interpretar corretamente os sinais dos tempos.
Alguns fariseus interrompem o ensino de Jesus trazendo a notícia de que um grupo de galileus rebeldes fora assassinado por Herodes no templo. É evidente que com isso eles querem censurar e advertir Jesus, como se dissessem: ‘Continue assim e verás o que acontecerá contigo!’ Mas por trás disso está também uma acusação às próprias vítimas: sabendo ou não, Herodes representaria a mão de Deus, que puniu aqueles que, de alguma forma, eram culpados. Uma leitura terrível de fatos em si mesmo trágicos.
Jesus critica o preconceito dos fariseus frente aos galileus e questiona a leitura justificadora e irresponsável que fazem dos fatos. E o faz chamando à memória outro fato, conhecido de todos: um acidente que matara 18 judeus em Jerusalém. Com isso, Jesus não quer afirmar que tudo é fatalidade. Ele deseja questionar uma teologia escapista e cínica, sempre pronta a culpar as vítimas, defender os verdadeiros culpados e evitar o exigente caminho da conversão.
“Se vós não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo.”
Com firmeza e lucidez Jesus enfrenta, ao mesmo tempo, as tentativas de desencorajá-lo de prosseguir sua missão profética e a teologia cínica e discriminadora elaborada e ensinada pelos defensores do templo.  Afirmando que todos estamos sujeitos a errar ou não atingir a meta de uma vida justa, Jesus nos convida a deixar a cadeira de juízes e a abrir os olhos para uma realidade que é mais complexa que a simples divisão entre culpados e inocentes. Ele nos propõe uma leitura profética da história e nos chama a reconhecer nossos próprios erros, assim como os males gerados pelas estruturas sociais.
E a dura realidade dos jovens brasileiros está nesse contexto: 40% das mortes dos jovens têm como causa o homicídio (enquanto que, para o total da população, é de 2%); e a maioria das vítimas está entre os jovens negros (a proporção é de dois jovens negros para cada jovem branco); a maioria dos assassinatos ocorre nas camadas mais pobres da população e no contexto do consumo e do tráfico de drogas. Não falta gente disposta a jogar a culpa nas costas dos próprios jovens. Jesus nos interroga: “Pensais que eram mais culpados do que qualquer outro morador de Jerusalém? Eu vos digo que não.”
 “Corta-a! Para que está ocupando inutilmente a terra?”
“Se não vos converterdes...” O apelo mais forte da liturgia do terceiro domingo da quaresma é à conversão, que começa com uma mudança no nosso modo de ver a realidade e de julgar os fatos e as pessoas. A vida ambivalente que os jovens levam não é causa dos seus próprios sofrimentos nem simplesmente parte de um problema maior: é funesta consequência de  um sistema injusto e irresponsável, centrado no maior desfrutamento possível e na lei do mais forte.
A conversão não se faz aos saltos, nem de uma vez para sempre. ‘Conversão, justiça, comunhão e alegria no cristão é missão de cada dia.’ E parte do próprio Jesus, que nos ama de forma incondicional e aposta nas nossas possibilidades e na nossa vontade. Mesmo não vendo os frutos esperados e tendo motivos para não esperar qualquer mudança da parte dos líderes religiosos do seu tempo, Jesus, como bom agricultor, se dispõe a trabalhar e adubar o terreno com sua palavra e seu próprio corpo.
Mas o processo de conversão, impulsionado pela convicção de que o Reino de Deus está à porta e pela convocação a acreditar nesta boa notícia, tem também seu tempo e suas exigências. Que ninguém se resigne em ser como uma figueira “que está ocupando inutilmente a terra”. “Mais um ano” é um tempo bem determinado e exige responsabilidade! O perdão de Deus é certo, mas o tempo de mudança é hoje, e não um hipotético amanhã. É para ontem a necessidade de exercitar um novo estilo de vida!
 “Estas coisas foram escritas como advertências para nós.”
Paulo nos recorda que aquilo que lemos na Sagrada Escritura foi escrito para nos advertir e orientar. “Estes acontecimentos se tgornaram símbolos para nós... Estas coisas foram escritas como advertências para nós.” Por isso não calemos nossa voz diante dos poderes que governam ameaçando, armados de capacetes ou de mitras, mas evitemos a tentação do dedo em riste contra quem quer que seja. A denúncia é indispensável, mas não é tudo. O testemunho – pessoal e eclesial – conta mais, é irrefutável.
A retidão de Deus se manifesta na defesa dos oprimidos, canta o salmista. Ele não se faz surdo aos clamores dos oprimidos, nem cego aos sofrimentos que machucam a carne e a alma deles. Ele chama aqueles/as que acreditam nele a ter o mesmo olhar e a mesma sensibilidade, descendo para que os oprimidos possam sair da opressão e subir dos infernos da dominação. Deus é misericordioso e compassivo, e espera de nós a compaixão e a misericórdia. E estas não se reduzem a romântico e piedoso sentimento, mas devem desembocar na indignação revolucionária que vemos hoje na juventude, apesar das suas contradições, que, ademais, não são exclusividade dos jovens.
“Ele te coroa com sua bondade e sua misericórdia!”
Jesus de Nazaré, jovem galileu, Filho da Humanidade e Filho de Deus! Envia o teu Espírito, para que ele nos inspire e mantenha no caminho de conversão que nos ofereces nesta quaresma. Não nos deixes cair na tentação de fechar os ouvidos aos clamores dos jovens, de fechar os olhos às dores dos oprimidos e de culpar as vítimas pelas próprias misérias e sofrimentos. Que cada um de nós, nossas comunidades e movimentos e a Igreja inteira, partindo da certeza de Deus, teu e nosso pai, é lento e suave na cólera mas rápido e estável na bondade, não tratemos com dureza as pessoas já frágeis. Aduba nossa vida com tua Palavra, teu Corpo e teu Sangue, para que possamos dar os frutos esperados. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

