sexta-feira, 31 de maio de 2013

Passeando às margens do Mar da Galiléia

Tu vieste às margens do lago...

Logo de manhã deixamos Nazaré e ganhamos a estrada. Nosso destino eram as margens do Lago de Genesaré, também conhecido por Mar da Galiléia. Trata-se de um imenso e magnífico lago de 35 km de comprimento por 18 km de largura e uma fundura média de 14 mt. Este riquíssimo reservatório de água doce está na região da Galiléia, a 200 mt abaixo do nível do mar! Deste lago é bombeada a água que abastece praticamente o país inteiro, mediante um complexo sistema nacional de águas.
Fomos conversando sobre o significado cristológico dessa região. Na verdade, Jesus viveu praticamente toda a sua vida por aqui. Segundo os evangelhos sinóticos, sua única viagem a Jerusalém, depois de ter alcançado reconhecimento como pregador e reformador, foi aquela que acabou levando-o ao tribunal e à cruz. De resto, quase toda sua ação profética ocorreu na Galiléia e arredores.
Passamos ao lado da cidade de Migdal, mas não paramos. Trata-se da famosa vila de Magdala, onde viveu Maria, conhecida como Maria Madalena, que tem um papel importantíssimo no evangelho segundo João. Nesta cidade recentemente foram encontrados restos da sinagoga mais antiga de que se tem conhecimento: data mais ou menos do ano 100 antes de Cristo.
Vista a partir da igreja das bem-aventuranças
“Bem-aventurado quem tem fome e sede de justiça...”
Nossa primeira parada foi no monte das bem-aventuranças. Ali, tendo a imensidão e a belza do mar diante de si, mas também um mar de gente sedenta de palavras de vida, Jesus pronunciou o pequeno discurso conhecido como Sermão da Montanha (Mt 5-7), do qual fazem parte as bem-aventuranças (Mt 5,1-12). É a pregação que traça a linha divisória entre o cristianismo nascente e o judaísmo.
A paisagem é magnífica, deslumbrante. Na frente, o mar tranquilo a perder de vista. Atrás, mais acima, as montanhas pedregosas. Ao redor, hoje, modernas plantações de frutas. E ali uma pequena igreja e uma moderna pousada, tudo circundado por jardins cuidadosamente conservados. O clima é envolvente em sua tranquilidade e serenidade, apesar do grande número de visitantes.
Depois de termos rezado individualmente na igreja, reunimo-nos num dos espaços reservados à oração e à partilha, voltamos a cantar ‘Jovem galileu’ e lemos calmamente as bem-aventuranças. Fomos trazendo presente tanta gente que nos acompanha, sintonizada, e se encomendou à nossa oração. E renovamos a consciência da missão que brota da confiança que Jesus deposita em nós: “Vocês são o sal da terra... Vocês são a luz do mundo...” E isso é tudo menos algo automático e descontado...
“Vocês serão pescadores de gente...”
Vista parcial do Mar da Galiléia
Descemos a montanha e ganhamos a margem do lago. Foi por estas paragens que Jesus encontrou e chamou os primeiros discípulos, propondo que aprendessem a pescar diferente. O calor queimava nossos ossos, pois estávamos uma espécie de depressão geológica, 200 mt abaixo do nível do mar. Lá nos esperava um barco para um breve passeio no lago de Genesaré.
Para nossa alegria, encontramos ali um grupo de quarenta peregrinos brasileiros, cuja maioria vinha do Paraná (Apucarana e Londrina). Fazia parte do grupo também uma moça que frequenta a Paróquia São José Operário, na Ilha do Governador. Como o grupo era exclusivamente de brasileiros (com exceção do Edmundo), tivemos direito a hasteamento da bandeira brasileira no mastro do barco, com hino nacional e tudo. E a emoção prosseguiu com o ‘Jovem Galileu’, ‘Jesus Cristo’ (do Roberto Carlos) e ‘Tu viestes às margens do lago’ cantadas por todos.
Interior da igreja da multiplicaçao dos paes
Como não lembrar de tudo o que aconteceu envolvendo Jesus e os discípulos nas margens desse lago? O chamado dos primeiros seguidores, a travessia no meio da tempestade, as pescas frustradas, a pesca do peixe com a moeda para pagar o imposto... Afinal, Cafarnaum, Betsaida e Tiberíades ficam logo ali... O tempo foi curto para recordar tantos acontecimentos biblicamente importantes.
“Tu me amas mais que estes outros?”
Concluído o breve passeio pelas águas calmas, nosso grupo foi um pouco adiante, ao lugar onde Jesus teria multiplicado os pães e peixes para a multidão faminta. Aqui faz muito sentido oferecer ao povo também peixe, e não apenas pão, como no deserto. Sobre a pedra onde Jesus teria realizado esta sinal existe hoje uma igreja mantida pelos beneditinos alemães, que conserva restos de uma basílica bizantina do século IV, com o famoso mosaico da cesta de pão e dos peixes, clássico símbolo das primeiras comunidades cristãs.
Daí seguimos à pé uns duzentos metros e chegamos ao lugar conhecido como ‘primado de Pedro’. Trata-se de uma pequena e simples igreja construída praticamente sobre o mar, num antigo porto de pescadores. Foi ali que os apóstolos voltaram a pescar depois da crise da crucifixão de Jesus (cf. Jo 21,1-19). E foi ali que, depois de uma noite de trabalho frustrado, os discípulos obedecem a ordem de um desconhecido, lançam as redes de novo e as recolhem cheias de peixes.
Aqui Jesus ofereceu peixe e pao aos
apostolos, depois dauela pesca...
No interior do pequeno templo erguido quase sobre as águas do lago ainda se conserva exposta a rocha sobre a qual Jesus ofereceu peixe e pão aos discípulos, envergonhados por terem abandonado Jesus no caminho da cruz e cansados por sucessivas pescas frustradas. E foi ali que Jesus testou a adesão de Pedro, perguntando três vezes se ele o amava mais que os outros. O fogo sob os peixes lembrava aquele outro, do pátio do sinédrio, quando Pedro negou Jesus. E a tríplice pergunta trazia à memória a tríplice negação.
Ali, sozinhos no interior da igrejinha, lemos João 21,1-19. Refletimos sobre nossos cansaços, vazios e desânimos. Lembramos de amigos e amigas que enfrentam grandes dificuldades pessoais e pedem nosso apoio e oração. Tomamos consciência de que nosso amor a Jesus precisa ser mostrado na ação de cuidar das ovelhas e cordeiros, dos amados e preferidos de Jesus. E que a missão não pode prescindir do seguimento.
Terminamos cantanto, emocionados, “Senhor, olhaste em meus olhos, e, sorrindo pronunciaste meu nome. Lá na praia eu deixei o meu barco... E contigo buscarei outro mar.” Assim seja, sempre. Amém!
Pedro, sua sogra e Jesus
Nosso roteiro deste dia 31 de maio terminou em Cafarnaum. O nome significa ‘cidade de Naum’, mas parece que não se trata do conhecido profeta. Ali, como sabemos, vivia Pedro, ao que parece, na casa da sogra. E foi nesta vila de pescadores, com uns duzentos e cinquenta moradores, que Jesus passou a residir, com os discípulos que se juntavam a ele, depois que os nazaretanos ameaçaram empurrá-lo precipício abaixo.
Restos da sinagiga do século IV, em Cafarnaum
Em Cafarnaum visitamos as ruínas de uma sinagoga do século IV, em cujo sub-solo estão restos da sinagoga que teria sido frequentada por Pedro, pois fica a alguns metros dos restos da casa da sua sogra, que seria também aquela na qual apenas alguns amigos baixaram pelo teto a maca de um doente a fim de que Jesus o curasse. Sobre os restos dessa casa, recentemente foi construída uma moderna e suntuiosa igreja.
Voltando a Nazaré, passamos por Tiberíades, cidade construída por Herodes no ano 20 dC e batizada com este nome para homenagear o imperador romano Tibério. Por causa disso e de outras coisas, parece que Jesus nunca visitou Tiberíades, mesmo que ficasse bem perto de Cafarnaum. Tiberíades é uma das poucas cidades que teve presença predominante e contínua de hebreus desde a antiguidade. Hoje é um movimentado polo turístico, especialmente por causa das suas belas praias.

