terça-feira, 30 de abril de 2013

1° de maio


Dia dos trabalhadores e trabalhadoras

Teconologia do voo compartilhado: o primeiro pato que levanta voo abre passagem para o segundo, que abre caminho para o terceiro, e a energia do terceiro ergue o quarto, que juda o quinto, e o impulso do quinto empurra o sexto, que empresta vento ao sétimo...

Quando o pato que está encabeçando a fileira se cansa, desce para o final da fila e deixa seu lugar para outro, que sobe ao vértice desse ‘V’ que os patos desenham no ar. Todos vão em rodízio, na frente e atrás, e nenhum deles se acha superpato por voar adiante, nem subpato por vir depois...

(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 147)

Fatos & Personagens: As maes da Praça de Maio


As rondas da memória

Na tarde do dia 30 de abril de 1977, se reuniram pela primeira vez as catorze mães dos filhos desaparecidos. Desde então buscaram juntas, juntas bateram nas portas que não se abriam. “Todas por todas!”, diziam. “Todos/as são nossos/as filhos/as!”

Milhares e milhares de filhos/as tinham sido devorados/as pela ditadura militar argentina e mais de quinhentas crianças haviam sido distribuídas como prendas de guerra, e nenhuma palavra era dita pelos jornais, pelas rádios, pelos canais de televisão.

Alguns dias depois da primeira reunião, três daquelas mães – Azucena Villaflor, Esther Ballestrino e Maria Eugenia Ponce – também desapareceram, como seus filhos/as, e como eles/as foram torturadas e assassinadas.

Mas as caminhadas das quintas-feiras, ninguém mais conseguiu parar. Os lenços brancos davam voltas e mais voltas pela Plaza de Mayo e pelo mapa do mundo.

(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 144)

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Fatos & Personagens: José Benedito Cottolengo


José Benedito Cottolengo

No calendário da igreja ambrosiana é recordado hoje José Benedito Cottolengo, padre e fundador das Casas da Divina Providência. Nascido em Bra, região de Cuneo (Itália), José Cottolengo, como tantos outrosjovens do seu tempo que aspiravam ao sacerdócio, enfrentou muitas dificuldades para estudar, especialmente por causa do fechamento dos seminários no período que se seguiu à revolução francesa.

Apesar disso, José Cottolengo conseguiu ser ordenado presbítero aos vinte e cinco anos de idade, em 1811, em Turim. Inicialmente, dedicou-se intensamente aos estudos teológicos, integrando-se numa congregação local de padres teólogos. Mas sua verdadeira vocação era outra...

Empenhado longamente num repensamento silencioso e difícil da estrada que percorria, José se encontrou com a dramática situação de uma pessoa doente que nenhum hospital, por diversos motivos, queria ou podia acolher. Assim, começou a criar, em 1827, um espaço de acolhida para todo tipo de doentes excluídos da sociedade: pobres e órfãos, doentes mentais e deficientes físicos.

Nos últimos quinze anos da sua vida, José Benedito deu curso a uma impressionante série de iniciativas caritativas, fundando Casas da Divina Providência e dando vida a uma Congregação de padres, irmãs e leigos/as dedicados ao apoio aos doentes mais marginalizados da sociedade. Ele foi um verdadeiro ‘gênio do bem’, como o definiu o papa Pio IX, pois revelou como a multiforme sabedoria de uma pessoa de fé pode encontrar respostas aos apelos lançados pela necessidade gritante dos últimos e dos abandonados.

Cottolengo morreu depois de ter contraído tifo, no dia 30 de abril de 1842. No momento da sua morte, as Casas da Divina Providência por ele fundadas haviam acolhido e tratado mais de seis mil e quinhentos doentes.

(Comunità de Bose, Il libro dei testimoni, San Paolo, Milano, 2002, p. 217)

