sexta-feira, 31 de maio de 2013

Eucaristia e Corpo

A EUCARISTIA E O CORPO FEMININO  II
 Maria Clara Lucchetti Bingemer
Com  a festa de Corpus Christi, convém permanecermos em continuidade  com nossa reflexão na crônica da semana passada: a afinidade simbólica e real  da Eucaristia com o corpo da mulher. Nunca é suficiente o maravilhamento e a  ação de graças diante do milagre que faz com que o corpo da mulher seja o  sacramento, o sinal sensível pelo qual toda nova vida é gerada e  alimentada.
Assim  é que encontramos pelo mundo mulheres que vivenciam isso de diversas maneiras.  Sendo ou não mães biológicas; engravidando ou não; amamentando ou não.  A  realidade aberta de seus corpos permanece referência poderosamente evocativa da presença real e da transubstanciação que a cada momento todo ser humano  é chamado a sinalizar com sua própria  corporeidade.
Assim  foi com aquelas mulheres argentinas que com um pano branco na cabeça –  simbolizando as fraldas que haviam tantas vezes trocado em seus filhos  perdidos e desaparecidos – passeavam silenciosas sob a janela do ditador.   Eram donas de casa, mães e avós, apenas.  Começaram a reunir-se  para protestar diante da Casa Rosada, em Buenos Aires.  Foi-lhes dito que  não podiam ficar paradas ali nem falar.  Passaram então a caminhar  silenciosamente.  Todo dia, cada dia, durante muito  tempo.
O que  traziam as chamadas “loucas” da Praça de Maio?  Traziam para o espaço  público a orfandade dos filhos e netos perdidos, que sabiam mortos e dos quais  reivindicavam ao menos os corpos para enterrá-los dignamente.  Traziam a  ausência dos netos apenas conhecidos e que nunca mais haviam visto. Queriam  criá-los, cuidá-los.  Nada mais privado e familiar do que a reivindicação  daquelas mulheres silenciosas que, com seu gesto eucarístico exposto em praça  pública, contribuíram para desestabilizar uma das mais sangrentas ditaduras do  continente.
Assim  é também com tantas mulheres que vivem a dor e a frustração tremenda da  pobreza e da desnutrição que as leva a não ter nada em seu magro seio para  alimentar os filhos.  O bispo de Crateús atravessava a cidadezinha  pequena e pobre quando viu uma delas.  Com seu corpo extensivo, tinha  crianças no colo, nas costas, agarradas à saia, ao redor.  Mas o que lhe  chamou a atenção foi o choro desesperado do bebê que estava em seus braços.   Sem dúvida, tinha  fome.
O bispo  aproximou-se da mulher esquálida e abatida.  E perguntou-lhe por que não  dava de mamar ao bebê. Ela disse não poder fazê-lo.  E ante sua  insistência, abriu o seio sobre o qual o bebê se atirou vorazmente.  E  sugou sangue.  Já não restava nada mais naquele seio que deveria estar  túrgido de leite, mas se apresentava vazio e seco como a terra do sertão onde  a mulher tentava fazer seus filhos sobreviverem à seca inclemente e à  injustiça diuturna e cruel.  
Outras  mulheres que não foram mães biológicas sentiram em si mesmas esse retorcer  eucarístico das entranhas na urgência do dom de sua vida para alimentar  outros.  É assim que Simone Weil, filósofa e mística francesa, pouco  antes de morrer, escreve “desejar ser devorada por Deus, transformada em  substância de Cristo  e dada em alimento a todos os desventurados cujo  corpo e alma sentem falta de alguma espécie de nutrição.”
É assim  igualmente que Etty Hillesum, a jovem mística judia que morreu aos 29 anos na  câmera de gás em Auschwitz, escreveu em seu diário quando sentiu que as garras  do exército hitlerista se fechavam sobre seu frágil corpo. Enquanto servia e  ajudava os que como ela aguardavam o comboio que os levaria em viagem sem  volta para a Polônia, escreveu: “Eu parti meu corpo como pão e o reparti... E  por que não, eles estavam famintos e sentiam falta disso por tanto  tempo...”

Corpo  partido e repartido, carne dada e comida e consumida.  Este é o gesto  derradeiro e definitivo de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, em sua  encarnação, vida, morte e ressurreição.  Esta é sua maneira de continuar  presente entre nós. Esta é a graça que temos todos nós, seres humanos – mas de  maneira especial as mulheres – de podermos ser presença real e alimento dado  para saciar todas as fomes que impedem a vida de ser plena.  

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