Fatos & Personagens: Linus Pauling


Linus Pauling

Quando estava descendo pela escada em caracol de um navio, pensou que bem podia ser que as moléculas das proteínas viajassem daquele jeito, em espiral e sobre solo ondulado. E isso acabou virando um achado científico.

Quando descobriu que os automóveis tinham a culpa do muito que ele tossia na cidade de Los Angeles, inventou o automóvel elétrico, que foi um fracasso comercial.

Quando ficou doente dos rins, e viu que os remédios não adiantavam nada, se receitou comida saudável e bombardeios de Vitamina C. E se curou.

Quando explodiram as bombas em Hiroshima e Nagasaki, foi convidado para dar uma conferência científica em Hollywood, e quando percebeu que não havia dito o que que queria dizer, passou a emcabeçar a campanha mundial contra as armas nucleares.

Quando recebeu o prêmio Nobel pela segunda vez, a revista Life disse que aquilo era um insulto. Em duas ocasiões o governo dos Estados Unidos já o havia deixado sem passaporte, porque era suspeito de simpatias comunistas, ou porque havia dito que Deus era uma idéia não necessária.

Eke se chamava Linus Pauling. Nasceu no dia 28 de fevereiro de 1901, enquanto nascia o século XX.

(Eduardo Galeano, Os Filhos dos Dias, L&PM, 2012, p. 76)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013


Falemos de Deus sem sermos tagarelas!


De um certo tempo para cá estamos mudando significativamente nosso modo de falar de Deus. Não falamos mais abertamente de conceito, idéia ou doutrina sobre Deus. Falamos pouco sobre revelação de Deus e fé em Deus. A preferência é pela partilha da experiência de Deus. A ênfase vem sendo progressivamente colocada na experiência em detrimento da intelecção. O que está no fundo dessa atitude é a dificuldade de falar adequadamente sobre Deus.

Do alto dos seus 70 anos, a teóloga alemã Dorothee Sölle confessou: "Falar de Deus, é isso que eu quero e onde sempre fracasso. É isso que estou tentando fazer há muitos anos na língua das mulheres, na língua dos injustiçados e dos sofridos, na língua da minha tradição que eu amo e que inicia em Isaías e não termina com a Idade Média. E, quase sempre, dá errado esse meu falar de Deus." A experiência da insuficiência e da caducidade das palavras e dos conceitos teológicos quando se trata de falar de Deus a leva a afirmar que "é mais importante falar com Deus do que falar de Deus".