Festa de São José Operário


Na carpintaria de José, Deus se fez trabalhador!
(Gn 1,26-2,3; Sl 88/89; Col 3,14-24; Mt 13,54-58)
Um princípio do ensino social da Igreja afirma que “só o trabalho produz riqueza”. Por conseguinte, os bens de produção ou de consumo que circulam no mundo trazem a impressão digital dos trabalhadores e trabalhadoras, e o seu acúnulo nas mãos de elite reduzida significa expropriação ou roubo. Celebrar a importância do trabalho é reconhecer a dignidade dos trablhadores e trabalhadoras e reivindicar seu direito de participar da mesa que suas mãos preparam. Se na gruta de Belém a Palavra se faz carne, na carpintaria de José, o próprio Deus se faz trabalhador.
“Confirma a obra das nossas mãos...”
Não podemos cair numa visão romântica do trabalho humano. Para muitas pessoas o trabalho real tem sabor de lei imposta, lembra a corrente que prende o ecravo, deixa a sensação de vazio, disciplina e submete o corpo e a mente. Para muita gente, o trabalho é c omo a experiência de uma mulher que, depois de nove meses de uma gestação difícil, não vê o rosto daquele/a que deu à luz. São muitos/as os trabalhadores/as que sequer podem comer aquilo que o suor dos seus corpos produzem.
Outros/as tantos/as experienciam o trabalho como uma disciplina à qual se submetem em vista do resultado monetário ou do valor daquilo que produzem. Trabalham porque este é o único modo que lhes resta para conseguir o dinheiro que necessitam para suprir suas necessidades básicas ou seus caprichos. Assim que chega a idade legal que permite a aposentadoria, ou se a sorte lotérica porventura bater à porta, abandonam imediatamente toda forma de trabalho.
Como cristãos, entendemos o trabalho como uma forma de participar da obra criadora e redentora de Deus. Com o trabalho não substituímos a natureza, mas a acolhemos e colaboramos com ela, dando-lhe novas formas, produzindo novos bens de consumo ou culturais. Mas o resultado deste empenho humano – corporal mas também emocional, intelectual e espiritual – pertence aos que trabalham e à humanidade inteira. Deus confirma o trabalho de nossas mãos dando-lhe uma destinação comum. E para ter um destino comum, começa por ser prioritariamente daqueles que têm mais necessidade.
“Ensina a contar os nossos dias...”
Há quem se identifique de modo reducionista com o trabalho que faz, a ponto de apresentar sua profissão como se fosse a própria identidade. “O que você é?” “Sou um/a agricultor/a, um/a arquiteto/a, um/a professor/a...” E há também quem  fique inquieto/a e ansioso/a quando não está trabalhando. Têm a sensação de estar deslocado/a, perdido/a, de ser inútil. Doença e aposentadoria são ameaças que exorcizam apressadamente. Para estas pessoas, o descanso semanal só tem sentido como reposição de energias para voltar ao trabalho.
“Aprender a contar nossos dias”, como pede o salmista, significa viver um sereno equilíbrio entre trabalho e descanso. Aliás, o trabalho está em função da vida, de lhe conferir sentido, de produzir bens que são usufruídos e repartidos nas festas, na confraternização, ou então doados àqueles que não podem trabalhar ou não conseguem trabalho. O trabalho está em função do descanso, assim como os seis dias da criação adquirem seu pleno sentido no sétimo dia, o dia do descanso do Criador.
“Contar bem os nossos dias” significa também saber parar e dar tempo para estar com quem amamos ou precisa de nós. E saber quando pedir aposentadoria e se dedicar a atividades mais realizadoras e comunitárias. Ou ainda: dar-se ao prazer de relaxar e contemplar – como o próprio Deus fez no sétimo dia! – a beleza da obra realizada e o misterioso dinamismo que a conduz a um bom fim. Como é difícil aprender a contar os nossos dias...
“Ensinava as pessoas na sinagoga...”
Com imaginação, visualizemos Jesus entrando nas sinagogas da Galiléia. Na região, ele era conhecido pelo trabalho que exercia: como seu pai José, era carpinteiro e assim ganhava a vida. Mas esse trabalho, mesmo tendo uma importância inquestionável, não representava um limite para sua vida de pregador. Agora ele se apresenta como missionário itinerante, ensinando uma doutrina que ele chamava de Boa Notícia: o tempo de espera terminou e o reinado de Deus está chegando gratuitamente como vida em abundância para todos. Ele ensinava uma ‘nova lição’...
