Ser irmão, ser vulnerável
A
busca da fraternidade e da comunhão é ideal da existência cristã em geral e da
vida religiosa em particular. Mas uma avaliação sincera e criteriosa da nossa
convivência pode revelar uma espécie de deserto
relacional. Temos ainda um longo caminho a percorrer no rumo da
fraternidade.
Constatamos
com humildade e pesar que frequentemente nossas relações são pouco
consistentes. Moramos e trabalhamos juntos; reunimo-nos de vez em quando;
sentamos à mesma mesa; trabalhamos na mesma área; até rezamos o mesmo ofício...
Mas sentimos claramente um silêncio vazio e crescente, uma distância
intransponível entre nós. Não sonhamos os mesmos sonhos e as palavras que
pronunciamos às vezes parecem escorpiões que nos envenenam com suas
justificações e críticas nem sempre fraternas. Um poeta já disse que os mortos
são pesados de se carregar porquê levam o peso de todas as palavras que não
puderam dizer...
Por
quê isso acontece? O que este deserto
árido pode nos ensinar? Acho que nós precisamos entender, mesmo que isso doa,
que a pessoa com quem vivemos é um outro,
e que a fraternidade não pode prescindir desta diferenciação que pode se
apresentar como conflito ou como tédio. O outro
é o não-eu, o que não se deixa
reduzir ao mesmo, às nossas vontades,
afetos, conceitos ou necessidades. E precisamos entender e aceitar também que
não somos aquele sujeito absoluto, infinito, competente e onipotente que
fingimos ser. Pode ocorrer que, de tanto fingir, acreditamos na nossa própria
mentira.
Precisamos
aprender com urgência que o outro não
pode ser a parte que falta em nós. Ele nunca pode ser reduzido a uma “bucha”
para tapar nosso “buraco” ontológico ou existencial, nossos limites de
trabalho, de pensamento ou de afeto. Ele é um outro inteiro que nos chama e à nossa própria inteireza, à nossa incompletude radical, ao nosso vazio ontológico que nunca perde a sede
de acolher o outro, mas que também não lhe impõe as próprias carências e nem o
culpa por não preenchê-la.
Não
adianta mudar de comunidade ou de companheiro/a, procurar outras pessoas que
sejam capazes de nos entender e completar. No deserto da relação isso não é uma
fonte mas uma miragem. O caminho, a fonte, é cada um/a aceitar seu vazio ou finitude e a alteridade
do outro. É necessário que se espere pacientemente, instante após instante,
descobrir o milagre que fundamenta uma aliança.
Uma lição necessária é esta: por sermos diferentes e inacabados somos capazes
de aliança. E esse milagre começa com a renúncia à apropriação ou dependência
frente ao outro. Isso, porém, supõe a descoberta de que somos irmãos,
diferentes, inteiros.
Ser
irmão e amar alguém é renunciar à tentação de possui-lo ou fazer dele um
complemento ou propriedade. É assumir o risco e a alegria de ser-com, sem cobranças ou expectativas,
com ternura, lucidez e rigor. É aceitar a própria carência de ser, a condição de vacuidade, de abertura, a condição
de ser apenas pó. Sem descobrir e aceitar isso que realmente somos é impossível
conviver. Jean-Yves Leloup diz poeticamente: “Quem volta do deserto tem um
olhar para sempre insatisfeito com as aparências. O deserto lhe ensinou que ele
não é; não-ser é o começo e o fim do
seu ser... Descobre-se a si mesmo no dia em que se descobre como tendo sido
sempre des-coberto... O rei sempre
estava nu debaixo das armaduras”.
Estaremos
preparados para conviver quando formos capazes de renunciar às nossas
armaduras, às nossas máscaras de competência, de grandeza, de completude, de onipotência.
“Hoje o homem é ainda muito fraco para suportar a própria fraqueza. Deve
tornar-se forte para aceitar a própria vulnerabilidade” diz enfaticamente
Leloup. Enquanto não formos capazes de aceitar nossa própria nudez a presença
do outro será sempre uma ameaça, pois ele poderá descobrir nossa fragilidade. O
caminho para um relacionamento maduro e fraterno passa pelo encontro consigo
mesmo.
Caminhando pelo nosso próprio deserto, pelo pó que somos (“partir para o
deserto é partir para o mais longe de si mesmo, e dali voltar para o mais
perto”), dando voltas na areia, encontraremos nosso oásis: nossa
vulnerabilidade, nossa nudez, a sede insaciável de ser. E então poderemos ser o
poço que jorra para os outros. O “buraco” então se torna fonte.
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