Itacir Brassiani msf

Eucaristia e Corpo

A EUCARISTIA E O CORPO FEMININO  II
 Maria Clara Lucchetti Bingemer
Com  a festa de Corpus Christi, convém permanecermos em continuidade  com nossa reflexão na crônica da semana passada: a afinidade simbólica e real  da Eucaristia com o corpo da mulher. Nunca é suficiente o maravilhamento e a  ação de graças diante do milagre que faz com que o corpo da mulher seja o  sacramento, o sinal sensível pelo qual toda nova vida é gerada e  alimentada.
Assim  é que encontramos pelo mundo mulheres que vivenciam isso de diversas maneiras.  Sendo ou não mães biológicas; engravidando ou não; amamentando ou não.  A  realidade aberta de seus corpos permanece referência poderosamente evocativa da presença real e da transubstanciação que a cada momento todo ser humano  é chamado a sinalizar com sua própria  corporeidade.
Assim  foi com aquelas mulheres argentinas que com um pano branco na cabeça –  simbolizando as fraldas que haviam tantas vezes trocado em seus filhos  perdidos e desaparecidos – passeavam silenciosas sob a janela do ditador.   Eram donas de casa, mães e avós, apenas.  Começaram a reunir-se  para protestar diante da Casa Rosada, em Buenos Aires.  Foi-lhes dito que  não podiam ficar paradas ali nem falar.  Passaram então a caminhar  silenciosamente.  Todo dia, cada dia, durante muito  tempo.
O que  traziam as chamadas “loucas” da Praça de Maio?  Traziam para o espaço  público a orfandade dos filhos e netos perdidos, que sabiam mortos e dos quais  reivindicavam ao menos os corpos para enterrá-los dignamente.  Traziam a  ausência dos netos apenas conhecidos e que nunca mais haviam visto. Queriam  criá-los, cuidá-los.  Nada mais privado e familiar do que a reivindicação  daquelas mulheres silenciosas que, com seu gesto eucarístico exposto em praça  pública, contribuíram para desestabilizar uma das mais sangrentas ditaduras do  continente.
Assim  é também com tantas mulheres que vivem a dor e a frustração tremenda da  pobreza e da desnutrição que as leva a não ter nada em seu magro seio para  alimentar os filhos.  O bispo de Crateús atravessava a cidadezinha  pequena e pobre quando viu uma delas.  Com seu corpo extensivo, tinha  crianças no colo, nas costas, agarradas à saia, ao redor.  Mas o que lhe  chamou a atenção foi o choro desesperado do bebê que estava em seus braços.   Sem dúvida, tinha  fome.
O bispo  aproximou-se da mulher esquálida e abatida.  E perguntou-lhe por que não  dava de mamar ao bebê. Ela disse não poder fazê-lo.  E ante sua  insistência, abriu o seio sobre o qual o bebê se atirou vorazmente.  E  sugou sangue.  Já não restava nada mais naquele seio que deveria estar  túrgido de leite, mas se apresentava vazio e seco como a terra do sertão onde  a mulher tentava fazer seus filhos sobreviverem à seca inclemente e à  injustiça diuturna e cruel.  
Outras  mulheres que não foram mães biológicas sentiram em si mesmas esse retorcer  eucarístico das entranhas na urgência do dom de sua vida para alimentar  outros.  É assim que Simone Weil, filósofa e mística francesa, pouco  antes de morrer, escreve “desejar ser devorada por Deus, transformada em  substância de Cristo  e dada em alimento a todos os desventurados cujo  corpo e alma sentem falta de alguma espécie de nutrição.”
É assim  igualmente que Etty Hillesum, a jovem mística judia que morreu aos 29 anos na  câmera de gás em Auschwitz, escreveu em seu diário quando sentiu que as garras  do exército hitlerista se fechavam sobre seu frágil corpo. Enquanto servia e  ajudava os que como ela aguardavam o comboio que os levaria em viagem sem  volta para a Polônia, escreveu: “Eu parti meu corpo como pão e o reparti... E  por que não, eles estavam famintos e sentiam falta disso por tanto  tempo...”

Corpo  partido e repartido, carne dada e comida e consumida.  Este é o gesto  derradeiro e definitivo de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, em sua  encarnação, vida, morte e ressurreição.  Esta é sua maneira de continuar  presente entre nós. Esta é a graça que temos todos nós, seres humanos – mas de  maneira especial as mulheres – de podermos ser presença real e alimento dado  para saciar todas as fomes que impedem a vida de ser plena.  

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Caminhando nos arredores de Nazaré

De Nazaré pode vir alguma coisa boa?