Mateus nos diz que os conterrâneos e familiares de Jesus estavam admirados, como também as multidões que testemunharam a cura de dois cegos e um mudo (cf. Mt 9,34), ou como quando ameaçou e expulsou o mau espírito que impedia que um homem enxergasse e falasse (cf. Mt 12,23). As multidões se maravilhavam com as palavras e as ações de Jesus, e não conseguiam reduzi-lo à profissão humilde e marginal do seu pai. Ele sabia exercer a profissão, mas sabia muito mais...
Os conterrâneos seus ficaram também desconcertados. Primeiro, pela beleza e relevância daquilo que anunciava e ensinava. Depois, pela condição de humilde trabalhador, filho um simples carpinteiro e, como eles, habitante de uma região desprezada. A missão que Jesus desenvolvia estava acima do que era esperado para o status de sua família. “De onde lhe vem esta sabedoria? Este homem não é o filho do carpinteiro?...” A questão mais difícil não era, como é para nós, saber que o Filho de Deus foi carpinteiro, mas aceitar que um carpinteiro comum seja o Filho de Deus!
 “E ficaram escandalizados por causa de Jesus...”
O escândalo que Jesus provocou na Galiléia chega ao nosso tempo. Muita gente ainda prefere imaginar José com lírio e não com ferramentas de trabalho nas mãos. E gostam de contemplar Jesus trazendo nas mãos um pergaminho ou um cajado, mas jamais uma foice ou uma enxada! E o mundo viria abaixo se alguém ousasse apresentar José e Jesus numa manifestação pela redução da jornada de trabalho ou contra a flexibilização das leis trabalhistas...
O motivo principal do escândalo é o próprio Deus: para Deus, a encarnação não é uma possibilidade mas uma necessidade. O amor procura formas concretas para se expressar. Os princípios gerais não bastam. Como ensina o amável poeta e profeta Dom Pedro: na gruta de Belém Deus se faz carne; na carpintaria de José, Deus se faz classe. Um homem que trabalha com as mãos é escolhido como pai e educador do Filho de Deus, também ele trabalhador.
A festa de hoje é oportunidade e desafio para que a nossa fé passe dos princípios gerais e intransitivos aos compromissos práticos e arriscados: colocar-se ao lado dos trabalhadores e trabalhadoras em suas justas lutas; empenhar-se na humanização do trabalho, especialmente daqueles que ainda hoje degradam quem os faz; comprometer-se com o aumento das vagas de trabalho; defender a criação de vagas de trabalho para os idosos e jovens; lutar contra a felxibilização dos direitos trabalhistas...
“Eu entrego tudo a vocês...”
Paulo nos recomenda: “E tudo o que vocês fizerem através de palavras ou ações, o façam em nome do Senhor Jesus, dando graças a Deus por meio dele... Tudo o que vocês fizerem, façam de coração, como quem obedece ao Senhor e não aos homens” (Col 3,17.23). Evidentemente, não se trata de um sentimento piedoso ou de uma resignação ao peso do trabalho explorado. Paulo insiste numa atitude fundamental: fazer do trabalho a expressão do melhor de nós mesmos/as e um meio de criar vínculos solidários entre os homens e mulheres.
A celebração de hoje começa proclamando que aqueles que temem o Senhor e seguem seus caminhos são felizes e comerão do fruto de suas mãos. E termina com a recomendação de Paulo para que façamos tudo – inclusive o trabalho que escolhemos ou que nos sobrou – em nome do Senhor. Façamos isso também ritualmente: no pão e no vinho, ‘frutos da terra e do trabalho do homem e da mulher’; apresentemos ao Senhor as dores, cores e os sabores que nele experimentamos; e também a vida das pessoas que exercem um trabalho pouco ou nada valorizado, e daquelas que não conseguem uma vaga.
Cresça em nós a consciência de que Deus entregou o mundo em nossas mãos. Ele nos fez e quis que fôssemos seu retrato mais perfeito. Ele imaginou o mundo como um belo jardim, farto, plural e harmônico, nos dotou de inteligência e capacidade de cuidar, e nos colocou como seus representantes e executivos/as na tarefa de guardar, cultivar, multiplicar e distribuir os frutos da terra mediante o trabalho. Bendito seja Deus para sempre!
Pe. Itacir Brassiani msf

