sexta-feira, 29 de março de 2013

Sexta-Feira Santa


Você também é discípulo/a deste homem?
(Is 52,13-53,12; Sl 30/31; Hb 4,14-15; 5,7-9; Jo 18,1-19,42)
O comércio não sabe o que fazer com esta sexta-feira, e um clima estranho envolve a todos/as. Até as pessoas mais indiferentes intuem que algo profundamente significativo aconteceu e acontece nesse dia. Tudo é diferente, inclusive a liturgia. Em nenhuma parte do mundo se celebra missa, e começamos o encontro ajoelhados ou prostrados, sem canto, sem sinal da cruz. Uma multidão, talvez maior do que na festa da páscoa, se reúne nos templos. Em geral, são pessoas experimentadas na dor. Todos intuem que nesta sexta-feira se revela o que há de mais profundo no ser humano e de mais belo no coração de Deus. O mistério do mal atinge sua força mais terrível. A humanização de Deus atinge seu ponto mais luminoso. A entrega do ser humano a Deus se expressa em seu grau máximo. O amor a Deus brilha na entrega despojada e solidária a serviço do ser humano despojado de poder e de honra.
“Vejam o meu servo!”
Na vida de Jesus de Nazaré, o Messias e Filho de Deus, se revela de forma pessoal uma experiência universal. Isaías expressou com uma profundidade inigualável a opção e o destino daqueles/as que mantém a fidelidade em situações de risco e de controvérsia; daqueles/as que procuram manter sua identidade de Servidores/as de Deus e de relativização, venha o que vier; daqueles/as que não aceitam acender uma vela a Deus e outra aos diabólicos interesses pessoais ou de grupo.
Assim como todos os Servos e apesar das pinturas e imagens que querem desmenti-lo, Jesus não tinha aparência e beleza que pudessem atrair os olhares. Era como uma raíz em terra seca, como um indivíduo do qual escondemos o rosto. “Não parecia gente, tinha perdido a aparência humana.” Como diz o salmista, provocava nojo aos vizinhos e terror aos amigos. Foi esquecido como um morto ou como um objeto perdido. Não parecia humano e muito menos divino. Fez orações e súplicas em alta voz e com lágrimas e foi cortado da terra dos vivos.
Mas sua vida se tornou semente. Nós é que estávamos enganados e perdidos. O Servo fiel não perde sua vida, pois a doa livremente, e por isso prolonga sua existência. Ele carrega nas costas os pecados e sofrimentos de muitos, e por isso a luz brilha em seu rosto. Ele confia seu destino nas mãos daquele que é o segredo da vida, e assim vive naqueles/as que servem. Eis o rosto de Deus: é um rosto de Servo. Eis o ser humano realizado em seu máximo grau: chegou à maturidade e à estatura de irmão e irmã. Eis o caminho para chegar a Deus e à humanização.
“Eles mesmos não entraram no palácio para não se contaminarem.”
Conhecemos as tramas, traições e intrigas que levaram à prisão, condenação, tortura e morte de Jesus. São opções e atitudes que revelam o mistério do mal e sua força nas pessoas e nas estruturas. Um mal nada abstrato, que se expressa nos costumes, nas leis, nos sistemas econômicos, nos medos, em todas as formas de ambição. Um mal que assume feições de cinismo, como quando as autoridades religiosas, tendo decidido matar Jesus, não entram no palácio do governador para não se tornrarem impuras. As ditaduras de todos os quadrantes criam leis iníquas que as justificam e purificam.
Aqueles/as que, consentindo ou não, fazem dos seus interesses e ambições um ídolo intocável, cedo ou tarde acabam identificando como diabólicos e ameaçadores todas as pessoas, grupos ou movimentos que pensam diferente e propõem uma ordem alternativa. E criam estratégias para eliminá-los sem sujar as mãos, dentro dos quadros da lei, sem se tornarem impuros. Quantas leis – escritas nos códigos ou na alma dos povos – não passam de artifícios para disfarçar o domínio e a violência dos mais fortes sobre os mais fracos, na tentativa de empedir que vivam plenamente?
É este mistério inexplicável da iniquidade que faz com que a noite venha às três horas da tarde. Uma iniquidade que começa não se sabe bem onde e se expressa na afirmação de si mesmo/a à custa dos outros, na busca sem fim de vantagens, no desprezo de quem é diferente, no fechamento a toda e qualquer mudança, no uso do poder cultural e religioso para abusar de menores, enfim: na defesa da ordem desordenada que protege os vencedores e poderosos. Descrevendo este dinamismo maldito nos fere, o salmista diz: “Eis que na culpa fui gerado, no pecado minha mãe me concebeu.”