“Formamos um só corpo...”
Em Nazaré começamos propriamente nosso roteiro por esta terra considerada santa. E isso aconteceu no dia em que celebramos a solenidade do Corpo e Sangue de Jesus. Assim, logo de manhã, celebramos em português a santa missa, na capela da casa que nos hospeda. Além do nosso grupo, duas Irmãs da casa e alguns hóspedes participaram, tanto quanto possível, da missa numa língua tão diferente.
Nosso grupo em Nazaré, diante da basilica da Anunciaçao
Cantando algumas estrofes do canto ‘Jovem galileu’, recordamos que, conforme nos recorda o evangelho de Lucas 9,11-17, “naquela relva, ao entardecer, o mundo viu nascer a paz de uma esperança”. No belo hino italiano da comunhão, cantávamos que “Cristo é o pão verdadeiro partilhado aqui entre nós. Formamos um só corpo, e Deus estará conosco.”
Mas recordamos também que exatamente no chão que estamos pisando, há pouco mais de dois mil anos atrás, o eterno e terno dinamismo comunicativo de Deus estabeleceu defintitivamente a comunhão entre o amor divino e a carne humana. Antes de fazer-se pão, o Amor fez-se carne. Fez-se carne em Nazaré para depois fazer-se pão em Jerusalém. “E sua fama se espalhou e todos vinham ver o fenômeno do jovem pergador...”
“Este não é o filho de José?”
No café da manhã, partilhamos a mesa e a conversa com um pequeno grupo de hóspedes, e depois saímos em buscas dos lugares pisados pelos pés nus e livres de Jesus e dos seus discípulos. Sem seguir a lógica da história de Deus em Nazaré, nossa primeira parada foi no despenhadeiro ao qual Jesus foi levado logo depois da sua estréia como pregador famoso em sua própria cidade.
Panorama desde a montanha de onde quiseram precipitar Jesus
Lucas nos conta que, depois de ler o profeta Isaías na sinagoga da sua vila, Jesus comentau: “Hoje estas palavras estão se realizando...” A comunidade ficou encantada com sua breve pregação. Mas pouco depois começou a se interrogar, pois o conhecia muito bem: Jesus era o carpinteiro, o filho de José, que trabalhara com seu pai naquela pequena oficina que todos conheciam...
Depois de ouvi-lo dizer que nenhum profeta é bem aceito na sua própria terra, e citar Elias e Eliseu, que também pouco se importaram com aqueles que pertenciam à própria raça e à religião, a comunidade reunida na sinagoga de Nazaré se rebelou e arrastou Jesus para o cume da montanha, ameaçando jogá-lo precipício abaixo (cf. Lc 4,14-32). Mas ele passou tranquilamente pelo meio deles e prosseguiu sua missão como se nada tivesse acontecido...
Nada de estranho! Isso às vezes acontece também conosco: num instante passamos de uma adesão emocionada e entusiasmada ao Evangelho ao protesto mal humorado e à negação prática daquilo que professamos. E quantas vezes desejaríamos calar a boca de alguns profetas e profetizas que nos incomodam e dos quais julgamos conhecer todos os defeitos e pecados de origem?
Igreja da transfiguraçao, no alto do monte Tabor
“Este é o meu filho amado, escutem o que ele diz!”
Descemos esta montanha de trágica memória e subimos outra: o monte Tabor, o lugar onde Jesus se transfigurou. Trata-se de uma colina de seiscentos metros de altura, isolada das demais montanhas, característica que lhe valeu o nome: Tabor significa, literalmente, umbigo... Ao pé da montanha tivemos que deixar nosso micro-ônibus e usar um transporte especial, adaptado à íngreme subida.
Não sei nem quero saber como foi que Jesus, Pedro, Tiago e João subiram a montanha. Mas, depois de ver a paisagem desde o alto do Tabor, creio que os outro discípulos, além do rosto transfigurado de Jesus e das palavras que ressoaram do céu, perderam uma visão magnífica. E isso sem querer fazer menos do significado profundo da experiência daqueles nossos três operários da primeira hora, tão iguais e tão melhores que nós.
Na capelinha dedicada ao profeta Elias lemos o relato da transfiguração e escutamos de novo as enfáticas palavras que ressoaram do vento e da nuvem: “Este é meu filho amado... Escutem o que ele diz!” (cf. Lc 9,28-36) Sim, não podemos ficar na superficialidade, desejar prolongar no tempo a bela visão que temos desde o cimo do Tabor, bisbilhotar os lugares por onde Jesus passou... Precisamos ouvir e acolher o que ele diz, e ele nos fala de serviço fraterno e incansável no amor, um serviço que não teme o rebaixamento e a cruz...
“Ave, cheia de graça!”
A casa de Maria, no interior da igreja da Anunciaçao
Descer é mais fácil de subir, mas não depois de experiências e visões magníficas e profundas... Descemos do Tabor e nos dirigimos a Nazaré. No percurso de pouco mais de meia-hora, fui lembrando e cantarolando o refrão do Loacir: “Eu quero ir pra Nazaré, para encontrar-me com Jesus, Maria e José. Eu quero vir de Nazaré com mais amor e mais ardor na minha fé...”
Fomos diretamente à basílica da Anunciação, edifício em estilo moderno, construído na década de 1960, exatamente sobre aquela que seria a casa de Maria de Nazaré. Depois de contemplar rapidamente as várias imagens de Maria conforme são cultuadas nos diversos países, paramos e cantamos juntos ‘Salve Regina’, gravado em latim na parede externa do lado direito da basílica.
O interior da basílica é de uma beleza moderna e exuberante, e convida ao louvor agradecido. Mas o que emociona é descer ao plano inferior e contemplar as paredes brutas e rochosas da casa de Maria... Um mistério de pobreza e de beleza, que só um olhar divino pode elevar e amar... Como Deus teria falado ao coração daquela anônima menina de Nazaré? Que estratégias e meios teria usado? E como o cristianismo continua ousando afirmar que Deus usa caminhos assim tão inusitados e fora da lógica das instituições para manifestar sua vontade e realizar sua obra libertadora?
Continuamos lembrando a delicadeza de um mensageiro de Deus que saúda Maria reconhecendo seu charme e o encanto que despertou no próprio Deus. Mas não podemos esquecer que ele não o faz à margem do relacionamento matrimonial de Maria com José, mas insiste em contar com a adesão de um casa prometido em casamento e realmente casado. Fico triste quando vejo, às vezes num mesmo templo, Maria de um lado e José ausente ou lá no outro canto, como se tivessem medo ou vergonha um ao outro. Que ninguém separe aquilo que Deus uniu!
“Na casa de Nazaré, pequena e pobre casa...”
Igreja sobre a carpintaria de José
Da basílica da Anunciação seguimos para a carpintaria de José, que infelizmente não pudemos visitar, pois está sendo objeto de escavações e estudos. No breve caminho de uns cem metros que separa a basílica da igreja construída sobre a famosa carpintaria, apreciamos escavações que trouxeram à luz as dependências daquela que teria sido a casa de Maria: buracos que serviam de depósito de água e de cereais, a cozinha...
Na igreja da carpintaria de José paramos para um momento de oração. Meditamos sobre as palavras que o anjo disse a Maria em nome de Deus e a resposta humana e generosa que ela soube dar (Lc 1,26-38). “Um coração que era ‘sim’ para vida, um coração que era ‘simì para o irmão; um coração que era ‘sim’ para Deus... Imaculada, Maria de Deus, coração pobre acolhendo Jesus. Imaculada, Maria do povo, mãe dos aflitos que estão junto à cruz...”
Como estávamos no espaço provavelmente ocupado pela casa da Sagrada Família de Nazaré, não podíamos deixar de rezar com as palavras da bela canção de origem sul-americana: “Na casa de Nazaré, pequena e pobre casa; no seu trabalho está José com o menino que deseja aprender... Trabalha e canta a esposa do carpinteiro, e o mundo inteiro sorri e conta também...”
“Façam tudo o que ele vos disser!”
Uma talha de pedra como aquelas de Cana...

