quinta-feira, 30 de maio de 2013

Caminhando nos arredores de Nazaré

De Nazaré pode vir alguma coisa boa?

“Formamos um só corpo...”
Em Nazaré começamos propriamente nosso roteiro por esta terra considerada santa. E isso aconteceu no dia em que celebramos a solenidade do Corpo e Sangue de Jesus. Assim, logo de manhã, celebramos em português a santa missa, na capela da casa que nos hospeda. Além do nosso grupo, duas Irmãs da casa e alguns hóspedes participaram, tanto quanto possível, da missa numa língua tão diferente.
Nosso grupo em Nazaré, diante da basilica da Anunciaçao
Cantando algumas estrofes do canto ‘Jovem galileu’, recordamos que, conforme nos recorda o evangelho de Lucas 9,11-17, “naquela relva, ao entardecer, o mundo viu nascer a paz de uma esperança”. No belo hino italiano da comunhão, cantávamos que “Cristo é o pão verdadeiro partilhado aqui entre nós. Formamos um só corpo, e Deus estará conosco.”
Mas recordamos também que exatamente no chão que estamos pisando, há pouco mais de dois mil anos atrás, o eterno e terno dinamismo comunicativo de Deus estabeleceu defintitivamente a comunhão entre o amor divino e a carne humana. Antes de fazer-se pão, o Amor fez-se carne. Fez-se carne em Nazaré para depois fazer-se pão em Jerusalém. “E sua fama se espalhou e todos vinham ver o fenômeno do jovem pergador...”
“Este não é o filho de José?”
No café da manhã, partilhamos a mesa e a conversa com um pequeno grupo de hóspedes, e depois saímos em buscas dos lugares pisados pelos pés nus e livres de Jesus e dos seus discípulos. Sem seguir a lógica da história de Deus em Nazaré, nossa primeira parada foi no despenhadeiro ao qual Jesus foi levado logo depois da sua estréia como pregador famoso em sua própria cidade.
Panorama desde a montanha de onde quiseram precipitar Jesus
Lucas nos conta que, depois de ler o profeta Isaías na sinagoga da sua vila, Jesus comentau: “Hoje estas palavras estão se realizando...” A comunidade ficou encantada com sua breve pregação. Mas pouco depois começou a se interrogar, pois o conhecia muito bem: Jesus era o carpinteiro, o filho de José, que trabalhara com seu pai naquela pequena oficina que todos conheciam...
Depois de ouvi-lo dizer que nenhum profeta é bem aceito na sua própria terra, e citar Elias e Eliseu, que também pouco se importaram com aqueles que pertenciam à própria raça e à religião, a comunidade reunida na sinagoga de Nazaré se rebelou e arrastou Jesus para o cume da montanha, ameaçando jogá-lo precipício abaixo (cf. Lc 4,14-32). Mas ele passou tranquilamente pelo meio deles e prosseguiu sua missão como se nada tivesse acontecido...
Nada de estranho! Isso às vezes acontece também conosco: num instante passamos de uma adesão emocionada e entusiasmada ao Evangelho ao protesto mal humorado e à negação prática daquilo que professamos. E quantas vezes desejaríamos calar a boca de alguns profetas e profetizas que nos incomodam e dos quais julgamos conhecer todos os defeitos e pecados de origem?
Igreja da transfiguraçao, no alto do monte Tabor
“Este é o meu filho amado, escutem o que ele diz!”
Descemos esta montanha de trágica memória e subimos outra: o monte Tabor, o lugar onde Jesus se transfigurou. Trata-se de uma colina de seiscentos metros de altura, isolada das demais montanhas, característica que lhe valeu o nome: Tabor significa, literalmente, umbigo... Ao pé da montanha tivemos que deixar nosso micro-ônibus e usar um transporte especial, adaptado à íngreme subida.
Não sei nem quero saber como foi que Jesus, Pedro, Tiago e João subiram a montanha. Mas, depois de ver a paisagem desde o alto do Tabor, creio que os outro discípulos, além do rosto transfigurado de Jesus e das palavras que ressoaram do céu, perderam uma visão magnífica. E isso sem querer fazer menos do significado profundo da experiência daqueles nossos três operários da primeira hora, tão iguais e tão melhores que nós.
Na capelinha dedicada ao profeta Elias lemos o relato da transfiguração e escutamos de novo as enfáticas palavras que ressoaram do vento e da nuvem: “Este é meu filho amado... Escutem o que ele diz!” (cf. Lc 9,28-36) Sim, não podemos ficar na superficialidade, desejar prolongar no tempo a bela visão que temos desde o cimo do Tabor, bisbilhotar os lugares por onde Jesus passou... Precisamos ouvir e acolher o que ele diz, e ele nos fala de serviço fraterno e incansável no amor, um serviço que não teme o rebaixamento e a cruz...
“Ave, cheia de graça!”
A casa de Maria, no interior da igreja da Anunciaçao
Descer é mais fácil de subir, mas não depois de experiências e visões magníficas e profundas... Descemos do Tabor e nos dirigimos a Nazaré. No percurso de pouco mais de meia-hora, fui lembrando e cantarolando o refrão do Loacir: “Eu quero ir pra Nazaré, para encontrar-me com Jesus, Maria e José. Eu quero vir de Nazaré com mais amor e mais ardor na minha fé...”
Fomos diretamente à basílica da Anunciação, edifício em estilo moderno, construído na década de 1960, exatamente sobre aquela que seria a casa de Maria de Nazaré. Depois de contemplar rapidamente as várias imagens de Maria conforme são cultuadas nos diversos países, paramos e cantamos juntos ‘Salve Regina’, gravado em latim na parede externa do lado direito da basílica.
O interior da basílica é de uma beleza moderna e exuberante, e convida ao louvor agradecido. Mas o que emociona é descer ao plano inferior e contemplar as paredes brutas e rochosas da casa de Maria... Um mistério de pobreza e de beleza, que só um olhar divino pode elevar e amar... Como Deus teria falado ao coração daquela anônima menina de Nazaré? Que estratégias e meios teria usado? E como o cristianismo continua ousando afirmar que Deus usa caminhos assim tão inusitados e fora da lógica das instituições para manifestar sua vontade e realizar sua obra libertadora?
Continuamos lembrando a delicadeza de um mensageiro de Deus que saúda Maria reconhecendo seu charme e o encanto que despertou no próprio Deus. Mas não podemos esquecer que ele não o faz à margem do relacionamento matrimonial de Maria com José, mas insiste em contar com a adesão de um casa prometido em casamento e realmente casado. Fico triste quando vejo, às vezes num mesmo templo, Maria de um lado e José ausente ou lá no outro canto, como se tivessem medo ou vergonha um ao outro. Que ninguém separe aquilo que Deus uniu!
“Na casa de Nazaré, pequena e pobre casa...”
Igreja sobre a carpintaria de José
Da basílica da Anunciação seguimos para a carpintaria de José, que infelizmente não pudemos visitar, pois está sendo objeto de escavações e estudos. No breve caminho de uns cem metros que separa a basílica da igreja construída sobre a famosa carpintaria, apreciamos escavações que trouxeram à luz as dependências daquela que teria sido a casa de Maria: buracos que serviam de depósito de água e de cereais, a cozinha...
Na igreja da carpintaria de José paramos para um momento de oração. Meditamos sobre as palavras que o anjo disse a Maria em nome de Deus e a resposta humana e generosa que ela soube dar (Lc 1,26-38). “Um coração que era ‘sim’ para vida, um coração que era ‘simì para o irmão; um coração que era ‘sim’ para Deus... Imaculada, Maria de Deus, coração pobre acolhendo Jesus. Imaculada, Maria do povo, mãe dos aflitos que estão junto à cruz...”
Como estávamos no espaço provavelmente ocupado pela casa da Sagrada Família de Nazaré, não podíamos deixar de rezar com as palavras da bela canção de origem sul-americana: “Na casa de Nazaré, pequena e pobre casa; no seu trabalho está José com o menino que deseja aprender... Trabalha e canta a esposa do carpinteiro, e o mundo inteiro sorri e conta também...”
“Façam tudo o que ele vos disser!”
Uma talha de pedra como aquelas de Cana...

