Na
carpintaria de José, Deus se fez trabalhador!
(Gn 1,26-2,3; Sl 88/89; Col 3,14-24; Mt 13,54-58)
Um princípio do ensino social da Igreja afirma que “só
o trabalho produz riqueza”. Por conseguinte, os bens de produção ou de consumo
que circulam no mundo trazem a impressão digital dos trabalhadores e
trabalhadoras, e o seu acúnulo nas mãos de elite reduzida significa
expropriação ou roubo. Celebrar a importância do trabalho é reconhecer a
dignidade dos trablhadores e trabalhadoras e reivindicar seu direito de
participar da mesa que suas mãos preparam. Se na gruta de Belém a Palavra se
faz carne, na carpintaria de José, o próprio Deus se faz trabalhador.
“Confirma
a obra das nossas mãos...”
Não podemos cair numa visão romântica do trabalho
humano. Para muitas pessoas o trabalho real tem sabor de lei imposta, lembra a
corrente que prende o ecravo, deixa a sensação de vazio, disciplina e submete o
corpo e a mente. Para muita gente, o trabalho é c omo a experiência de uma
mulher que, depois de nove meses de uma gestação difícil, não vê o rosto
daquele/a que deu à luz. São muitos/as os trabalhadores/as que sequer podem
comer aquilo que o suor dos seus corpos produzem.
Outros/as tantos/as experienciam o trabalho como uma
disciplina à qual se submetem em vista do resultado monetário ou do valor
daquilo que produzem. Trabalham porque este é o único modo que lhes resta para
conseguir o dinheiro que necessitam para suprir suas necessidades básicas ou seus
caprichos. Assim que chega a idade legal que permite a aposentadoria, ou se a
sorte lotérica porventura bater à porta, abandonam imediatamente toda forma de
trabalho.
Como cristãos, entendemos o trabalho como uma forma de
participar da obra criadora e redentora de Deus. Com o trabalho não
substituímos a natureza, mas a acolhemos e colaboramos com ela, dando-lhe novas
formas, produzindo novos bens de consumo ou culturais. Mas o resultado deste
empenho humano – corporal mas também emocional, intelectual e espiritual –
pertence aos que trabalham e à humanidade inteira. Deus confirma o trabalho de
nossas mãos dando-lhe uma destinação comum. E para ter um destino comum, começa
por ser prioritariamente daqueles que têm mais necessidade.
“Ensina
a contar os nossos dias...”
Há quem se identifique de modo reducionista com o
trabalho que faz, a ponto de apresentar sua profissão como se fosse a própria
identidade. “O que você é?” “Sou um/a agricultor/a, um/a arquiteto/a, um/a
professor/a...” E há também quem fique
inquieto/a e ansioso/a quando não está trabalhando. Têm a sensação de estar
deslocado/a, perdido/a, de ser inútil. Doença e aposentadoria são ameaças que exorcizam
apressadamente. Para estas pessoas, o descanso semanal só tem sentido como
reposição de energias para voltar ao trabalho.
“Aprender a contar nossos dias”, como pede o salmista,
significa viver um sereno equilíbrio entre trabalho e descanso. Aliás, o
trabalho está em função da vida, de lhe conferir sentido, de produzir bens que
são usufruídos e repartidos nas festas, na confraternização, ou então doados àqueles
que não podem trabalhar ou não conseguem trabalho. O trabalho está em função do descanso, assim como os seis dias da
criação adquirem seu pleno sentido no sétimo dia, o dia do descanso do Criador.
“Contar bem os nossos dias” significa também saber
parar e dar tempo para estar com quem
amamos ou precisa de nós. E saber quando pedir aposentadoria e se dedicar a
atividades mais realizadoras e comunitárias. Ou ainda: dar-se ao prazer de
relaxar e contemplar – como o próprio Deus fez no sétimo dia! – a beleza da
obra realizada e o misterioso dinamismo que a conduz a um bom fim. Como é
difícil aprender a contar os nossos dias...
“Ensinava
as pessoas na sinagoga...”
Com imaginação, visualizemos Jesus entrando nas
sinagogas da Galiléia. Na região, ele era conhecido pelo trabalho que exercia:
como seu pai José, era carpinteiro e assim ganhava a vida. Mas esse trabalho,
mesmo tendo uma importância inquestionável, não representava um limite para sua
vida de pregador. Agora ele se apresenta como missionário itinerante, ensinando
uma doutrina que ele chamava de Boa Notícia:
o tempo de espera terminou e o reinado de Deus está chegando gratuitamente como
vida em abundância para todos. Ele ensinava uma ‘nova lição’...
