sexta-feira, 8 de março de 2013

Igreja e luta pelo poder


A disputa pelo poder na cúpula da Igreja

As recentes notícias de disputas pelo poder na cúpula da Igreja Católica Romana têm deixado muita gente perplexa. O próprio papa Bento XVI chegou a fazer referências ao assunto, considerando-o nocivo para o anúncio do Evangelho. As pessoas mais simples, portadoras de uma visão angelical do ministro ordenado, sentem-se como que maltratadas em sua fé, quando ouvem tais notícias. Não acreditam no que é dito. As pessoas mais críticas, pensantes, sabem que se trata de algo muito sério que não há como esconder. Muitos membros da hierarquia, imitando a avestruz, tentam fugir do problema. Normalmente saem pela tangente, procurando desviar-se do tema. Foi o caso, por exemplo, de um ilustre canonista, solenemente vestido em seu clergyman, que entrevistado ao vivo por uma jornalista de uma rede de televisão, saiu com uma desculpa esfarrapada. Perguntado pela jornalista o que o papa Bento XVI quis dizer quando aludiu a divisões dentro da Igreja, o ilustre mestre em Direito Canônico deu uma resposta evasiva que soou mais ou menos assim: “Em seus discursos o papa tem sempre presente o tempo litúrgico. Como estamos na Quaresma, ele quis fazer-nos um convite à conversão. Ele naturalmente estava se referindo à obrigação que temos de nos converter e de nos purificar de todas as fragilidades”.
A disputa pelo poder dentro da Igreja é tão antiga quanto a própria comunidade cristã. Os Evangelhos sinóticos registram o episódio dos irmãos Zebedeu, que instigados por uma mãe preocupada com o futuro de seus filhos, pretendem ocupar o lugar de primeiros ministros no Reino de Jesus (Mt 20,20-28). A pretensão dos dois irmãos causou ciúmes e indignação nos outros dez discípulos. Muitos estudiosos da Bíblia afirmam que por trás desta narrativa estaria a briga pelo poder nas primeiras comunidades cristãs. Os evangelistas teriam registrado o episódio para chamar a atenção dessas comunidades e orientá-las quanto à forma como deveriam lidar com a questão do poder. O evangelista João, embora não narre este episódio, deixou registrada a parábola do Bom Pastor (Jo 10,11-21). Ele reflete sobre o poder na comunidade cristã, criticando aquelas lideranças que se comportam como ladrões e assaltantes, não entrando “pela porta do curral” (Jo 10,1). Ao que tudo indica, trata-se de uma referência ao carreirismo e ao oportunismo já presentes nas comunidades cristãs do final do primeiro século da nossa era. Mais adiante, na narrativa conhecida como “Lava-pés”, João vai novamente criticar o autoritarismo e fazer uma catequese sobre como deveria ser o exercício do poder na comunidade cristã (Jo 13,1-17). No versículo nove da sua Terceira Carta o ancião João denuncia certo Diótrefes “que ambiciona dominar” e, por isso, se recusa a aceitar as demais lideranças, difamando-as e expulsando-as da Igreja.
Paulo, em algumas de suas cartas, denuncia e critica o comportamento ambicioso de determinadas lideranças, as quais disputam ferozmente o poder dentro das comunidades cristãs por ele fundadas. O texto mais incisivo é aquele da Carta aos Gálatas na qual o apóstolo denuncia pessoas que estão semeando confusão nas comunidades e anunciando “um evangelho diferente” daquele que ele anuncia (Gl 1,6-10). Em Corinto, depois de seu esforço evangelizador, Paulo vê a comunidade se dividir em facções (1Cor 1,12; 3,4). Na Carta aos Filipenses (1,12-18) o apóstolo acusa aqueles que na comunidade agem por inveja e por espírito de competição. Tais “cães” e “falsos circuncidados” confiam “na carne” (3,2-4) e adoram o “deus-ventre” (3,19).
A situação se agrava ainda mais quando, a partir de 380, com o decreto de Teodósio, o cristianismo passa a ser religião de Estado e, aos poucos, as lideranças cristãs vão assumindo o estilo autoritário e tirânico de governar (Mc 10,42-43). Os bispos, os padres e até o próprio papa vão assimilando o jeito de ser dos imperadores e reis. Até os títulos imperiais (excelência, eminência, sumo pontífice, monsenhor etc.) e as insígnias (coroas, anéis, tiaras, luvas, sapatilhas, mitras, casulas etc.) se tornam títulos e insígnias dos pastores da Igreja. Junto com o poder vem a riqueza, o luxo e a ostentação. E a guerra pelos primeiros lugares se torna violenta e cruel. Qualquer historiador eclesiástico sério sabe muito bem o que isso significou. E não podia ser diferente, pois “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” e quando alguém se deixa levar pela “ânsia do dinheiro” termina se afastando da fé (1Tm 6,10).
