Em Deus vivemos,
caminhamos e sonhamos.
(Pr 8,22-31; Sl 8; Rm 5,1-5; Jo
16,12-15)
A festa da Santíssima Trindade é um
convite a mergulhar no mistério de Deus e deixar que ele nos envolva, abrace e
dinamize. Dialogando com os intelectuais de Atenas, Paulo afirma que em Deus
“vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28). Deus é o fundamnento de todas as
formas de vida, o dinamismo de todas as transformações, o horizonte do sentido
definitivo. Nossa vida se desenrola no Filho,
o caminho; sob o Espírito Santo, o guia;
em direção ao Pai, origem e meta. Celebremos e meditemos sobre o mistério de Deus revelado em Jesus Cristo ,
conscientes de que falar sobre Deus é falar sobre o mistério mais profundo do
ser humano. E esta é uma tarefa tão difícil quanto necessária.
“A tribulação gera constância...”
No trecho do Evangelho proclamado na
festa de hoje, Jesus fala aos discípulos no contexto da ceia, num clima de
apreensão. Ele não está preocupado em discorrer sobre Deus recorrendo a
conceitos abstratos e técnicos. Seu objetivo é prevenir os discípulos a respeito das dificuldades que deverão
enfrentar e encorajá-los frente às perseguições que sobrevirão. Jesus evita
explicitamente sobrecarregar os discípulos com doutrinas tão difíceis quanto
inócuas.
Depois de antecipar sacramentalmente
na ceia o dom de si que se radicalizaria na cruz, Jesus lembra aos discípulos
que sua vida e seu ensino têm consequências que eles ainda não são capazes de
compreender. “Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não sois capazes de
compreender agora.” E acena para o dom do
Espírito da Verdade, à luz do qual eles saberão entender o dinamismo e a
meta do projeto de Deus, o caminho do amor crucificado.
Vivemos também nós tempos complexos,
marcados pelo isolamento, pela fragmentação e pelas acusações dirigidas – nem
sempre sem fundamento – contra a Igreja católica e suas lideranças. E a atitude
mais adequada dos cristãos católicos seria abandonar a auto-defesa ingênua ou
mentirosa e se confiarem com humildade e abertura ao Espírito da verdade,
deixando que ele os guie à Verdade plena, mesmo que esta seja dolorida. A
Igreja precisa efetivamente viver, caminhar e se inspirar em Deus.
“Tudo o que o Pai tem é meu...”
E Deus é um horizonte e um caminho de vida, e não uma equação
matemática ou uma muralha inexpugnável. Ao elaborar o conceito ‘trindade’ ou
‘tri-unidade’ a tradição cristã não está propondo uma charada ou um enigma a
ser decifrado. Sobre Deus é preciso falar em termos de profundidade e de
intimidade, e não em termos de quantidade. Não há porque quebrar a cabeça na
tentativa de conjugar as três pessoas com uma única natureza. Esta não é a
questão fundamental.
O conceito ‘trindade’ pretende
sublinhar, em primeiro lugar, que Deus é
mistério de comunhão e de liberdade. E isso é importante no contexto de uma
cultura que reduz tudo a fragmentos isolados e a relações fluídas e numa visão
de Igreja centrada na autoridade hierárquica e na obediência submissa e
obsequiosa. Sendo dinamismo vivo de
comunhão mediante o reconhecimento do outro e o dom generoso de si, Deus é caminho e imagem de uma humanidade
aberta, relacional e solidária, como também de uma Igreja que se organiza como uma comunidade de dons e ministérios.
É a partir desta comunhão essencial
que podemos entender e realizar nossa vocação à liberdade. Na Trindade, a liberdade se expressa como força de ação e
dinamismo de doação que não se submete ao imperativo da preservação de si
mesmo e dos próprios interesses, mas se
rege pelo princípio da afirmação da dignidade e da integridade do outro
enquanto outro. Daqui emerge uma proposta de Igreja liberta da tentação de
agir mediante o medo e a imposição, e uma imagem de pessoa humana centrada no
reconhecimento da dignidade do próximo.
“Porque o amor de Deus foi derramado em nossos
corações...”
Em outras palavras, o conceito
‘trindade’ sublinha que Deus é dinamismo
de amor e de lealdade. É verdade que atualmente a idéia de amor se tornou
refém de romantismos e sentimentalismos, da liquidez incontrolável e
inconsistente das relações. Por isso mesmo, só entendemos o que significa o
verbo amar olhando para a vida concreta de Jesus Cristo. Sua inteira história,
de Belém a Jerusalém, da encarnação à páscoa, das sinagogas ao templo, da
acolhida dos pecadores às refeições com eles, da compaixão pelos pobres às
denúncias contra os opressores, é um narração viva do que é o amor.