Caná da Galiléia fica há poucos quilômetros d Nazaré. Na época de Jesus, pode ter chegado a dois mil habitantes (contra os cento e cinquenta de Nazaré). Isso pode nos ajudar a compreender dois fatos. O primeiro: que Jesus, sua mãe e seus discípulos tenham podido participar de uma festa de casamento em Caná (cf. Jo 2,1-12). O segundo: que Natanael, que era de Caná, uma cidade relativamente importante, tenha perguntado se de uma coisa insignificante como Nazaré pudesse sair alguma pessoa importante (cf. Jo 1,35-52).
Depois de almoçarmos um gostoso kebab (uma espécie de hamburguer árabe), fizemos o trajeto de Nazaré a Caná. Visitamos a igreja construída sobre os restos daquele que seria o lugar da festa na qual Jesus transformou água em vinho a pedido de Maria. Ela soube ‘adiantar o relógio’ para que ‘a hora’ de Jesus fosse antecipada em favor de uma festa que não poderia terminar em vergonha para os anfitriões. Nas escavações foram encontradas – e hoje estão expostas – talhas semelhantes às que teriam sido usadas naquela festa memorável.
Ali preparamos um momento de oração, recordando o que Maria nos diz: “Façam o que Jesus vos disser!” São palavras semelhantes àquelas que ressoaram da nuvem, no Tabor, ali perto: “Escutem o que ele diz!” Maria insiste que precisamos ouvir e realizar a Boa Notícia anunciada pelo seu filho, e então a festa jamais acabará. Naquele momento, abençoamos o Herculano e a Sandra que, no dia 19 passado, completaram quarenta anos de matrimônio, um dos motivos que os trouxe à terra santa.
A fonte de Nazaré
A igreja no interior da qual se encontra a fonte de Nazaré
Os estudos arqueológicos chegaram à conclusão de que, no tempo de Jesus, a vila de Nazaré tinha uma única nascente de água, na qual as trinta ou quarenta famílias se abasteciam. No final da tarde de hoje visitamos essa fonte, que está no interior de uma igreja ortodoxa grega, e ainda jorra água. Teria sido ali que José admirava a sua jovem preferida, enquanto ela enchia seus cântaros de água? Quantos encontros, lamentos e suspiros das moças e mulheres aquelas pedras escondem e conservam?
Assim é Nazaré e seus arredores. Tudo é tão normal que até espanta. Uma normalidade tão trivial que levou alguns a perguntar se dali podia surgir algo de bom. Como pode tamanha simplicidade e cotidianidade estar na origem dos altos mistérios que encantam e seduzem meio mundo há dois mil anos?
Quando vistou Nazaré, em 1962, Paulo VI dizia que aqui em Nazaré encontramos a escola do Evangelho. Aqui aprendemos as lições do silêncio, do trabalho, da encarnação da fé na vida cotidiana, da encarnação silenciosa do Verbo na história. Aqui a gente vem para aprender a crer, com coerência e responsabilidade. Oxalá seja assim também conosco, no Ano da Fé.

Itacir Brassiani msf

quarta-feira, 29 de maio de 2013

9° Domingo do Tempo Comum - Ano C

A Palavra de Jesus Cristo cura, liberta e guia
(1Rs 8,41-43; Sl 116/117; Gl 1,1-2.6-10; Lc  7,1-10)

Já faz alguns anos que ressoa por todos os lados, como se fosse um novo evangelho, o anúncio que que vivemos numa aldeia global, que o mundo foi globalizado e que não existem mais fronteiras. E isso parece verdade, ao menos na perspectiva do capitalismo financeiro. Mas se vivemos de fato num mundo sem fronteiras, não podem existir cidadãos de segunda classe ou gente excluída da cidadania. Junto com as fronteiras, devem desaparecer as hierarquias que dividem e classificam o mundo entre bons e maus, superiores e inferiores, vitoriosos e perdedores, beneficiados e penalizados. Nisso, assumindo uma tradição subterrânea mas viva no interior do judaísmo, Jesus foi longe, muito longe.
“Quando terminou de falar estas palavras...”
O evangelho de hoje começa onde termina o ‘sermão da montanha’ (que, segundo Lucas, foi proferido numa planície). Jesus havia falado que o Reino de Deus é dos pobres, que os famintos serão saciados, que aqueles que choram seguramente ainda poderão rir. Ensinara que devemos amar até os inimigos e fazer o bem a quem nas faz o mal. Dissera também que é pelos frutos que produzimos que revelamos quem somos, e que seu ensinamento não é para ser admirado, mas colocado em prática.
Toda mudança nasce no ventre do sonho e se nutre da imaginação. “Imagine não existir nenhum inferno, e acima de nós só o céu, e todas as pessoas vivendo para o hoje. Imagine não existir países, nada pelo que matar ou morrer. Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz. Imagine não existir posses, necessidade, ganância ou fome; uma irmandade entre os homens. Imagine todas as pessoas compartilhando todo o mundo... Você pode dizer que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único...”
Quem não lembra deste convite de John Lennon a imaginar coisas que são aparentemente delirantes e impossíveis? Para muita gente estes versos soam como pura fantasia, como as palavras de Jesus pareciam aos seus contemporâneos e conacionais um sonho delirante, fruto de uma imaginação fértil. Se bem que ele insistiu que ouvir sua Palavra, cantar um hino, fazer uma prece e cruzar os braços é tão arriscado como construir uma casa sobre a areia...
“Havia um centurião...”
O evangelista nos diz que Jesus havia deixado o ambiente uniforme do judaísmo e adentrado num espaço no qual se cruzavam culturas e interesses: a cidade de Cafarnaum. Este era também o momento de passar da prédica à prática. E Jesus logo se encontra com um personagem sem nome, mas com uma posição social bem definida: um chefe de uma centúria romana, um pagão detentor de poder militar. Era um  homem benquisto pelos judeus, e tinha consciência do poder que exercia sobre os subalternos.
Considerando a pregação recém pronunciada, que atitude se esperava de Jesus frente a um homem excluído por causa de sua origem étnica (estrangeiro) e da sua condição religiosa (pagão), mas que tinha um bom posto na da pirâmide do poder repressivo? Os anciãos que faziam as vezes de mensageiros do centurião sublinham seus merecimentos: era uma autoridade que, não obstante ser agente do poder invasor, demonstrou amar os hebreus e até financiou a construção de uma sinagoga para eles.
O fato que move este episódio é o servo do centurião, que, sendo muito estimado pelo seu senhor, estava doente, à beira da morte. Seria uma imagem da situação do povo hebreu, sob o domínio do poder estrangeiro? Mesmo que existissem relações amistosas entre nativos e invasores, o poder romano não era capaz de garantir a vida e o bem-estar do povo hebreu. E o poder hierárquico não servia para nada nestas circunstâncias, a não ser para pedir socorro.
“Ele merece esste favor...”
É importante observar o que o centurião pede a Jesus e como faz chegar a este seu pedido. O pagão romano não pede nada para si, mas em favor do seu escravo. Tendo ouvido falar de Jesus, usa o poder que exerce e envia um grupo de anciãos para fazer chegar a Jesus seu desejo: que Jesus viesse à sua casa para curar seu dependente. Diante de Jesus, os notáveis do judaísmo insistem na dignidade e nos méritos deste representante dos invasores. “Ele merece este favor porque ama o nosso povo...”
Mas a imagem que o centurião anônimo tem de si mesmo não corresponde àquela dos anciãos. Antes que Jesus se aproxime da sua casa, envia outro grupo de embaixadores – ele tinha poder para isso! – portando uma nova mensagem: “Não te incomodes, pois eu não sou digno de que entres em minha casa. Por isso, nem fui pessoalmente ao teu encontro...” Parece que os anciãos se movem no horizonte do mérito e da honra, mas este pagão tem plena consciência do que é.
O que este chefe pagão faz é insistir na força da Palavra de Jesus: “Mas dize uma palavra, e meu servo ficará curado.” Ele sabe que nem o judaísmo, nem o poder do exército romano, podem garantir a vida do povo. Ele tem consciência do próprio poder de mando, mas sabe que não serve para nada, a não ser para compreender que a vontade e as ordens de Jesus estas sim têm força de vida. Com sua Palavra, Jesus pode ordenar ao mal que deixe de dominar seu amado povo.
Nem mesmo em Israel encontrei uma fé tão grande!”
Lucas diz que Jesus ficou admirado com a confiança demonstrada por esta autoridade militar de origem pagã. “Jesus ficou admirado. Voltou-se para a multidão que o seguia e disse: ‘Eu vos digo que nem em Israel encontrei uma fé tão grande’”.  Mas onde Jesus viu esta demonstração de fé? Na insistência no próprio poder de dar ordens? Ou na renúncia a ostentar qualquer mérito, no reconhecimento da própria indignidade e na intercessão por uma pessoa subalterna?
Jesus já havia reconhecido e elogiado a fé prática de um grupo que fizera um paralítico descer com sua maca pelo telhado de uma casa para colocá-lo diante dele e ser curado (cf. Lc 5,17-26). Também ‘viu’ e reconheceu a força da fé um pouco medrosa da mulher doente que o tocou e ficou curada (cf. Lc 8,40-48).  Reconheceu que foi a fé do leproso que o purificou da doença que o excluída da vida social (cf. Lc 17,11-19). E anunciou publicamente que foi a fé insistente que salvou o cego de Jericó (cf. Lc 18,35-43).
A fé é uma atitude que envolve a pessoa por inteiro, que move todas as suas capacidades e energias, que abre os olhos para encontrar soluções humanas para os problemas humanos. A fé não vai bem com passividade, mas também não casa com o poder de coerção e com o sentimento de ser merecedor, de exigir direitos diante de Deus. A fé também não se identifica com a simples acomodação às leis e hierarquias, pois manifesta frequentemente uma força que rompe com o que é estabelecido.
“Escuta e atende todos os pedidos desse estrangeiro...”
Todos conhecemos muito bem a tendência nacionalista e exclusivista que predominou no judaísmo do Antigo Testamento. Mas não podemos esquecer um aspecto minoritário, resgatado e valorizado por Jesus: a abertura a todos os povos e culturas. É isso que expressa a oração de Salomão (cf. 1Rs 8,22-54), da qual são extraídos os versículos da primeira leitura. Salomão pede a Deus que não deixe sem resposta a prece dos estrangeiros que rezam no templo de Jerusalém.
Essa perspectiva inclusivista e universalista – essencialmente católica! – aparece também no mais breve dos salmos, proposto na liturgia de hoje. “Aleluia! Povos todos, louvai o Senhor, nações todas, dai-lhe glória; porque forte é seu amor para conosco e a fidelidade do Senhor dura para sempre.” O amor de Deus revelado na história não é apenas forte e duradouro: é também universal, chega a todos os povos e nações e recebe louvor em todas as línguas e culturas.
 “Povos todos, louvai o Senhor!”
Jesus de Nazaré, coração sem fronteiras, liberdade sem hierarquias: Guia nossas comunidades e toda a Igreja por caminhos que as levem a ultrapassar as fronteiras estabelecidas pelo medo ou pelos interesses mesquinhos, assim como as hierarquias que se prestam a mantê-la a qualquer custo. Não permitas que abandonemos teu Evangelho libertário e acomodemos tua mensagem a um mundo construído sobre o privilégio de poucos. Não deixes que o medo e o comodismo nos impeçam de ‘imaginar’ e de ‘construir’ um mundo sem fronteiras nem hierarquias. Ajuda-nos a admirar a fé de quem crê diversamente e aprender com suas atitudes de compaixão e solidariedade. E mantém sempre diante dos nossos olhos a figura do estrangeiro que nos ensina o modo correto de se aproximar de ti, insistindo: “Senhor, eu não sou digno que entreis na minha morada, mas dizei uma Palavra e eu serei salvo!” Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