O testemunho evangélico das Religiosas dos Estados Unidos da América


Contaminadas pelo feminismo radical?

As tensões da cúria romana com a Conferência das Religiosas dos Estados Unidos continua na pauta da Sede Apostólica e da imprensa leiga. Os homens da cúria estão convictos de que as religiosas norte-americanas foram irremediavelmente contagiadas pelo vírus do feminismo radical...

E eu pergunto: esses homens da cúria, assim como grande parte da hierarquia da Igreja, exclusivamente masculina, estão contaminados de que? Não estão tomados dos pés à cabeça pelo mortífero vírus do machismo e do patriarcalismo? Ou do medo da verdade e da liberdade, que acaba levando à incorência e à escravidão? Como os líderes religiosos acusados duramente por Jesus, não terão eles sequestrado a cátedra de Jesus, recusando-se a entrar no Reino e impedindo que outros/as sejam livres?

Expresso meu apreço e minha solidariedade s essas bravas irmãs que, não obstante as contradições que habitam todos/as os/as discípulos/as de Jesus, ousam tornar operoso e crítico o amor professado a Jesus Cristo, acolhendo aquilo que ele disse a Pedro: ‘Se tu me amas, cuida do meu rebanho!’ E o faço traduzindo e publicando esta versão feminina e atual das bem-aventuranças gritadas por Jesus.

Bem-aventuradas aquelas que trabalham para construir o pão da autonomia, da igualdade e da solidariedade; juntas, elas alimentarão a terra!
Ai daquelas que se deixam facilmente alimentar das migalhas que caem das mesas sagradas; elas paralisam o amadurecimento da Igreja!
Bem-aventuradas as mulheres apaixonadas pelo Evangelho de Jesus Cristo, que têm a coragem de ser-lhe fiéis não apenas em palavras e pensamentos, mas em ação e verdade.
Ai daquelas que dissociam seus pensamentos, do seu coração e das suas ações, pois acabam escurecendo a luz do Evangelho.
Ai daquelas que calam ‘para viver em paz’, pois elas ajudam a prolongar a opressão.
Bem-aventuradas as vítimas do poder patriarcal que encontram na violência, pois elas descobrem a força própria dos/as construtores/as da Paz.
Bem-aventuradas vocês, mulheres desprezadas por terem tomado a palavra, pois pela tenacidade de vocês a libertação vai sendo construída.
Infelizes serão vocês se deixarem-se seduzir por um discurso que as despojará irremediavelmente do sentido da luta. (Revista Spiritus 207, p. 233-234)

Itacir Brassiani msf

domingo, 28 de abril de 2013

Fatos & Personagens: Catarina de Sena


Catarina de Sena

No calendário romano e no calendário anglicano, o dia 29 de abril propõe a memória de Santa Catarina de Sena, consagrada da terceira ordem sodminicana e doutora da fé.

Catarina Benincasa nasceu em Sena em 1347, a penúltima de 25 filhas. Demonstrando desde pequena uma inclinação à vida interior, aos 15 anos se consagrou como terciária dominicana, atraída pela atividade caritativa em favor dos pobres e doentes. Seu amor por Cristo, alimentando por un vivo e constante diálogo interior e pela radical vida evangélica que levava, atraíram um pequeno grupo de discípulos che a seguiam para participar dos seus dons e do seu ministério.

Catarina dedicou toda a sua vida à causa da paz e da unidade, atuando decididamente – fato nada ordinário em se tratando de uma jovem mulher daquele tempo – pela reconciliação da cidade dividida e em luta e pela reforma da Igreja, ferida pela corrupção e pelo cisma.

Catarina visitava os pobres para confortá-los e os poderosos para indicar-lhes a via da reconciliação exigida pelo Evangelho. Manteve uma intensa correspondncia postal, graças à qual ampliava seus conselhos espirituais a todos aqueles que lhe pediam uma palavra e, no seu Diálogo sobre a divina providência, nos deixou um cântico de amor de rara beleza.

Catarina foi proclamada doutora da Igreja por Paulo VI, em 1968, título que lhe é reconhecido também pela Igreja anglicana. Morreu no dia 29 de abril  de 1380 e, apesar de ter vivido um breve lapso de tempo, com sua vida nos deixou como legado uma das mais belas páginas da espiritualidade cristã. Eis um fragmento, pequeno mas suficiente para nos dar a conhecer a profundidade da sua experiência e do seu saber.


