De Nazaré pode vir alguma coisa boa?
“Formamos
um só corpo...”
Em Nazaré começamos propriamente nosso
roteiro por esta terra considerada santa. E isso aconteceu no dia em que
celebramos a solenidade do Corpo e Sangue de Jesus. Assim, logo de manhã, celebramos
em português a santa missa, na capela da casa que nos hospeda. Além do nosso
grupo, duas Irmãs da casa e alguns hóspedes participaram, tanto quanto
possível, da missa numa língua tão diferente.
Nosso grupo em Nazaré, diante da basilica da Anunciaçao |
Mas recordamos também que exatamente no
chão que estamos pisando, há pouco mais de dois mil anos atrás, o eterno e
terno dinamismo comunicativo de Deus estabeleceu defintitivamente a comunhão
entre o amor divino e a carne humana. Antes de fazer-se pão, o Amor fez-se
carne. Fez-se carne em Nazaré para depois fazer-se pão em Jerusalém. “E sua
fama se espalhou e todos vinham ver o fenômeno do jovem pergador...”
“Este
não é o filho de José?”
No café da manhã, partilhamos a mesa e a
conversa com um pequeno grupo de hóspedes, e depois saímos em buscas dos
lugares pisados pelos pés nus e livres de Jesus e dos seus discípulos. Sem seguir
a lógica da história de Deus em Nazaré, nossa primeira parada foi no
despenhadeiro ao qual Jesus foi levado logo depois da sua estréia como pregador
famoso em sua própria cidade.
Panorama desde a montanha de onde quiseram precipitar Jesus |
Depois de ouvi-lo dizer que nenhum profeta
é bem aceito na sua própria terra, e citar Elias e Eliseu, que também pouco se
importaram com aqueles que pertenciam à própria raça e à religião, a comunidade
reunida na sinagoga de Nazaré se rebelou e arrastou Jesus para o cume da
montanha, ameaçando jogá-lo precipício abaixo (cf. Lc 4,14-32). Mas ele passou
tranquilamente pelo meio deles e prosseguiu sua missão como se nada tivesse
acontecido...
Nada de estranho! Isso às vezes acontece
também conosco: num instante passamos de uma adesão emocionada e entusiasmada
ao Evangelho ao protesto mal humorado e à negação prática daquilo que
professamos. E quantas vezes desejaríamos calar a boca de alguns profetas e
profetizas que nos incomodam e dos quais julgamos conhecer todos os defeitos e
pecados de origem?
Igreja da transfiguraçao, no alto do monte Tabor |
“Este
é o meu filho amado, escutem o que ele diz!”
Descemos esta montanha de trágica memória
e subimos outra: o monte Tabor, o lugar onde Jesus se transfigurou. Trata-se de
uma colina de seiscentos metros de altura, isolada das demais montanhas,
característica que lhe valeu o nome: Tabor significa, literalmente, umbigo...
Ao pé da montanha tivemos que deixar nosso micro-ônibus e usar um transporte
especial, adaptado à íngreme subida.
Não sei nem quero saber como foi que
Jesus, Pedro, Tiago e João subiram a montanha. Mas, depois de ver a paisagem
desde o alto do Tabor, creio que os outro discípulos, além do rosto
transfigurado de Jesus e das palavras que ressoaram do céu, perderam uma visão
magnífica. E isso sem querer fazer menos do significado profundo da experiência
daqueles nossos três operários da primeira hora, tão iguais e tão melhores que
nós.
Na capelinha dedicada ao profeta Elias
lemos o relato da transfiguração e escutamos de novo as enfáticas palavras que
ressoaram do vento e da nuvem: “Este é meu filho amado... Escutem o que ele
diz!” (cf. Lc 9,28-36) Sim, não podemos ficar na superficialidade, desejar
prolongar no tempo a bela visão que temos desde o cimo do Tabor, bisbilhotar os
lugares por onde Jesus passou... Precisamos ouvir e acolher o que ele diz, e
ele nos fala de serviço fraterno e incansável no amor, um serviço que não teme
o rebaixamento e a cruz...
Descer é mais fácil de subir, mas não
depois de experiências e visões magníficas e profundas... Descemos do Tabor e
nos dirigimos a Nazaré. No percurso de pouco mais de meia-hora, fui lembrando e
cantarolando o refrão do Loacir: “Eu quero ir pra Nazaré, para encontrar-me com
Jesus, Maria e José. Eu quero vir de Nazaré com mais amor e mais ardor na minha
fé...”
Fomos diretamente à basílica da
Anunciação, edifício em estilo moderno, construído na década de 1960,
exatamente sobre aquela que seria a casa de Maria de Nazaré. Depois de
contemplar rapidamente as várias imagens de Maria conforme são cultuadas nos
diversos países, paramos e cantamos juntos ‘Salve Regina’, gravado em latim na
parede externa do lado direito da basílica.
