sexta-feira, 1 de março de 2013

O Papa e a Igreja


A Igreja: mistério de fé

Os últimos dias fizeram com que os olhos do mundo se voltassem com curiosidade e interesse para a Igreja Católica. O agente detonador de todo este movimento foi, sem dúvida, a inesperada renúncia do papa Bento XVI.  Mas parece-me que ao fundo está outro fator que convém trazer à baila, examinar e refletir: o lugar dessa instituição de 2 mil anos em uma sociedade secularizada, plural e libertária como é hoje a parte ocidental do mundo.Não é a primeira vez que a Igreja – e muito concretamente a Igreja Católica – passa por uma grave crise.  
Diria até que aquela que agora atravessamos não é das piores. Senão, lembremo-nos da primeira contenda entre Pedro e Paulo, da qual o Novo Testamento dá notícia, e que poderia ter dividido a Igreja para sempre.  E além dela, a crise ariana em torno da divindade de Jesus.  
E, mais perto de nós, a que resultou na Reforma Protestante com simonia e outros desmandos. Crises, portanto, não são novidade para essa Igreja, que a todas sobreviveu. Desde uma perspectiva  de fé, a análise que se possa fazer do atual momento que vive a Igreja é necessariamente diferente de outras análises, mais sociológicas, políticas etc.  O olhar da fé não quer ignorar ou excluir esses outros olhares.  
No entanto, sob pena de desvirtuar-se totalmente e não fazer ressoar de forma adequada a palavra diferenciada que deseja pronunciar, não pode deixar de lado o que lhe é próprio e específico. Em uma perspectiva de fé, a Igreja é antes de tudo um mistério.  A ecclesia neotestamentária não consiste apenas em um grupo que se reúne com regras próprias e interesses comuns.  É muito mais que isto.  Ou talvez radicalmente diferente disto.  Trata-se da assembleia dos que creem em Jesus Cristo e no Deus por ele revelado.  A fé neste evento histórico-teologal mudou suas vidas, e eles e elas desejam agora entrar em um novo modo de vida: o modo de vida crístico, que é essencialmente comunitário. A comunidade dos que assim querem viver é então a Igreja. Santa e pecadora é essa Igreja, que desde o primeiro momento se autocompreendeu, em palavras do apóstolo Paulo, como esposa de Cristo.  

Nela, o que é humano, contingente, pecador, sempre existiu e é iniludível.  Composta de seres humanos e frágeis, muitas vezes se viu a comunidade sacudida e erodida pelo mal que se expressou em lutas de poder, invejas, alianças espúrias etc. Porém, sempre dessas crises se levantou e cresceu, porque seu fundo mais profundo é a santidade de Cristo, que é sua cabeça; é o Vento Santo do Espírito, que a preside e conduz, e não permite que nada prevaleça contra ela. O mesmo Paulo que usava expressões tão elevadas para se referir à Igreja que amava tinha consciência do pecado presente em seu seio.  
E vemos repetidas vezes o apóstolo usar expressões duras para repreender os fiéis que considerava filhos – “filhinhos” ternamente amados – e que não hesitava em chamar de “santos” quando os percebia vítimas dos enganos e das falácias do pecado que os dividia e conspurcava. Os escândalos que hoje presenciamos ferindo a face da Igreja,  e que explodiram e ganharam visibilidade no pontificado que ora termina com Bento XVI, não são novos, portanto.  Porque as paixões e os vícios desde sempre convivem neste abismo de transcendência e finitude que é o ser humano.  
O desalento e sofrimento de Bento XVI diante de certas situações eclesiais hodiernas, conclamando a Igreja à conversão no início da Quaresma, foram também os de muitos líderes eclesiais em todos os níveis e segmentos eclesiais, ao longo desta história de mais de dois milênios.  
A verdade tem que ser assumida e olhada de frente, por mais dolorosa e vergonhosa que seja.  Pois, sem reconhecê-la e assumi-la, a conversão não se dará.  No entanto, reconhecer  os pecados da Igreja implica assumi-los como nossos. E assumi-los na fé. Fé que nos diz que não se trata apenas de uma instituição civil ou de uma grandeza sociológica essa que está no epicentro de tantos conflitos.  Mas trata-se de uma comunidade de fé.  E assim sendo, apesar de ter e dever reconhecer todas as fragilidades próprias à humana condição de seus membros, é mistério que faz encontrar o brilho da santidade e do amor, mesmo em meio às mais escuras e densas noites. Só com esta atitude a Igreja poderá realizar as mudanças que deseja e que são urgentes e necessárias.  
Santa e pecadora, humana e divina, mistério de fé, ela procurará então, uma vez mais, voltar-se para o Norte que a orienta e segui-lo com fidelidade e esperança. A comoção que provocou a renúncia do papa é sinal de que mesmo com um papel diferente, mesmo em um mundo secularizado, a comunidade dos que guardam o testemunho de Jesus e creem no Deus que Ele chama de Pai ainda tem algo a dizer nestes tempos tão conturbados, que são os nossos. 
Maria Clara Lucchetti Bingemer 

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