Começando a caminhada pela 'terra santa'

Pisando a terra do ‘Jovem Galileu’

Nem todos conseguiram partir, mas aqui estamos, recém chegados a Nazaré, na explêndida região da Galiléia: Herculano e Sandra (de Santo Ângelo, RS); Tarsila e Leonor (Irmãs de Santa Catarina de Alexandria, brasileiras que vivem em Roma); Edmundo (nosso Superior Geral, polonês que vive em Roma) e eu. Infelizmente nossos colegas Risdiyanto e Paulino (indonesianos que vivem em Roma), tiveram seus pedidos de visto negados pelo Estado de Israel na manhã de hoje, quando já deveriam estar partindo, sem nenhuma explicação.

A gruta do profeta Elias, em Haifa
Partimos de Roma hoje, às 9h20, com vôo da Alitália direto a Tel Aviv, onde chegamos às 13h30 (hora local, uma hora mais cedo em relação a Roma, seis horas mais cedo em relação ao Brasil). O controle de imigração não fez nenhum problema para nos dar uma autorização de estadia para noventa dias. Logo localizamos o guia que a agência de viagens escolheu para nos acompanhar nesta semana de peregrinação pela Terra Santa. É um cidadão de origem romena, chamado Cornel, cristão ortodoxo que vive há mais de trinta anos de Israel e fala perfeitamente o italiano.

O roteiro previa para hoje unicamente o deslocamento de Tel Aviv a Nazaré, mas o guia nos sugeriu uma parada em Haifa, a terceira cidade mais populosa de Israel (depois de Jerusalém e Tel Aviv) distante duas horas de viagem desta, e um dos portos mais importantes. Em Haifa visitamos o mosteiro Carmelita construído sobre a gruta na qual o profeta Elias se refugiou quando, depois de ter eliminado à espada os profetas de Baal, sendo perseguido por Jesabel fugia desanimado. Foi no interior dessa gruta que o profeta aprendeu a reconhecer a presença de Deus na brisa leve, e não no fogo, no furacão e no terremoto. Nem sempre o ardor das ideologias que apaixonam é portador de verdade e de vida. Uma antiga tradição diz que a Sagrada Família, voltando do Egito a Nazaré, também visitou esta gruta.

Cidade e porto de Haifa
Depois de ter subido ao alto do Monte Carmelo e contemplado a beleza desta cidade portuária, de ter localizado a fronteira de Israel com o Líbano e de ter observado o extremo oriental do mar Mediterrâneo, continuamos a viagem em direção a Nazaré. Poucos quilômetros depois de Haifa a geografia mudou e nos desparamos com as explêndidas paisagens da nossa conhecida Galiléia. O guia nos lembrava que a palavra ‘galiléia’ vem de ‘ondulações’, das suaves colinas que dividem os vales, um mais belo e a mais fértil que o outro.

Assim, às 17h30 chegamos a Nazaré, onde ficaremos hospedados nos próximos dois dias. Esta cidade que, no tempo de Jesus, era habitada por não mais que cento e cinquenta pessoas, é hoje uma bela e dinâmica cidade de cento e quarenta mil cidadãos, a maioria absoluta, praticamente 100%, de origem árabe. Nazaré é um polo da região da Galiléia, onde vivem duzentos e quarenta mil pessoas. A presença cristã não chega a 30% da população. Aqui estamos hospedados numa pousada administrada pelas Irmãs do Santo Rosário.

Paisagens da Galiléia
Não sei exatamente quais serão as emoções mais fortes neste giro mais espiritual que turístico, mas começar por Nazaré certamente fala muito alto para um Missionário da Sagrada Família. Nossa peregrinação começará verdadeiramente amanhã. No programa está a visita ao lugar da anunciação do anjo a Maria, ao lugar onde morou a Sagrada Família, a Caná e ao monte Tabor, lugar da transfiguração de Jesus. Espero poder partilhar com vocês as impressões mais significativas.

Quero terminar apenas lembrando alguns dos belos versos musicados pelo Pe. Zezinho na clássica canção ‘Jovem galile’:  “Um certo dia, à beira-mar, apareceu um jovem galileu. Ninguém podia imaginar que alguém pudesse amar do jeito que ele amava...” Nazaré, por mais insignificante que fosse, deu a ele e à sua família um sobre-nome que hoje se tornou memória e utopia.

