quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013


Falemos de Deus sem sermos tagarelas!


De um certo tempo para cá estamos mudando significativamente nosso modo de falar de Deus. Não falamos mais abertamente de conceito, idéia ou doutrina sobre Deus. Falamos pouco sobre revelação de Deus e fé em Deus. A preferência é pela partilha da experiência de Deus. A ênfase vem sendo progressivamente colocada na experiência em detrimento da intelecção. O que está no fundo dessa atitude é a dificuldade de falar adequadamente sobre Deus.

Do alto dos seus 70 anos, a teóloga alemã Dorothee Sölle confessou: "Falar de Deus, é isso que eu quero e onde sempre fracasso. É isso que estou tentando fazer há muitos anos na língua das mulheres, na língua dos injustiçados e dos sofridos, na língua da minha tradição que eu amo e que inicia em Isaías e não termina com a Idade Média. E, quase sempre, dá errado esse meu falar de Deus." A experiência da insuficiência e da caducidade das palavras e dos conceitos teológicos quando se trata de falar de Deus a leva a afirmar que "é mais importante falar com Deus do que falar de Deus".

O teólogo centro­americano Pablo Richard põe criticamente o dedo na ferida: "En todas las Iglesias se habla de Dios, pero quizá en muy pocas Dios mismo puede hablar. La Iglesia normalmente es especialista en las cosas de Dios, pero no siempre la Iglesia nos enseña a escuchar Dios". Mais que anunciar a "palavra de Deus", é preciso permitir que o próprio Deus fale. Antes de ensinar a correta doutrina sobre Deus, é preciso possibilitar que ele seja experimentado, sem manipulações nem reducionismos.

O velho teólogo e novo dominicano peruano Gustavo Gutiérrez escreve, com uma boa dose de ironia: “Sempre admirei esses filósofos e teólogos que falam do que Deus pensa e quer como se tomassem café com ele todos os dias... João da Cruz, ao contrário, nos lembra que isso é impossível. Que só podemos falar de Deus e de seu amor com um grande respeito, conscientes do que dizia nosso Tomás de Aquino: “é mais o que ignoramos de Deus do que o que sabemos dele”.

A dificuldade de falar de Deus não é recente. Lembremos de Santo Agostinho. Quem como ele procurou Deus com inquietação e sofreguidão? Mesmo tarde, reconheceu Deus é o nosso destino e, por isso, nosso coração está inquieto enquanto não descansa nele. Mesmo confessando "Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar­vos... Estáveis comigo, e eu não estava convosco!", Agostinho tinha a viva consciência de que o Mistério de Deus o ultrapassava infinitamente: "Se o compreendeste, não é Deus".

Por ser Mistério que nos precede, sustenta, envolve e ultrapassa, mesmo sendo acessível à nossa experiência, Deus nunca se deixa aprisionar e esgotar nestas mesmas experiências nem nos conceitos. Ele é três vezes Santo e transcende e transborda a toda e qualquer experiência ou expressão. Recordemos a experiência de Jacó, relatada em Gn 32,23­33. Num contexto de conflito e reconciliação com seu irmão Esaú, Jacó sente a necessidade de atravessar o rio, de passar a uma etapa superior. Depois de passar a sua família com todos os pertences, ele ficou sozinho e entrou em luta durante toda noite com um desconhecido. Chegando a madrugada, antes que a luz do dia permitisse vislumbrar o seu rosto, o desconhecido tocou na cocha de Jacó, abençoou­o mesmo sem revelar seu nome e desapareceu. E Jacó concluiu: "Eu vi Deus face a face e continuei vivo!"

Lembremos também experiência de Moisés, relatada em Ex 33,18­23. Mais uma vez, o contexto é uma encruzilhada dramática. No meio da caminhada, rumo à terra prometida, o povo se cansa de um Deus escondido e pede um deus palpável, que caminhe à sua frente. Questiona a liderança do próprio Moisés que se retira freqüentemente para discernir o caminho a seguir. Moisés se recusa a aceitar o castigo de Deus sobre aquele povo de cabeça dura e pede: "Mostra­me a tua glória..." Javé aceita o pedido, prometendo passar na frente de Moisés e mostrar sua piedade e compaixão, mas sem mostrar seu rosto...

Deus se oferece à experiência existencial e histórica, mas não se deixa aprisionar nelas. Se é certo que não podemos calar aquilo que nossos olhos viram, nossos ouvidos escutaram e nossas mãos apalparam, precisamos sempre ter pudor e discrição para não reduzir o Mistério à estreiteza dos nossos conceitos e não falar de Deus como tagarelas.

Pe. Itacir Brassiani msf

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