Diante do exposto resta-nos dizer que é hipocrisia tentar negar o óbvio, ou seja, que existam disputas internas no interior da Igreja. Os autores sagrados do Novo Testamento não esconderam isso. Pelo contrário, expuseram as mazelas de suas comunidades. Por essa razão um teólogo ou canonista que, de público, nega tal fato comporta-se de maneira ridícula e falsifica o próprio Evangelho. Sabemos por experiência que tal disputa se dá ainda hoje, inclusive nas pequenas comunidades. Com frequência vemos lideranças, coordenadores e ministros agarrando-se ao pequeno poder que lhes é concedido pelos cargos. Até a detenção da chave da gaveta do armário da sacristia pode se tornar fonte de poder autoritário, dominador e opressivo.
Resta-nos uma única alternativa para reverter tal situação. Esta alternativa tem início com a humilde confissão e admissão da existência da disputa pelo poder no interior da Igreja. Admitida esta realidade é indispensável repensar por completo a educação das lideranças cristãs, desde as mais simples até os ministérios ordenados. Esta educação implica antes de tudo a clareza acerca da total incompatibilidade entre o modo de governar dos tiranos deste mundo e o governo eclesial: “Entre vocês não deverá ser assim” (Mc 10,43). A partir desta convicção a catequese vocacional de educação das lideranças deverá comportar o princípio fundamental de que o poder na comunidade cristã é exclusivamente serviço, de modo que fique bem evidente que quem não estiver disposto a servir não pode assumir nenhum tipo de liderança na Igreja: “quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês” (Mc 10,43).
Este tipo evangélico de educação é um grande desafio para o momento, pois, como vimos acima, o vício está espalhado pelas comunidades cristãs e a visão mais comum é de que cargo ou função na Igreja é uma forma de dominar os outros e de mostrar poder sobre os demais. Não será fácil educar à maneira de Jesus: depor o manto do poder dominador e amarrar na própria cintura a toalha do diákonos, do servidor,  do garçom, do empregado que serve à mesa (Jo 13,4). Mas, não há outro caminho e os responsáveis pela educação das lideranças devem deixar bem claro que não há como conciliar o poder serviço com o poder dominação. Quem se recusa a ver a função da liderança como serviço aos outros, se exclui automaticamente da comunidade dos discípulos e discípulas de Cristo (Jo 13,8). Torna-se um excomungado no sentido técnico da expressão. Infelizmente excomungamos, ou seja, expulsamos das comunidades os que pensam diferente, mas não nos damos conta de que todo papa e todo bispo, todo padre e todo diácono, todo ministro e toda liderança cristã que transforma o seu cargo ou função em poder-dominação é um excomungado. Por recusar-se a ser servidor exclui-se automaticamente do discipulado de Jesus: “não terá parte comigo” (Jo 13,8).
Mas para chegar a tanto se faz necessário uma catequese ainda mais profunda. Uma catequese que deixe bem claro que somos todos irmãos e irmãs, formando uma comunidade de pessoas com igual dignidade, na qual os títulos não contam e não devem ser utilizados para colocar alguém acima dos demais (Mt 23,8-10). Na comunidade cristã, de irmãos e de irmãs, o que conta é a capacidade de servir. Se há grandeza em alguém, esta grandeza deve ser medida por sua capacidade de, na humildade, servir aos outros (Mt 23,11-12). O resto é, no dizer do apóstolo Paulo, podridão, esterco, inclusive os “nobres títulos” com os quais algumas lideranças cristãs fazem questão de serem identificadas (Fl 3,1-14).
José Lisboa Moreira de Oliveira

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