Itacir Brassiani msf

terça-feira, 28 de maio de 2013

Visita de Maria a Isabel

Que alegria receber a visita da Mãe do meu Senhor!
(Sof 3,14-18; Is 12,2-6; Lc 1,39-56)

Maria é sempre discípula, aprendiz, servidora, mãe e mestra no caminho do seguimento de Jesus Cristo e na aventura da nossa resposta ao chamado de Deus. No último dia deste mês dedicado à sua memória temos a oportunidade de contemplar sua visita a Isabel e acolher as lições que nos proporciona. Esta visita de Nossa Senhora sublinha um aspecto frequentemente lembrado pelos evangelhos: através de personagens concretos, Deus visita e liberta seu povo. No cântico que elevou quando, após o nascimento de João Batista, seus lábios se abriram, Zacarias proclama: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu seu povo!” (Lc 1,68). Depois de testemunhar a ação de Jesus em benefício de um filho e de uma filha de pagãos, o povo glorificava a Deus dizendo: “Um grande profeta apareceu entre nós, e Deus veio visitar o seu povo” (Lc 7,16). Como na visita de Maria a Isabel, também hoje é o próprio Deus que nos visita e nos liberta.
“Javé está no meio de vocês!”
São simplesmente comoventes as palavras de Deus através do profeta Sofonias. Falando em nome de Deus num contexto de ameaça de dominação externa, de sedução exercida pelo poder e pela riqueza sobre os líderes oficiais, e de profunda divisão interna do povo de Israel, Sofonias joga todas as cartas no protagonismo renovador de um pequeno “resto” de povo, pobre e fiel a Javé. Esta é uma regra fundamental da gramática de Deus: ele sempre fala e age através das pessoas e grupos mais humildes.
É a este pequeno resto, atordoado pela política dos grandes e ameaçado pela expectativa de um “dia de vingança de Deus”, que o profeta se dirige: “Grite de contentamento!... Fique alegre e exulte de todo o coração! Javé está no meio de você! Não tenha medo, Sião! Não se acovarde! Por causa de você, ele está contente e alegre e renova o seu amor por você! Está dançando de alegria por sua causa, como em dias de festa!” Poderia haver uma mensagem mais encorajadora que essa?
Como naquele tempo, os sinais de que Deus está presente no meio de nós hoje não são evidentes e potentosos, não se impõem por si mesmos. O que o profeta faz é um convite a olhar mais longe e mais fundo; a perceber as grandes coisas que estão sendo gestadas nos pequenos sinais; a levantar o manto do medo que cobre os pobres; a superar a imagem de um Deus punidor ou indiferente frente à sorte dos sofredores; a reconhecer a ação libertadora de Deus que está em curso mediante as ações de pessoas humanas como Maria.
 “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor venha me visitar?”
As visitas são momentos cheios de colorido e de graça que rompem com o – às vezes! – cinzento e monótono cotidiano. E são mais significativas ainda quando ocorrem de forma inesperada e gratuita. “Você aqui?.. Que satisfação!...” Visitas são oportunidades ímpares para recordar o passado, compartilhar o presente, traçar rumos futuros, reforçar laços e celebrar alianças. Por isso, no final de cada visita, repetimos com sincero desejo o refrão: “Vai com Deus! Volte sempre!”
Contemplemos Maria percorrendo apressada a estrada que leva à casa de Isabel. “Como são belos teus pés, ó Maria: descendo os montes, paz anuncias!” Ela entra na casa sem bater e, quando saúda Isabel, o corpo dela estremece e até João participa a seu modo desta alegria. É uma alegria que brota do reconhecimento de Maria como a “Arca da Aliança”, como a mulher que traz no seu corpo Aquele que é em pessoa e ação a visita de Deus à humanidade. “É bendito o fruto do seu ventre!...”
Numa visita, a alegria não é privilégio de quem acolhe. Também a pessoa que é acolhida tem sua quota de satisfação. Maria ouve dos lábios de Isabel o elogio que ressoa até hoje no mundo inteiro: “Você é bendita entre as mulheres!... Bem-aventurada aquela que acreditou, porque vai acontecer o que o Senhor lhe prometeu”. E a alegria é tanta que Maria, habitualmente tão discreta, irrompe nun cântico no qual ressoam as mais belas utopias dos pobres de Javé.
Aquela visita que teria durado pouco mais de três meses é sacramento da visita definitiva e duradoura que Deus faz ao seu povo: Jesus Cristo é uma visita que veio para ficar; é a Aliança nova, terna e eterna de Deus conosco; é Aquele que chega pedindo hospedagem e se torna Senhor do nosso destino.
 “Ele olhou para nossa humilhação...”
Visitas inesperadas provocam surpresa e alegria, mas também rebuliço e mudança. A visita de Deus, possibilitada e realizada na vida de Maria de Nazaré e de tantas outras marias, não é coisa superficial ou passageira. De acordo com o próprio hino cantado por ela ao ritmo do coração, onde e quando Deus chega começa um processo de reversão no qual o que parecia impossível se torna realidade. Maria  anuncia aos quatro ventos que Deus não dá as costas à humilhação dos seus filhos e filhas.
Deus olha para a humildade só num segundo momento, pois sua atenção está totalmente voltada àqueles que são humilhados. Vendo a realidade dos humilhados, Deus depõe os poderosos e orgulhosos e promove e empodera os pobres. Vendo a fome de muitos, acolhe-os na mesa preparada para todos e coloca os ricos na fila de espera. Os que normalmente são os últimos da fila passam a ocupar os primeiros lugares, e os primeiros são convidados a esperar um pouco.
Na verdade, em Jesus Cristo, Deus age mostrando que a sociedade não é uma casa que nos pertence com exclusividade e na qual ele é uma simples visita. Ele é Senhor desta casa, e sua visita representa a retomada dos seus direitos de senhor e o reestabelecimento das normas originais, ou seja: que os últimos devem ser tratados com absoluta prioridade. De acordo com Maria, Jesus Cristo é uma visita que provoca mudanças profundas e que devem durar para sempre. E põe mudança nisso!
 “Lembrando-se de sua misericórdia...”
Isabel vivia escondida e resignada, destilando o amargo sabor de uma esterilidade vivida como castigo. A gravidez inesperada – presente consolador numa idade já avançada – ressuscitou sua alegria e sua jovialidade, mas a visita gratuita e surpreendente de Maria fez com que ela descobrisse com júbilo que Deus nunca esquece da misericórdia que prometeu a nossos pais. De fato, seu amor se estende de geração em geração sobre aqueles/as que o temem.
As boas visitas frequentemente produzem estes pequenos milagres. Na conversa que corre solta a gente se dá conta de que nem tudo é tão pesado e que, como dizia Luís Carlos Borges, vergado sob o peso da cegueira e da velhice, não há um só dia em nossa vida em que não experimentamos o paraíso, mesmo que por um breve instante. Visitas são como o sol que nasce vitorioso e animador depois de uma noite escura e nebulosa ou de dias e dias chuvosos.
A visita de Maria fez com que Isabel lembrasse que Deus não se esquece de nós. Ele tem um rosto materno e feminino, com tantas faces e tantos nomes: das dores e dos prazeres; da vitória e dos aflitos; do socorro perpétuo e dos desvalidos; da boa viagem e do bom parto; da reconciliação e das graças; negra e indígena, branca e asiática... Maria da Visitação e de todas as manifestações nos lembra que Deus, como uma mãe, não esquece dos filhos que gerou.
 “A criança saltou de alegria no meu ventre...”
Assim como na visita, no cântico de Maria ressoa o clamor e a esperança dos pequenos. Uma mudança misteriosa está em curso e é levada adiante por visitadores que, como Maria, acreditam na Palavra de Deus e ajudam-na a fazer-se carne. Como descrever, por exemplo, a alegria e os frutos de vida produzidos pela humilde e discreta visita mensal das milhares de líderes da Pastoral da Criança às famílias pobres deste imenso país?
Alegremo-nos com Isabel e com João Batista, saltemos de alegria no ventre da história, pois o Santo de Israel é grande em nosso meio. Sejamos dóceis ao Espírito Santo, a fim de que possamos conceber e gerar vida e amor ao nosso redor. Tenhamos livres os pés, a fim de vencermos as distâncias que nos separam. Deixemos de ser escravos da agenda e possibilitemos visitas que, por mais inúteis que pareçam, são sempre portadoras de uma presença que nada pode pagar, nem apagar.
Ave Maria, cheia de graça! Sê benvinda à nossa casa! Toma assento que o chimarrão estava te esperando. Que alegria receber a esperada visita daquela que nos mostra o que significa acreditar! Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre! No teu corpo feminino e crente, vemos o próprio Deus entrando na nossa casa. Fala-nos do teu filho, e ajuda-nos a fazer tudo o que ele nos disser.