 “Eis o homem!”
Diante das autoridades, Jesus não parece disposto a debater nem se defender. Ele tem cosciência de que nasceu e veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para tornar palpável e digno de crédito o amor fiel de Deus pelas pessoas negadas em sua dignidade. Pilatos manda torturá-lo, transforma-o numa paródia de líder e o apresenta ao povo: “Eis o homem!”
Esta é mais que a apresentação de um homem procurado pelas forças da ordem. Fixemos o olhar nesse personagem que realizou em grau pleno a vocação de todo ser humano. Não, o ser humano não é chamado apenas a sofrer e padecer, nem essencialmente a gozar e mandar. Em Jesus descobrimos que a pessoa humana atinge sua plenitude quando não recua no propósito de dar a vida, quando não abre mão da solidariedade com as pessoas negadas em sua verdade e em sua dignidade. “Eis o homem!”
O ser humano maduro não é o amigo de César, que age sem autonomia e sem autoridade e que ordena por medo, mas a pessoa que transcende os interesses individuais e institucionais e se abre ao horizonte da vontade de Deus e do seu reino. Por isso, do alto da cruz, Jesus diz que no seu corpo doado inteiramente a criação chega ao seu ápice: “Tudo está consumado.” Nele Deus chega ao máximo de si mesmo e se supera no esvaziamento. Nele o ser humano vence todos os limites e se faz dom e semente fecunda nas mãos de Deus e na terra dos Homens.
“A quem procurais?”
Esta pergunta dirigida por Jesus aos soldados que o procuravam retoma a pergunta feita aos primeiros discípulos: “O que é que vocês estão procurando?” (Jo 1,38). E aqui ela se dirige a todos/as nós, reunidos/as para celebrar a paixão de Jesus Cristo e acolher sua cruz. O que nós esperamos de Jesus e o que buscamos nesta celebração? Consolação nos sofrimentos inexplicáveis? Confirmação dos nossos interesses e projetos? Inteligência para conciliar a submissão à lógica do ‘cada um pra si’?
Numa igreja que nasce e se edifica sobre a fé em Jesus crucificado, só é licito buscar forças para caminhar na fé e perseverar no seguimento de Jesus, amigo e servidor da humanidade. Do alto da cruz ele se dirige a Maria e lhe confia João: “Mulher, eis aí teu filho!” E, dirigindo-se ao discípulo, diz: “Eis aí tua mãe!” Aos pés da cruz  nasce uma nova família, não mais presa aos laços de sangue ou de interesses mesquinhos, mas aberta e servidora de todos os humanos seres que querem viver e promover a vida.
É por isso que nesta sexta-feira santa nossa oração se abre numa universalidade que não deveria estar ausente de nenhuma celebração: rezamos pela Igreja, pelo papa e todos os ministros, mas também pela união das diferentes Igrejas cristãs, pelos judeus e pelos não cristãos, pelos que não acreditam em nada, pelas autoridades e pela humanidade sofredora. Diante do crucificado, filho da humanidade e filho de Deus, aprendemos que os muros e fronteiras religiosas, políticas, econômicas e culturais não fazem o menor sentido.
“Lá havia um jardim, no qual ele entrou com os seus discípulos.”
Num jardim Jesus foi preso e num jardim foi sepultado. Estes dois jardins nos levam a um outro, aquele do Édem. Esse Jesus que nos ama até o fim é o novo Adão, o ser humano que não caiu em tentação porque aceitou carregar o peso dos irmãos, servindo assim unicamente a Deus. A cruz, sendo expressão da fidelidade de Deus e da doação maior do ser humano, é a nova árvore da vida, alimento perene e incomparável do qual todos/as nos podemos servir abundantemente. Maria é a nova Eva, a mãe dos viventes e sobreviventes.
Na caminhada para o Calvário, Pedro havia sido interrogado por uma empregada do Sumo Sacerdote: “Não pertences tu também aos discípulos deste homem?” Sem disposição e coragem para assumir riscos, Pedro negou. Mas, aos pés da cruz, há uma pequena comunidade corajosa e perseverante. O discípulo amado nos representa na nova família que nasce do Espírito derramado, à qual foi entregue a missão de renovar a criação.  Diante da prova da proximidade e do amor de Deus, respondamos com palavras e com a vida: “Sim, eu sou discípulo/a deste homem!” E aproximemo-nos e adoremos este que nos ama sem medida com um beijo que não é de traição, mas de agradecido reconhecimento.
Pe. Itacir Brassiani msf

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