Agradeço-te, Pai Eterno, porque não desprezaste esta Tua criatura e os seus desejos.
Tu és a luz, eu sou a escuridão. Tu és a vida, eu sou a morte. Tu és o médico, eu sou a enferma. Tu és a pureza, eu sou a pecadora. Tu és o infinito, eu sou a finitude. Tu és a sabedoria, eu sou a ignorância.
Apesar deste e de outros infinitos males que existem em mim, a Tua sabedoria, a Tua bondade, a Tua clemência, o Teu infinito bem, não me desprezaram. Até me luminaste com a Tua luz.  Na Tua sabedoria conheci a verdade. Na Tua clemência encontrei a caridade, por Ti e pelos homens. Quem Te obrigou a realizar tudo isso? Não as minhas virtudes, mas o Teu amor.
Que o Teu conhecimento ilumine a minha inteligência pela fé e que eu compreenda a verdade que me revelaste. Concede-me que na minha memória conserve a recordação dos Teus benefícios; que a minha vontade arda na chama do Teu amor e que essa chama faça brotar sangue do meu corpo.
No sangue e na obediência eu abrirei as portas do céu. Peço o mesmo para todos os homens, em geral e em particular, bem como para a hierarquia da Santa Igreja. Confesso que me amaste antes que eu existisse e me amas inefavelmente, como que enlouquecido pela Tua criatura.
Ó Trindade eterna, ó divindade! A Tua natureza divina valorizou o preço do sangue de Jesus. És um mar profundo. Quanto mais nele penetro, mais encontro; quanto mais encontro, mais Te procuro. E quando o homem se sacia no Teu abismo, mais Te deseja; está sempre com fome, com sede de Ti.Trindade eterna, desejo ver-Te na luz com a Tua luz!
Ó Trindade eterna, fogo e abismo de amor! Dissolve hoje mesmo este meu corpo! O conhecimento que me deste, no Teu Filho, obriga-me a suspirar pela morte, a entregar a minha vida para a glória e louvor do Teu nome, pois no meu espírito eu experimentei, na tua luz, o teu abismo e a beleza do homem.
Olhando-me em Ti, vi que sou Tua imagem. Deste-me o Teu poder, Pai eterno;
pela inteligência deste-me da Tua sabedoria, própria do Filho; o Espírito Santo, que procede de Ti e do Filho, concedeu-me a vontade com que sou capaz de amar.
Tu, Trindade Eterna, és o Criador, eu a criatura. Na redenção, ao recriar-me no sangue de Teu Filho, ó Pai, mostraste que estás apaixonado pela criatura. Ó divindade eterna, que mais podias conceder-me além de Ti mesmo?
És um fogo que sempre arde e nunca se consome;és um fogo que destrói, no seu calor, o egoísmo humano; és um fogo que aquece toda a frieza, que ilumina. Com a Tua luz fizeste-me conhecer a Tua verdade. És uma luz superior a toda a luz. Dás uma iluminação abundante e perfeita à inteligência, aclarando-a na fé. Por meio dela, eu vejo que a minha alma possui a vida. Nessa luz eu vejo a Tua luz.

(Comunità de Bose, Il libro dei testimoni, San Paolo, Milano, 2002, p. 215-216)

sábado, 27 de abril de 2013

Solidariedade com a República Centro-africana


"Minha própria vinha eu não posso cuidar…"

“Sou morena, mas sou formosa, mulheres de Jerusalém!...  Não me olheis com desdém por eu ser morena... Meus irmãos irritaram-se comigo e me puseram de guardiã das vinhas, mas minha própria vinha eu não pude guardar...” (Ct 1,5-6).

Estas frases do poema bíblico conhecido como Cântico dos Cânticos foi o fio de inspiração para o encontro de oração organizado mensalmente pelos Promotores de Justiça, Paz e Integridade da Criação (PJPIC), na Igreja São Marcelo, em Roma, na última sexta-feira (26.04.2013).  A realidade concreta proposta como matéria de oração foi a vida do povo da República Centro-africana.

O que está acontececendo na República Centro-africana?

A República Centro-africana tem uma população de quase quatro milhões e meio de habitantes e está localizada no centro geográfico do continente africano. É um país rico em recursos naturais (especialmente ouro, urânio e diamante), mas é um dos mais pobres do continente. A maioria da população é cristã de várias confissões (80%) e no norte predomina a presença muçulmana.

A República Centro-africana conquistou sua independência política da França em 1960. Mas, como aconteceu com a maioria das ex-colônias, a influência francesa permaneceu muito forte nas décadas seguintes. Em 2003 chegou ao poder o presidente François Bozizé. Em 2007 as forças rebeldes que combatiam o governo central de Bangui, antes dispersas, se aliaram e se concentraram na região norte do país. Isso representou um ato de rebelião contra o presidente Bozizé, acusado de não respeitar o acordo de paz assinado com as forças rebeldes.

No mês de dezembro de 2012 as milícias rebeldes começaram a avançar em direção à capital e conquistaram algumas cidades estratégicas para o comércio do ouro e do diamante. Em março de 2013 as forças rebeldes entraram na capital e depuseram o presidente Bozizé, que fugiu do país. O roubo e a criminalidade em geral tomou conta do país e provocou caos por todo lado. Mais de trinta e sete mil cidadãos tiveram que se refugiar nos países vizinhos.