Pe. Itacir Brassiani msf

O corpo feminino e a Eucaristia

A EUCARISTIA E O CORPO FEMININO

Maria Clara Lucchetti Bingemer

A  Eucaristia não é um ritual íntimo e privado. Pelo contrário, tem implicações profundas e radicais nos  níveis antropológicos e sociais. Além disso, o núcleo do mistério - que a Igreja celebra como o ápice da fé e  sacramento da salvação e do amor - pode ser lida a partir de diferentes perspectivas teológicas. Aqui optamos por fazer isso a partir da perspectiva do corpo feminino. Nossa intenção é demonstrar a afinidade simbólica estreita entre a Eucaristia e o corpo feminino, bem como as implicações políticas desta afinidade.

Hoje podemos ver que a presença real das mulheres em espaços públicos tem crescido consideravelmente. Isso é verdade na Igreja, bem como na reflexão teológica ou orientação espiritual. O fato é que, em todos os casos, a presença das mulheres dentro do social e dos organismos eclesiais aumentou de forma notável. Além disso, a maneira como as mulheres experienciam Deus e pensam sobre o mistério de Deus está sendo considerada cada vez mais como um objeto de trabalho acadêmico que  inspira toda a vida da Igreja.

Em um universo onde o corpo é tão visível e, principalmente masculino, as mulheres entram como um fator perturbador. Este "problema" ocorre porque seus corpos são “outros”, expressando e tornando visível a experiência de Deus, o pensamento e o discurso sobre Deus, de uma forma diferente e particular. O corpo feminino torna-se então a condição de possibilidade de as mulheres introduzirem uma identidade específica para a discussão sobre espiritualidade, misticismo, e teologia.

Este corpo feminino tem sido o "lugar" em que as mulheres exibem as suas experiências de ser "presença real" de Cristo no mundo e na Igreja. No entanto, esses mesmos corpos têm sido, em várias ocasiões, fonte de discriminação que as mulheres sofreram e continuam a sofrer na Igreja. Este é um fato terrível, que exige séria reflexão. Se é possível lutar contra a discriminação intelectual (pelo acesso a estudos e de formação), contra a injustiça profissional (buscando especialização e provar capacidade), o que se pode fazer com o próprio corpo? Além disso, as mulheres devem negar e ignorar seus próprios corpos, criados por Deus para ser honrados e entrar em profunda comunhão com o Criador?

As mulheres têm uma maneira de experimentar e falar sobre suas experiências espirituais, que são inseparáveis ​​de seus corpos. Apresentam e tornam visível a  própria corporeidade, quando  falam sobre o mistério de Deus, introduzindo uma novidade para a compreensão da vida espiritual e da ação do Espírito de Deus no mundo. Além disso, esse mesmo mistério  de Deus, afetando e configurando a corporeidade sexuada criada da mulher, revela outros aspectos de sua identidade que enriquecem o Povo de Deus.

Há uma dimensão da vida cristã em que as mulheres surgem como sujeitos privilegiados, e esta é a identificação da sua corporeidade com o sacramento da Eucaristia. O corpo feminino é a expressão exata do sacramento em termos de transubstanciação" e "presença real" em que o corpo e sangue do Senhor sob as espécies  do pão e do vinho, são dadas ao povo como comida e bebida. Alimentar  outros com o próprio corpo é a suprema forma que  o próprio Deus escolheu para estar  definitiva e sensivelmente  presente no meio do seu povo. O pão que partimos e consumimos, que confessamos ser o corpo de Jesus Cristo, remete-nos para o grande mistério da sua encarnação, morte e ressurreição. É sua pessoa dada como alimento, é a sua vida corpórea  feita fonte de vida para os irmãos.

Antropologicamente, as mulheres são as que têm em sua corporeidade a possibilidade  física de viver e proclamar a ação divina realizada na Eucaristia. Durante todo o processo de gestação, parto, proteção e alimento da vida nova, temos o sacramento da Eucaristia, o divino ato por excelência, acontecendo de novo e de novo.

Por isso, por causa de sua vocação eucarística expressa corporalmente, as mulheres hoje são chamados a reinventar e recriar, no interior do Povo de Deus, uma nova forma de serviço e ministério. Seus corpos,  fonte de tanta desconfiança e preconceito ao longo da história, são uma forma poderosa e iluminadora para uma Igreja que busca uma linguagem e uma imagética nova para comunicar-se em um mundo secularizado e plural.


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Solenidade do Corpo e Sangue de Jesus

O corpo de Cristo é a comunidade que partilha
(Gn 14,18-20; Sl 109/110; 1Cor 11,23-26; Lc 9,11-17)