Mateus nos diz que os conterrâneos e familiares de
Jesus estavam admirados, como também as multidões que testemunharam a cura de
dois cegos e um mudo (cf. Mt 9,34), ou como quando ameaçou e expulsou o mau
espírito que impedia que um homem enxergasse e falasse (cf. Mt 12,23). As multidões
se maravilhavam com as palavras e as ações de Jesus, e não conseguiam reduzi-lo
à profissão humilde e marginal do seu pai. Ele sabia exercer a profissão, mas
sabia muito mais...
Os conterrâneos seus ficaram também desconcertados.
Primeiro, pela beleza e relevância daquilo que anunciava e ensinava. Depois,
pela condição de humilde trabalhador, filho um simples carpinteiro e, como
eles, habitante de uma região desprezada. A missão que Jesus desenvolvia estava
acima do que era esperado para o status
de sua família. “De onde lhe vem esta sabedoria? Este homem não é o filho do
carpinteiro?...” A questão mais difícil
não era, como é para nós, saber que o Filho de Deus foi carpinteiro, mas aceitar
que um carpinteiro comum seja o Filho de Deus!
“E ficaram escandalizados por causa de
Jesus...”
O escândalo que Jesus provocou na Galiléia chega ao nosso
tempo. Muita gente ainda prefere imaginar José com lírio e não com ferramentas
de trabalho nas mãos. E gostam de contemplar Jesus trazendo nas mãos um
pergaminho ou um cajado, mas jamais uma foice ou uma enxada! E o mundo viria
abaixo se alguém ousasse apresentar José e Jesus numa manifestação pela redução
da jornada de trabalho ou contra a flexibilização das leis trabalhistas...
O motivo principal
do escândalo é o próprio Deus: para Deus, a
encarnação não é uma possibilidade mas uma necessidade. O amor procura formas
concretas para se expressar. Os princípios gerais não bastam. Como ensina o
amável poeta e profeta Dom Pedro: na gruta de Belém Deus se faz carne; na
carpintaria de José, Deus se faz classe. Um
homem que trabalha com as mãos é escolhido como pai e educador do Filho de
Deus, também ele trabalhador.
A festa de hoje é oportunidade e desafio para que a
nossa fé passe dos princípios gerais e intransitivos aos compromissos práticos
e arriscados: colocar-se ao lado dos trabalhadores e trabalhadoras em suas
justas lutas; empenhar-se na humanização do trabalho, especialmente daqueles
que ainda hoje degradam quem os faz; comprometer-se com o aumento das vagas de
trabalho; defender a criação de vagas de trabalho para os idosos e jovens; lutar
contra a felxibilização dos direitos trabalhistas...
“Eu
entrego tudo a vocês...”
Paulo nos recomenda: “E tudo o que vocês fizerem
através de palavras ou ações, o façam em nome do Senhor Jesus, dando graças a
Deus por meio dele... Tudo o que vocês fizerem, façam de coração, como quem
obedece ao Senhor e não aos homens” (Col 3,17.23). Evidentemente, não se trata
de um sentimento piedoso ou de uma resignação ao peso do trabalho explorado.
Paulo insiste numa atitude fundamental: fazer
do trabalho a expressão do melhor de nós mesmos/as e um meio de criar vínculos
solidários entre os homens e mulheres.
A celebração de hoje começa proclamando que aqueles
que temem o Senhor e seguem seus caminhos são felizes e comerão do fruto de
suas mãos. E termina com a recomendação de Paulo para que façamos tudo –
inclusive o trabalho que escolhemos ou que nos sobrou – em nome do Senhor.
Façamos isso também ritualmente: no pão e no vinho, ‘frutos da terra e do
trabalho do homem e da mulher’; apresentemos ao Senhor as dores, cores e os
sabores que nele experimentamos; e também a vida das pessoas que exercem um
trabalho pouco ou nada valorizado, e daquelas que não conseguem uma vaga.
Cresça em nós a consciência de que Deus entregou o
mundo em nossas mãos. Ele nos fez e quis que fôssemos seu retrato mais
perfeito. Ele imaginou o mundo como um belo jardim, farto, plural e harmônico,
nos dotou de inteligência e capacidade de cuidar, e nos colocou como seus
representantes e executivos/as na tarefa de guardar, cultivar, multiplicar e
distribuir os frutos da terra mediante o trabalho. Bendito seja Deus para
sempre!
Pe. Itacir Brassiani msf
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