A tristeza e a dor da África negra

John Baur comenta: “A mulher negra do Cântico dos Cânticos grita de alegria. Mas também grita de angústia quando perde o esposo. Nos últimos anos, parece que o rosto alegre do povo africano foi se transformando no rosto triste da mulher negra que chora tantos filhos/as vítimas da injustiça, da exploração e da opressão, filhos/as mortos pela fome ou pelas guerras fratricidas. Mas o Cântico termina com a fé invencível da esposa: ‘O amor é mais forte que a morte!’”

Enquanto nós vivemos a alegria do tempo pascal, celebração da vitória da vida sobre o poder da injustiça e da morte, o povo centro-africano é assaltado, violentado, abandonado e arrasapo. Até parece que o sangue deles importa pouco ou vale menos; o que vale mesmo são suas riquezas naturais.  A África inteira foi transformada num teatro de guerra, num continente consumidor de armas, para o lucro de quem as fabrica e comercializa.

A indiferença mata!

Rezar pelo povo da República Centro-africana pode parecer pouco. Mas calar e fazer de conta que não está acontecendo nada é pior ainda.  Num mundo no qual circulam diariamente milhões de informações, o silêncio e a inércia diante daquilo que acontece com os povos africanos é um pecado mais que mortal. Que nossas comunidades cristãs e nossas celebrações sejam caixas de ressonância do clamor dos povos negros e laboratórios onde se desenvolvam iniciativas solidárias e libertadoras.

Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Fatos & Personagens: Avvakum


Avvakum e os mártires ‘velhos crentes’

No dia 14 de abril de 1682 Avvakun, histórico líder dos c ristãos russos conhecidos como ‘velhos crentes’ sofreu o martírio.

Na Igreja russa do século XVII, sacudida pela grave decadência moral do clero e animada por um profundo desejo religioso do povo, sucederam-se diversas tentativas de reforma espiritual, que às vezes provocaram confrontos violentos tanto entre o povo como com a hierarquia. Com a eleição do patriarca Nikon, posteriormente condenado pelo Concílio de Moscou de 1666, foram introduzidas reformas litúrgicas e disciplinares inspiradas na tradição grega que acabaram mexendo na vida cotidiana dos cristãos.

Avvakum e seus companheiros organizaram uma reação muito forte contra as reformas, chegando a expressões de fanatismo religioso. Por causa da obstinação com que se opuseram, foram condenados pelo Concílio de Moscou de 1666. Esse fato deu origem a um grande cisma no seio da Igreja ortodoxa russa. Até hoje os seguidores da ‘antiga fé’ são numerosos em toda a Rússia.

De 1667 a 1971, quando o Sínodo de Moscou suspendeu a condenação contra os costumes dos ‘velhos crentes’, estes soferem uma feroz perseguição por parte das autoridades políticas, às vezes apoiadas pela hierarquia eclesiástica de Moscou.

Avvakum nos legou um livro (Vita) que é documento excepcional e nos permite compreender a grandeza e a miséria de pessoas que, de qualquer modo, foram grandes testemunhas, dispostas a morrer por aquela que consideravam a genuína fé cristã. Por isso, é nosso dever recordar em nossa oração os ‘velhos crentes’, perseguidos e mortos por causa do ódio contra uma específica expressão religiosa.

(Comunità de Bose, Il libro dei testimoni, San Paolo, Milano, 2002, p. 212)

Fatos & Personagens: Garcia Marquez


Cem anos de solidão

“Atrevo-me a pensar que é esta realidade descomunal, e não apenas a sua expressão literária, o que este ano (1982) mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras.

Uma realidade que não é a do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável pleno de infelicidade e de beleza, do qual este colombiano errante e nostálgico não é mais que uma cifra assianalada pela sorte.

Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque o desafio maior para nós foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar acreditável nossa vida. Este é, amigos, o nó da nossa solidão.

A interpretação da nossa realidade com esquemas alheios só contribuiu para fazer-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez manos livres, cada vez mais solitários...

Não, a violência e a dor desmesuradas de nossa história são o resultado de injustiças seculares e amarguras sem conta, e não de uma confabulação urdida a três mil léguas da nossa casa.

Mas muitos dirigentes e pensadores europeus acreditaram nisso, com o infantilismo dos avós que esqueceram das loucuras frutíferas de sua juventude, como se não fosse possível outro destino além de viver à mercê dos grandes donos do mundo.

Este é, amigos, o tamanho da nossa solidão.”