Ainda embalados pelo alegre dinamismo da Páscoa, pelo sopro do Espírito Santo e pela comunhão trinitária, celebramos a solenidade de Corpus Christi. Esta festa é uma forma de recordar e sublinhar o o dinamismo fundamental da vida cristã: partilha, comunhão, dom de si, serviço. A solenidade, reforçada pelo incenso abundante, pelas ricas alfaias, pelas procissões populares e pelas ruas enfeitadas, quer enfatizar que Cristo se faz sacramentalmente presente na comunidade dos irmãos e irmãs que se solidarizam na partilha do pão e no dom da vida, que se reúnem para celebrar em torno da Mesa e da Palavra e que fazem memória da doação maior de Jesus e da nuvem de testemunhas que o seguiram. A Eucaristia não é algo a ser adorado e exposto publicamente, mas expressão do amor de Deus por nós, de um amor que chega ao seu ápice quando se torna comunhão e amor ao próximo em nós.
“Bendito seja o Deus altíssimo...”
A solenidade que hoje celebramos foi instituída no ano de 1864, pelo Papa Urbano IV, com o objetivo de sublinhar a presença real de Cristo no sacramento da Eucaristia. Infelizmente, na França dos séculos XV e XVI – mas também em alguns outros lugares em diferentes épocas – esta celebração acabou se tornando uma espécie de provocação pública dos católicos contra os protestantes. Na França, os católicos desfilavam armados, e a procissão eucarística frequentemente acabava em confronto violento contra os “inimigos”. Como foi possível chegar a algo tão contrário ao sentido cristão da Eucaristia?!
Ma este é um dia solene e belo, comparável àquele da nossa primeira eucaristia. Nem a exigência de comportar-se exemplarmente, nem a coreografia a ser cumprida minuciosamente, nem a roupa nova e a presença da família e dos parentes conseguiram diminuir o sentido profundo daquela nossa primeira participação na mesa da Eucaristia. “Deus se entregou por mim! Ele vem morar em meu coração purificado pela confissão e disposto a sempre amar e servir... Bendito seja o Deus altíssimo”
Entre tantos testemunhos da emoção sincera que muitos experimentaram na primeira eucaristia, recordo o que ocorreu com João Berthier, cuja primeira Eucaristia teve lugar na festa da Santíssima Trindade, em 1852. Um colega diz que ficou profundamente tocado ao perceber que, ao seu lado, depois de receber a Eucaristia, Berthier chorava. Só mais tarde seu amigo entenderia que aquelas não eram lágrimas de tristeza, mas de uma gratidão e de uma felicidade não traduzíveis em palavras.
 “Fazei isto em minha memória.”
A festa de hoje também soleniza a beleza profunda da nossa Eucaristia cotidiana ou dominical. Mais que uma obrigação, participar frequentemente da Eucaristia é uma necessidade e um direito dos/as discípulos/as de Jesus Cristo; uma forma de vencer a sensação e a tentação da fragmentação que nos ronda nas atividades cotidianas; uma oportunidade de acolher a Palavra sempre viva de Jesus Cristo, de confirmar nossa adesão ao seu Testamento e de tecer o fio do vínculo que nos une aos outros/as.
Mas é preciso ter presente que Jesus, quando ordena a seus discípulos “façam isso em memória de mim”, não está intituindo um rito a ser repetido com reverência mas propondo uma forma de vida a ser assumida com coerência. Como todos os gestos simbólicos que repetimos cotidianamente, a Eucaristia é um sinal sacramental que aponta para algo mais profundo e transcendente: em Jesus, Deus se faz dom por nós, a fim de que a nossa vida adquira forma de dom solidário pelo próximo. É assim que somos uma memória viva de Jesus Cristo no mundo.
Diante do dom total de Jesus Cristo pela vida do mundo que celebramos em cada Eucaristia, recolhemos nas mãos o melhor de nós mesmos/as e, como o rei Melquisedec, oferecemos a Deus em favor dos irmãos e irmãs. Em todos os pequenos e grande gestos de partilha Deus vai vencendo as forças que se opõem ao ser humano e vai regenerando o céu e a terra.
“Dai-lhes vós mesmos de comer!”
Voltemos nossa atenção para o Evangelho que nos é proposto neste dia. Pouco antes desta cena, Jesus havia convocado os Doze e lhes havia dado “poder e autoridade sobre todos os demônios e para curar doenças” (Lc 9,1). Quando o grupo volta desta espécie de estágio missionário, Jesus o leva para descansar fora do território judaico. Então, os apóstolos contam animados o sucesso que haviam experimentado. Não obstante ser aquele um lugar deserto, as multidões necessitadas vão atrás de Jesus e dos discípulos. Sem se incomodar, Jesus lhes fala do reino de Deus e cura as pessoas doentes.
Mas parece que o repentino e recente sucesso havia subido à cabeça dos apóstolos. A impressão é que eles se sentem uma elite especial e separada do resto do povo, um grupo que ocupa um grau hierárquico superior, um grêmio fechado e dotado de poder e autoridade recebida de Deus. No fim do dia, o grupo dos Doze se aproxima de Jesus e simplesmente lhe dá uma ordem: “Despede a multidão para que possam ir aos povoados e sítios vizinhos procurar hospedagem e comida...” Como se a comunidade eclesial e suas lideranças não exististisse exatamente para dar uma resposta efetiva às alegrias e tristezas, angústias e esperanças das pessoas e grupos humanos concretos...
“E todos comeram e se saciaram...”
Jesus reage ordenando sem meias-palavras que são eles os encarregados de cuidar do povo. Jeus não se importa se eles têm ou não provisões suficientes, e pede que organizem o povo em comunidades. Depois de se apropriar dos poucos pães e dos peixes dos apóstolos, como um pai de família, Jesus eleva, abençoa, parte e dá aos discípulos para que distribuam. Termina o tempo do “cada um para si” e começa o tempo do convívio, da partilha e do serviço. Inaugura-se o tempo de comunhão.
É possível que aquela multidão de gente necessitada fosse excluída do judaísmo, gente que não merecia nenhuma consideração da parte das autoridades religiosas de Jerusalém. Mas essa gente recebe atenção prioritária da parte de Jesus, e o mesmo deve valer para a Igreja. “Todos comeram e se saciaram.” Depois que estes forem servidos, a sobra – 12 cestos, 12 tribos de Israel – vai para os demais! A atenção dos cristãos é inclusiva e universal, mas dá prioridade aos últimos ou excluídos.
“Isto é o meu corpo entregue por vós...”
Viver a Eucarista é entrar nesta lógica do dom, da prioridade dos últimos e mais frágeis. Não consigo entender uma Eucaristia que exclui, pois diante deste sacramento não se deve dizer “se aproxime da mesa da Eucaristia quem for digno/a e estiver preparado/a”, mas “Senhor, eu não sou digno de participar da tua mesa...” A Eucaristia é um espírito a ser encarnado, e não uma doutrina que recrimina e exclui, ou um objeto a ser reverenciado.
Santo Tomás de Aquino diz que na Eucaristia temos o “documento do imenso amor de Cristo pela humanidade” e “fazemos memória da altíssima caridade que Cristo demonstrou na sua paixão”. A questão central não é tanto sua presença no pão quanto seu caminho de amor apaixonado e solidário pela humanidade. O ponto central não é propriamente a transubstanciação do pão e do vinho mas a presença real e contínua de Cristo nos nossos gestos de partilha e solidariedade.
“Vos sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros deste corpo”, diz Paulo (1Cor 12,27). A nossa vocação é nada mais e nada menos que ser o corpo histórico de Cristo no mundo: um corpo feito dom e comunhão; um corpo no qual os membros são iguais, diferentes e reciprocamente solidários; um corpo no qual os membros mais frágeis e considerados menos decentes são tratados com maior honra.
“Até que ele venha...”
Como povo reconciliado, deixamos juntos/as o ambiente cálido e amistoso da mesa da Eucaristia para levar seu dinamismo ao coração da cidade. Depois de participar agradecidos/a da Ceia na qual Jesus sacramentaliza sua vida feita dom, vamos às ruas da cidade para levar a todos os cantos e brechas o “vírus da Eucaristia”, a sede de comunhão, o propósito irrevocável de dar o melhor de nós pelos outros.
Eu não imagino esta caminhada com cânticos como “hóstia branca, no altar consagrada...” ou “queremos Deus, homens ingratos”. Cabem melhor convites e anúncios como este: “Entra na roda com a gente também! Você é muito importante! Vem!” Ou então: “Desempregados, pecadores, desprezados e os marginalizados... Venham todos se ajuntar à nossa marcha para a nova sociedade. Quem nos ama de verdade, pode vir que tem lugar!” Afinal, o corpo de Cristo é a comunidade de irmãos e irmãs!

Pe. Itacir Brassiani msf