O interior da basílica é de uma beleza
moderna e exuberante, e convida ao louvor agradecido. Mas o que emociona é
descer ao plano inferior e contemplar as paredes brutas e rochosas da casa de
Maria... Um mistério de pobreza e de beleza, que só um olhar divino pode elevar
e amar... Como Deus teria falado ao coração daquela anônima menina de Nazaré?
Que estratégias e meios teria usado? E como o cristianismo continua ousando
afirmar que Deus usa caminhos assim tão inusitados e fora da lógica das
instituições para manifestar sua vontade e realizar sua obra libertadora?
Continuamos lembrando a delicadeza de um
mensageiro de Deus que saúda Maria reconhecendo seu charme e o encanto que
despertou no próprio Deus. Mas não podemos esquecer que ele não o faz à margem
do relacionamento matrimonial de Maria com José, mas insiste em contar com a
adesão de um casa prometido em casamento e realmente casado. Fico triste quando
vejo, às vezes num mesmo templo, Maria de um lado e José ausente ou lá no outro
canto, como se tivessem medo ou vergonha um ao outro. Que ninguém separe aquilo
que Deus uniu!
“Na
casa de Nazaré, pequena e pobre casa...”
Igreja sobre a carpintaria de José |
Na igreja da carpintaria de José paramos
para um momento de oração. Meditamos sobre as palavras que o anjo disse a Maria
em nome de Deus e a resposta humana e generosa que ela soube dar (Lc 1,26-38).
“Um coração que era ‘sim’ para vida, um coração que era ‘simì para o irmão; um
coração que era ‘sim’ para Deus... Imaculada, Maria de Deus, coração pobre
acolhendo Jesus. Imaculada, Maria do povo, mãe dos aflitos que estão junto à
cruz...”
Como estávamos no espaço provavelmente
ocupado pela casa da Sagrada Família de Nazaré, não podíamos deixar de rezar
com as palavras da bela canção de origem sul-americana: “Na casa de Nazaré,
pequena e pobre casa; no seu trabalho está José com o menino que deseja
aprender... Trabalha e canta a esposa do carpinteiro, e o mundo inteiro sorri e
conta também...”
Caná da Galiléia fica há poucos
quilômetros d Nazaré. Na época de Jesus, pode ter chegado a dois mil habitantes
(contra os cento e cinquenta de Nazaré). Isso pode nos ajudar a compreender
dois fatos. O primeiro: que Jesus, sua mãe e seus discípulos tenham podido
participar de uma festa de casamento em Caná (cf. Jo 2,1-12). O segundo: que
Natanael, que era de Caná, uma cidade relativamente importante, tenha perguntado
se de uma coisa insignificante como Nazaré pudesse sair alguma pessoa
importante (cf. Jo 1,35-52).
Depois de almoçarmos um gostoso kebab (uma espécie de hamburguer árabe),
fizemos o trajeto de Nazaré a Caná. Visitamos a igreja construída sobre os
restos daquele que seria o lugar da festa na qual Jesus transformou água em
vinho a pedido de Maria. Ela soube ‘adiantar o relógio’ para que ‘a hora’ de
Jesus fosse antecipada em favor de uma festa que não poderia terminar em
vergonha para os anfitriões. Nas escavações foram encontradas – e hoje estão
expostas – talhas semelhantes às que teriam sido usadas naquela festa
memorável.
Ali preparamos um momento de oração,
recordando o que Maria nos diz: “Façam o que Jesus vos disser!” São palavras
semelhantes àquelas que ressoaram da nuvem, no Tabor, ali perto: “Escutem o que
ele diz!” Maria insiste que precisamos ouvir e realizar a Boa Notícia anunciada
pelo seu filho, e então a festa jamais acabará. Naquele momento, abençoamos o
Herculano e a Sandra que, no dia 19 passado, completaram quarenta anos de
matrimônio, um dos motivos que os trouxe à terra santa.
A
fonte de Nazaré
A igreja no interior da qual se encontra a fonte de Nazaré |
Assim é Nazaré e seus arredores. Tudo é tão
normal que até espanta. Uma normalidade tão trivial que levou alguns a
perguntar se dali podia surgir algo de bom. Como pode tamanha simplicidade e
cotidianidade estar na origem dos altos mistérios que encantam e seduzem meio
mundo há dois mil anos?
Quando vistou Nazaré, em 1962, Paulo VI
dizia que aqui em Nazaré encontramos a escola do Evangelho. Aqui aprendemos as
lições do silêncio, do trabalho, da encarnação da fé na vida cotidiana, da
encarnação silenciosa do Verbo na história. Aqui a gente vem para aprender a
crer, com coerência e responsabilidade. Oxalá seja assim também conosco, no Ano da Fé.
Itacir Brassiani msf
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