(Trecho do discurso de Gabriel García Marquez, ao receber o prêmio Nobel da literatura, em 1982)

(Eduardo Galeano, O século do vento, L&PM, 2010, p. 350-351)

quinta-feira, 25 de abril de 2013

5° Domingo da Pascoa


O amor fraterno é a meta e o método da missão.
(At 14,21-27; Sl 144/145; Ap 21,1-5; Jo 13,31-35)
(http://thumbs.dreamstime.com/thumblarge_158/1182446565kIJYqp.jpg)

No crepúsculo da vida seremos julgados pelo amor que tivermos vivido concretamente. Mas no alvorecer e no meio-dia da nossa existência, o verbo amar há de ser conjugado em todos os tempos e modos, inclusive no imperativo, mas especialmente no presente e no gerúndio. O testamento que Jesus nos deixa na Ceia e o testemunho corajoso das primeiras comunidades cristãs, nascidas da experiência da presença de Jesus ressuscitado e do amor espiritual, humano e político dos apóstolos, estão aí para que não esqueçamos disso. O amor aos irmãos e irmãs da comunidade e o amor da comunidade a todos os seres humanos e à criação inteira é a utopia que nos orienta e, ao mesmo tempo, o caminho que nos conduz a ela. Mas antes de ser substantivo e adjetivo, o amor é verbo, é ação e relação.
“Então vi um novo céu e uma nova terra.”
A meta que dá sentido à nossa vida e missão no mundo é o Reino de Deus. Os cristãos não podemos passar pelo mundo caminhando na ponta dos pés, como se tivéssemos  medo de tocar nele ou de nos contaminar. Também não podemos voltar o olhar a uma ilusória interioridade, como se não tivéssemos outra tarefa que a de salvar a própria alma. Não foi isso que Jesus Cristo fez, e não foi nisso que seus melhores discípulos e discípulas fizeram ao longo dos vinte séculos de história do cristianismo.
E nem mesmo as dificuldades – muitas e reais! – que enfrentamos um pouco em todas as latitudes podem nos levar a desistir da grande Utopia que nos faz caminhar. O terremoto da perseguição que se abatia sobre os cristãos no final no primeiro século não impediu que João visualizasse um novo céu e uma nova terra: uma cidade-sociedade santa, bela como noiva enfeitada para o casamento; a tenda da morada definitiva de Deus no coração da humanidade, que vem para enxugar nossas lágrimas.
Os cristãos precisamos pôr nossa inteligência em funcionamento para dar a esta imagem poética contornos e traços históricos e atuais: um mundo sem barreiras para os migrantes e no qual haja lugar para todos os seres humanos; um sistema econômico que respeite e preserve a criação; uma cultura amante da humanidade, da criatividade, da liberdade e da beleza; uma Igreja viva e regida pela igualdade, pela liberdade e pela comunhão; uma sociedade pautada pela justiça e pela igualdade...
“Exortaram-nos a permanecerem firmes na fé.”
A memória dos mártires de ontem e de hoje nos avisa que a tentativa de transformar o sonho em realidade pode trazer dificuldades. Depois de terem curado um paralítico e renegado qualquer mérito, Paulo e Barnabé são denunciados e perseguidos. Paulo éarrastado para fora da cidade de Listra e apedrejado, ficando quase morto. Mas isso não pode, de modo nenhum, desencorajar quem é chamado/a a ser discípulo/a e missionário/a de Jesus Cristo.
Infelizmente a peseguição não é coisa de um passado remoto. Do Iraque a El Salvador, da India ao Brasil, passando pela Nigéria, desempenhar a missão encarnando o amor e exigindo justiça no mundo concreto incomoda e se torna perigoso. Mas Paulo nos ensina que, mesmo perseguidos e ameaçados, precisamos continuar a luta, encorajando os discípulos e discípulas a permanecerem firmes na fé, partilhando com as comunidades os frutos da missão, organizando as comunidades e dotando-as de boas lideranças.
“Agora foi glorificado o Filho do Homem e Deus foi glorificado nele.”
Continua sendo verdade que o objetivo último da missão é glorificar a Deus. Mas precisamos entender bem em que consiste esta glória de Deus. No diálogo que tem com os discípulos ainda na mesa da Ceia, depois do Lava-pés e antes da traição e da paixão, Jesus diz que Deus é glorificado no amor incondicional à pessoa humana concreta. Deus é glorificado quando o Filho do Homem – todos os filhos e filhas da humanidade! – lavam os pés uns dos outros e dão a própria vida para que todos tenham vida.