O teólogo centro­americano Pablo Richard põe criticamente o dedo na ferida: "En todas las Iglesias se habla de Dios, pero quizá en muy pocas Dios mismo puede hablar. La Iglesia normalmente es especialista en las cosas de Dios, pero no siempre la Iglesia nos enseña a escuchar Dios". Mais que anunciar a "palavra de Deus", é preciso permitir que o próprio Deus fale. Antes de ensinar a correta doutrina sobre Deus, é preciso possibilitar que ele seja experimentado, sem manipulações nem reducionismos.

O velho teólogo e novo dominicano peruano Gustavo Gutiérrez escreve, com uma boa dose de ironia: “Sempre admirei esses filósofos e teólogos que falam do que Deus pensa e quer como se tomassem café com ele todos os dias... João da Cruz, ao contrário, nos lembra que isso é impossível. Que só podemos falar de Deus e de seu amor com um grande respeito, conscientes do que dizia nosso Tomás de Aquino: “é mais o que ignoramos de Deus do que o que sabemos dele”.

A dificuldade de falar de Deus não é recente. Lembremos de Santo Agostinho. Quem como ele procurou Deus com inquietação e sofreguidão? Mesmo tarde, reconheceu Deus é o nosso destino e, por isso, nosso coração está inquieto enquanto não descansa nele. Mesmo confessando "Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar­vos... Estáveis comigo, e eu não estava convosco!", Agostinho tinha a viva consciência de que o Mistério de Deus o ultrapassava infinitamente: "Se o compreendeste, não é Deus".

Por ser Mistério que nos precede, sustenta, envolve e ultrapassa, mesmo sendo acessível à nossa experiência, Deus nunca se deixa aprisionar e esgotar nestas mesmas experiências nem nos conceitos. Ele é três vezes Santo e transcende e transborda a toda e qualquer experiência ou expressão. Recordemos a experiência de Jacó, relatada em Gn 32,23­33. Num contexto de conflito e reconciliação com seu irmão Esaú, Jacó sente a necessidade de atravessar o rio, de passar a uma etapa superior. Depois de passar a sua família com todos os pertences, ele ficou sozinho e entrou em luta durante toda noite com um desconhecido. Chegando a madrugada, antes que a luz do dia permitisse vislumbrar o seu rosto, o desconhecido tocou na cocha de Jacó, abençoou­o mesmo sem revelar seu nome e desapareceu. E Jacó concluiu: "Eu vi Deus face a face e continuei vivo!"

Lembremos também experiência de Moisés, relatada em Ex 33,18­23. Mais uma vez, o contexto é uma encruzilhada dramática. No meio da caminhada, rumo à terra prometida, o povo se cansa de um Deus escondido e pede um deus palpável, que caminhe à sua frente. Questiona a liderança do próprio Moisés que se retira freqüentemente para discernir o caminho a seguir. Moisés se recusa a aceitar o castigo de Deus sobre aquele povo de cabeça dura e pede: "Mostra­me a tua glória..." Javé aceita o pedido, prometendo passar na frente de Moisés e mostrar sua piedade e compaixão, mas sem mostrar seu rosto...

Deus se oferece à experiência existencial e histórica, mas não se deixa aprisionar nelas. Se é certo que não podemos calar aquilo que nossos olhos viram, nossos ouvidos escutaram e nossas mãos apalparam, precisamos sempre ter pudor e discrição para não reduzir o Mistério à estreiteza dos nossos conceitos e não falar de Deus como tagarelas.

Pe. Itacir Brassiani msf

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Fatos & Personagens: Tratado de Berlim


África minha


No final do século XIX, as potências coloniais européias se reuniram, em Berlim, para repartir a África.

Foi longa e dura a luta pelo butim colonial, as selvas, os rios, as montanhas, os solos, os subsolos, até que as novas fronteiras fossem desenhadas e, no dia 26 de fevereiro de 1885 fosse assinada, “em nome de Deus Todo-Poderoso”, a Ata Geral.

Os amos europeus tiveram o bom gosto de não mencionar o ouro, os diamantes, o marfim, o petróleo, a borracha, o estanho, o cacau, o café e o óleo de palmeira... E mais:
Ø  Proibiram que a escravidão fosse chamada pelo seu nome;
Ø  Chamaram de “sociedades filantrópicas” as empresas que proporcionavam carne humana ao mercado mundial;
Ø  Avisaram que atuavam movidos pelo desejo de “favorecer o desenvolvimento do comércio e da civilização”;
Ø  E, caso houvesse alguma dúvida, explicaram que atuavam preocupados “em aumentar o bem-estar moral e material das populações indígenas”.

Assim a Europa inventou o novo mapa da África. Nenhum africano compareceu, nem como enfeite, a essa reunião de cúpula.

(Eduardo Galeano, Os Filhos dos Dias, L&PM, 2012, p. 74)

domingo, 24 de fevereiro de 2013

A chegada dos MSF ao Sul do Brasil


90 anos da chegada dos Missionários da Sagrada Família em Rolante

Rolante hoje
Na Holanda, o Pe. Trampe (Superior Geral dos Missionários da Sagrada Família) estava informado sobre o intenso movimento migratório de alemães, italianos e poloneses para o Sul do Brasil. Fazia parte da estratégia do Estado brasileiro para povoar a região Sul, promover uma agricultura forte e moderna, criar uma nova classe média, desenvolver uma ideologia do trabalho e europeizar a população. O olhar e o pensamento do Pe. Trampe se voltaram para o Sul quando se tratou de projetar a fundação de uma escola apostólica.
O Superior Geral ‘estava de olho’ na região missioneira, mais propriamente, na nova e prospera colônia alemã Serro Azul, atual Cerro Largo. E não mediu esforços para chegar a essa região durante sua primeira visita canônica, em 1922. No dia 09.11.1922 o Pe. Trampe e Dom Hermeto (Bispo de Uruguaiana) assinaram o convênio que confiava as paróquias de Santo Ângelo e de São Miguel aos cuidados dos Missionários da Sagrada Família, com autorização para erigir casa canônica e construir uma escola apostólica e a promessa de enviar os missionários imediatamente.
Rolante no mata do RS
Depois de se encontrar com o Arcebispo de Porto Alegre, o Pe. Trampe acabou visitando e aceitando a paróquia de Rolante, cujo contrato foi assinado no dia 20.11.1922.  Assim que voltou a Grave, o Governo Geral da Congregação ratificou os compromissos assumidos e enviou ao Sul do Brasil três missionários que estavam no Nordeste: Pe. Jorge Anneken, Pe. Carlos Lange e Pe. José Linden. Rolante é o berço da Província Brasil Meridional dos Missionários da Sagrada Família!
Estes primeiros MSF que pisaram o cho do Sul do Brasil chegaram a Rolante no dia 24.02.1923.  Iniciava-se assim missão dos MSF no Sul do Brasil.  O objetivo primeiro era fundar uma escola apostólica para a formação dos missionários. Esta finalidade era diferente daquela que nos levara ao Norte e o Nordeste. Impressionado com os frutos abundantes dos primeiros trabalhos, o Pe. Anneken escrevia: "Parece que aqui irá melhor do que eu pensava. Com a missão a paróquia tomou outro aspecto. Iremos trabalhar para despertar e acolher vocacionados. Mas para isso precisamos aceitar mais paróquias."
Os jovens e ardorosos missionários não escolhiam trabalho. Eles mesmos pintaram a igreja por dentro e por fora. Já em 1923 celebraram 614 batizados e 58 casamentos. Com os reforços humanos que chegaram em 1924, assumiram a direção da escola paroquial e a animação da vizinha paróquia de Barra do Ouro, inclusive com o objetivo de aprender melhor a língua portuguesa (já que em Rolante se falava alemão!).
Panoramica aérea de Rolante
Mas se a decisão de fundar um seminário já estava tomada, a questão da localização ainda não era consenso. Mesmo tendo vindo ao Sul com o claro objetivo de fundar uma escola apostólica e acolher as vocações dos descendentes de imigrantes, os primeiros MSF se viram um tanto perdidos: eram dependentes de Grave e tinham dificuldades de comunicação com o Governo Geral; com opiniões e posições divergentes sobre o melhor lugar; divergências de opinião também com o Governo Geral; alguns queriam construir a escola apostólica na região de Rolante, enquanto outros preferiam Santo Ângelo.
Em Rolante o Pe. Scholl já havia comprado uma área de terra, iniciado uma escola e acolhido alguns seminaristas. Somente em 1931, com a nomeação dos Pró­-Provinciais do Norte e do Sul, os membros da região Sul conseguiram tomar uma decisão que agradava à maioria: a aquisição de uma área de 21 hectares de terra em Santo Ângelo, em vista da construção do seminário. Não obstante estas lutas intestinas, de Rolante nos vieram muitas vocações, e nossa presença naquela região se prolongou até a década de 1980.
Itacir Brassiani msf

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Fatos & Personagens: nascimento do Pe. Berthier


“O nome dele é João!”

Aquele 24 de fevereiro de 1840, um típico dia de inverno da região de Isère, conhecida como região das ‘terras frias’, foi especial para Pedro e Maria, que haviam celebrado o casamento fqazia pouco mais de 10 meses: às 21h00 vinha à luz o amado e esperado filho primogênito, a quem dariam o nome de João Pedro.
Vista parcial e atual de Chatonnay
Pedro Berthier era então um jovem ardoroso, ativo e parcimonioso que havia recém completado 28 anos. Maria Putoud, sua esposa, se caracterizava pela ternura e por uma piedade firme e sincera, e alcançaria 20 anos no dia 24 de março. Assim, o pequeno João Pedro vinha ao mundo num ambiente no qual a força abraçava a ternura e a serenidade se unia ao sentido de urgência.
Na primeira hora da manhã do dia 25 de fevereiro, acompanhado pelo cunhado Antônio Putoud e pelo vizinho José Rajon, o jovem Pedro Berthier foi até oficial de registro civil de Châtonnay para comunicar o fato. O oficial Lucien Jocteur Monrozier registrou que, por vontade do pai, o recém-nascido se chamaria João Pedro.
De fato, aquele menino herdaria de São João evangelista a ternura, a bondade envolvente, a caridade transbordante e uma atraente doçura. E de São Pedro apóstolo aprenderia o dinamismo e o entusiasmo para a missão, a fé indomável e uma capacidade incrível de resistir às adversidades. Amor e zelo serão o pano de fundo de toda sua história. Como o discípulo amado, um dia ele tomaria Maria como sua mãe e viveria por ela e com ela, gravando na alma suas palavras: “Meu filho, comunique isso a todo o meu povo!” (cf. De Lombaerde, Un apôtre de nos jours, p. 26).
No dia 26 de fevereiro, apenas dois dias depois do seu nascimento, o menino João Pedro foi acolhido pela comunidade paroquial de Châtonnay e batizado pelo Pe. Champon, o qual anotou no livro: “Aos 26 de fevereiro de 1840, batizei João Batista Berthier, filho legítimo de Pedro e de Maria Putoud. Os padrinhos foram João Motère e Maria Berthier-Motère.”
Como pais cristãos que eram, Pedro e Maria se empenharam desde cedo para que o pequeno João Pedro (ou João Batista) e os filhos que nasceriam mais tarde recebessem o batismo e fossem educados na fé católica. Mais tarde João Berthier escreveria a propósito da missão educadora dos pais: “Para fazer um bom pão é necessário ter um bom fermento. O futuro das famílias e da própria sociedade depende do cuidado que os pais dispensam aos filhos.” E, no seu típico estilo que une ortodoxia e imagens curiosas, acrescenta: “Um filho batizado é um filho de Deus e um herdeiro do céu, ao qual seus pais devem conduzi-lo... A galinha não abandona seus pintinhos. O tigre esquece sua ferocidade diante dos filhotes. Mais que isso deve ser o amor dos pais pelos filhos.” (Le prêtre, vol. I, 7ª ed., p. 211; 213).
Torre na colina do 'Calvario', em Chatonnay
No trajeto que vai do ofício civil à igreja paroquial, o filho de Pedro e de Maria perdeu Pedro e recebeu Batista como segundo nome. Porém, esse segundo nome não aparecerá em nenhum ato oficial envolvendo João Berthier e jamais será empregado por ele mesmo. Ele assinará sempre e apenas João Berthier, e é justo e correto que assim o chamemos. Como o velho Zacarias dirrimindo dúvidas, proclamemos: “O nome dele é João” (Lc 1,63).
Fazendo memória do nascimento e do batismo do Pe. João Berthier louvemos a Deus pelo incansável missionário que ele se tornou e pelo legado catequético e apostólico que nos deixou. Não sejamos omissos frente à missão de avivar e entregar à nossa geração o mandato missionário de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, mergulhemos no mistério de amor e providência que envolve nosso próprio nascimento e nas fontes do nosso batismo, extraindo deles a força fermentadora do Evangelho.
Pe. Itacir Brassiani msf