Caná da Galiléia fica há poucos quilômetros d Nazaré. Na época de Jesus, pode ter chegado a dois mil habitantes (contra os cento e cinquenta de Nazaré). Isso pode nos ajudar a compreender dois fatos. O primeiro: que Jesus, sua mãe e seus discípulos tenham podido participar de uma festa de casamento em Caná (cf. Jo 2,1-12). O segundo: que Natanael, que era de Caná, uma cidade relativamente importante, tenha perguntado se de uma coisa insignificante como Nazaré pudesse sair alguma pessoa importante (cf. Jo 1,35-52).
Depois de almoçarmos um gostoso kebab (uma espécie de hamburguer árabe), fizemos o trajeto de Nazaré a Caná. Visitamos a igreja construída sobre os restos daquele que seria o lugar da festa na qual Jesus transformou água em vinho a pedido de Maria. Ela soube ‘adiantar o relógio’ para que ‘a hora’ de Jesus fosse antecipada em favor de uma festa que não poderia terminar em vergonha para os anfitriões. Nas escavações foram encontradas – e hoje estão expostas – talhas semelhantes às que teriam sido usadas naquela festa memorável.
Ali preparamos um momento de oração, recordando o que Maria nos diz: “Façam o que Jesus vos disser!” São palavras semelhantes àquelas que ressoaram da nuvem, no Tabor, ali perto: “Escutem o que ele diz!” Maria insiste que precisamos ouvir e realizar a Boa Notícia anunciada pelo seu filho, e então a festa jamais acabará. Naquele momento, abençoamos o Herculano e a Sandra que, no dia 19 passado, completaram quarenta anos de matrimônio, um dos motivos que os trouxe à terra santa.
A fonte de Nazaré
A igreja no interior da qual se encontra a fonte de Nazaré
Os estudos arqueológicos chegaram à conclusão de que, no tempo de Jesus, a vila de Nazaré tinha uma única nascente de água, na qual as trinta ou quarenta famílias se abasteciam. No final da tarde de hoje visitamos essa fonte, que está no interior de uma igreja ortodoxa grega, e ainda jorra água. Teria sido ali que José admirava a sua jovem preferida, enquanto ela enchia seus cântaros de água? Quantos encontros, lamentos e suspiros das moças e mulheres aquelas pedras escondem e conservam?
Assim é Nazaré e seus arredores. Tudo é tão normal que até espanta. Uma normalidade tão trivial que levou alguns a perguntar se dali podia surgir algo de bom. Como pode tamanha simplicidade e cotidianidade estar na origem dos altos mistérios que encantam e seduzem meio mundo há dois mil anos?
Quando vistou Nazaré, em 1962, Paulo VI dizia que aqui em Nazaré encontramos a escola do Evangelho. Aqui aprendemos as lições do silêncio, do trabalho, da encarnação da fé na vida cotidiana, da encarnação silenciosa do Verbo na história. Aqui a gente vem para aprender a crer, com coerência e responsabilidade. Oxalá seja assim também conosco, no Ano da Fé.

Itacir Brassiani msf

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