Neste mesmo clima de lembrança do essencial deixado como testamento, demonstrando plena consciência do desfecho da própria vida e pensando no martírio que coroaria o amor intenso que marcou toda sua vida, Jesus declara que Deus o glorificará sem demora. Para ele, a cruz não é absurdo e ignomínia, mas a radicalização da solidariedade de Deus com a humanidade e a suprema doação de um ser humano a Deus. Por isso, é glorificação de Deus e revelação do ser humano. É nesta mesma linha que, um século mais tarde Santo Irineu afirmava que a glória de Deus é a vida do ser humano.
 “Esta é a morada de Deus com os homens...”
Para o cristão, amar não é uma opção condicionada, mas um imperativo absoluto. E, a partir da morte e ressurreição de Jesus, a medida do amor não somos mais nós mesmos. “Eu vos dou um novo mandamento. Amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amor-vos uns aos outros.” Mesmo sabendo que não estamos preparados para um tal amor, Jesus faz questão de sublinhar que este seu mandamento é novo, e que a medida que verifica o amor também é nova.
Em relação ao amor, Jesus é norma e caminho. No testamento que nos deixa, ele não pede nada para si, nem mesmo para o Pai. Pede amor ao próximo. Deus é fonte de amor pessoal e humano, é dom total de si que impulsiona em nós a capacidade de doação. Deus é amor e lealdade, e o que ele espera de nós é um amor que corresponda a este amor (cf. Jo 1,14-16). Amar é ser como ele se mostrou em Jesus Cristo: desenvolver e ativar plenamente a atitude de solidariedade e de serviço.
Prosseguindo o diálogo amistoso e mistagógico com seus discípulos, Jesus dirá: “Quem crê em mim fará as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas... Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,12.23). A comunidade dos discípulos e discípulas que amam verdadeiramente se torna aquela morada de Deus no mundo visualizada por João no seu Apocalipse. Este é o ponto de partida e o ponto de chegada da missão.
“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos.”
O amor que se doa sem medidas é o dinamismo e a natureza comuns ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. E é também o que realiza a nossa união com Deus. Sem amor fraterno e amor que impulsiona à missão não há verdadeira fé na ressurreição nem vida cristã autêntica. “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.” Este é o critério absoluto de reconhecimento dos cristãos. O amor ao próximo e ao distante é o estatuto e a identidade da comunidade cristã.
Quem não ama, não conhece a vida e não pode oferecê-la nem promovê-la. Da experiência do amor recebido de Deus em Jesus Cristo, nasce a força e a exigência de amar com a mesma intensidade. E Jesus envia seu Espírito para que o amor não seja apenas um imperativo absoluto, mas uma força que brota do mais profundo do nosso ser, dinamiza nosso corpo e nossa inteligência  e se torna realidade em múltiplas ações concretas, em todas as esferas da vida.
O amor abre as pessoas e Igrejas aos outros e suas necessidades: a lei que as rege deixa de ser a vantagem e o interesse próprio e passa a ser a dignidade e a necessidade do outro; o que vale não é conservar e prolongar a própria vida a qualquer custo, mas torná-la semente capaz de multiplicar e dar sabor à vida dos outros. Por isso, o que identifica o/a discípulo/a de Jesus é fundamentalmente o amor, e não a fidelidade ao Papa, a ortodoxia doutrinal ou o cumprimento minucioso dos ritos prescritos.
“Eis que eu faço novas todas as coisas!”
Precisamos vencer a velha e piedosa tentação de repetir e conservar os velhos hábitos e estruturas. O Cordeiro sentado no trono diz claramente: “Eis que eu faço novas todas as coisas!” E João vê um novo céu e uma nova terra. A vida cristã não é repetição e conservação, mas criação, liberdade e invenção. Nossa missão não se limita a anunciar que Jesus é o Filho de Deus, que ele foi morto e ressuscitou. A evangelização não é discurso, mas ação que liberta e promove vida abundante.
Jesus de Nazaré, Cordeiro de Deus e missionário do Pai, expressão viva e inequívoca do verbo amar. Lavando os pés dos discípulos, inclusive de Pedro e de Judas, tu nos perguntas se entendemos o que estás fazendo. Na verdade, ainda não entendemos tudo. Por isso nos aproximamos de novo da mesa da Palavra e do Pão. Queremos contemplar teu gesto e aprender tua lição. E queremos vivê-la nos caminhos do mundo e nos cenáculos da vida, fazendo-nos tudo para todos, vivendo e testemunhando tua Boa Notícia que anima os pobres, levanta os caídos e abre os olhos aos cegos. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf