sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Humanidade e vulnerabilidade


Ser irmão, ser vulnerável
A busca da fraternidade e da comunhão é ideal da existência cristã em geral e da vida religiosa em particular. Mas uma avaliação sincera e criteriosa da nossa convivência pode revelar uma espécie de deserto relacional. Temos ainda um longo caminho a percorrer no rumo da fraternidade.

Constatamos com humildade e pesar que frequentemente nossas relações são pouco consistentes. Moramos e trabalhamos juntos; reunimo-nos de vez em quando; sentamos à mesma mesa; trabalhamos na mesma área; até rezamos o mesmo ofício... Mas sentimos claramente um silêncio vazio e crescente, uma distância intransponível entre nós. Não sonhamos os mesmos sonhos e as palavras que pronunciamos às vezes parecem escorpiões que nos envenenam com suas justificações e críticas nem sempre fraternas. Um poeta já disse que os mortos são pesados de se carregar porquê levam o peso de todas as palavras que não puderam dizer...

Por quê isso acontece? O que este deserto árido pode nos ensinar? Acho que nós precisamos entender, mesmo que isso doa, que a pessoa com quem vivemos é um outro, e que a fraternidade não pode prescindir desta diferenciação que pode se apresentar como conflito ou como tédio. O outro é o não-eu, o que não se deixa reduzir ao mesmo, às nossas vontades, afetos, conceitos ou necessidades. E precisamos entender e aceitar também que não somos aquele sujeito absoluto, infinito, competente e onipotente que fingimos ser. Pode ocorrer que, de tanto fingir, acreditamos na nossa própria mentira.

Precisamos aprender com urgência que o outro não pode ser a parte que falta em nós. Ele nunca pode ser reduzido a uma “bucha” para tapar nosso “buraco” ontológico ou existencial, nossos limites de trabalho, de pensamento ou de afeto. Ele é um outro inteiro que nos chama e à nossa própria inteireza, à nossa incompletude radical, ao nosso vazio ontológico que nunca perde a sede de acolher o outro, mas que também não lhe impõe as próprias carências e nem o culpa por não preenchê-la.

Não adianta mudar de comunidade ou de companheiro/a, procurar outras pessoas que sejam capazes de nos entender e completar. No deserto da relação isso não é uma fonte mas uma miragem. O caminho, a fonte, é cada um/a aceitar seu vazio ou finitude e a alteridade do outro. É necessário que se espere pacientemente, instante após instante, descobrir o milagre que fundamenta uma aliança. Uma lição necessária é esta: por sermos diferentes e inacabados somos capazes de aliança. E esse milagre começa com a renúncia à apropriação ou dependência frente ao outro. Isso, porém, supõe a descoberta de que somos irmãos, diferentes, inteiros.

Ser irmão e amar alguém é renunciar à tentação de possui-lo ou fazer dele um complemento ou propriedade. É assumir o risco e a alegria de ser-com, sem cobranças ou expectativas, com ternura, lucidez e rigor. É aceitar a própria carência de ser, a condição de vacuidade, de abertura, a condição de ser apenas pó. Sem descobrir e aceitar isso que realmente somos é impossível conviver. Jean-Yves Leloup diz poeticamente: “Quem volta do deserto tem um olhar para sempre insatisfeito com as aparências. O deserto lhe ensinou que ele não é; não-ser é o começo e o fim do seu ser... Descobre-se a si mesmo no dia em que se descobre como tendo sido sempre des-coberto... O rei sempre estava nu debaixo das armaduras”.

Estaremos preparados para conviver quando formos capazes de renunciar às nossas armaduras, às nossas máscaras de competência, de grandeza, de completude, de onipotência. “Hoje o homem é ainda muito fraco para suportar a própria fraqueza. Deve tornar-se forte para aceitar a própria vulnerabilidade” diz enfaticamente Leloup. Enquanto não formos capazes de aceitar nossa própria nudez a presença do outro será sempre uma ameaça, pois ele poderá descobrir nossa fragilidade. O caminho para um relacionamento maduro e fraterno passa pelo encontro consigo mesmo. 

Caminhando pelo nosso próprio deserto, pelo pó que somos (“partir para o deserto é partir para o mais longe de si mesmo, e dali voltar para o mais perto”), dando voltas na areia, encontraremos nosso oásis: nossa vulnerabilidade, nossa nudez, a sede insaciável de ser. E então poderemos ser o poço que jorra para os outros. O “buraco” então se torna fonte.

Pe. Itacir Brassiani msf

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