“Compreendemos o que é o amor porque Jesus deu a sua vida por nós...” (1 Jo
3,16).
Esta é a glória ou o brilho de Deus
e, ao mesmo tempo, a honra e a celebridade conferida à pessoa humana pelo Espírito
Santo. Paulo não hesita em afirmar que nossa honra está na glória de um Deus
que, por causa do seu amor leal, não foge à cruz. E é por isso que, como ele,
não podemos deixar-nos intimidar pelas dificuldades e perseguições que a missão
acaba suscitando. Pois “a tribulação gera constância, a constância leva a uma
virtude provada, e a virtude provada desabrocha na esperança”.
A qualidade do amor se manifesta na lealdade. O Pai é a fonte
e origem de um amor que se comunica no Filho e permanece com ele na sua
compaixão pela humanidade. O Filho é o
amado do Pai, aquele que responde amando sem medida Aquele que o ama e o
ser humano gerado neste mesmo amor. O Espírito é nada mais que este dinamismo pessoal de dom de si, comum ao
Pai e ao Filho e derramado em todas as criaturas. O Filho e o Espírito, cada um
a seu modo, nos asseguram que este amor perdura no tempo. Deus nos ama desde o
seio materno e mesmo depois das nossas muitas e reiteradas faltas.
“Quando preparaste os céus, ali eu estava...”
A criação inteira manifesta o rosto
de um Deus amigo. Precisamos tomar distância do estéril debate que divide
criacionistas e evolucionistas e lembrar que, afirmando que Deus é o criador de
tudo o que existe, estamos querendo dizer que a criação é dotada de beleza e de bondade, e que há uma comunhão
fundamental que sustenta e une todas as criaturas singulares. A fraterna amizade que une todo o criado é
mais importante e fundamental que qualquer subsequente hierarquização.
Como a salvação e a santificação, também
a criação é uma obra trinitária: do
Pai, pelo Filho, no Espírito. O trecho do livro dos Provérbios que lemos na
celebração de hoje é sugestivo e belíssimo. A criação não é um fatigante
trabalho realizado por um agente isolado e superior. A comunhão é anterior à individuação das coisas, e a criação é uma
obra comunitária! À frente e ao lado de quem cria hà uma Presença, alguém que é
para o criador o que é mestre-de-obras para o construtor. Mais ainda: a obra
criadora de Deus se cumpre no encanto, na alegria e no gozo da comunhão.
Daí que precisamos superar uma visão
mercantilista das coisas e ler nas criaturas a mensagem sillenciosa de quem as
criou e as fez nossas parceiras e amigas. “Os céus narram a glória de Deus, e o
firmamento anuncia a obra de suas mãos. O dia transmite ao dia a mensagem, e a
noite conta a notícia a outra noite...” (Sl 19/18). “Quando olho para o céu,
obra de tuas mãos, vejo a lua e as estrelas que criaste: que coisa é o homem,
para dele te lembrares, que é o ser humano, para o visitares?” (Sl 8,4-5)
“Da boca das crianças te procuras um louvor...”
A boca dos poderosos não consegue
anunciar e louvar Deus convenientemente. Como o hábito do cachimbo deixa a boca
torta, o poder acaba deixando seus traços na palavra dos que a ele estão aferrados.
O poder se dá bem com mandatos e exigências, mas não sabe suplicar e agradecer.
Para ele, a essência e o fundamento das coisas é a lei, a hierarquia e a
utilidade. Tudo o mais não passa de fumaça transitória, de poesia inconsequente
ou de perigosa heresia.
Ao reconhecer extasiado a glória de
Deus brilhando em todas as criaturas, o salmista afirma que é na boca das
crianças e bebês, nos lábios das pessoas que não foram domesticadas pela
doutrina do poder, que Deus encontra o louvor perfeito que lhe é devido. É
neste louvor inocente e reverente que também podemos encontrar as forças para
enfrentar os poderes inimigos e opressores, inclusive aqueles que se apresentam
diabolicamente em nome de Deus.
Glória a ti, Deus Pai-Mãe, fonte de todas as formas de vida e defensor
dos pobres. Glória a ti, Deus-conosco, libertador de todas as prisões, caminho
de vida. Glória a ti, Espírito Santo, motor da integral libertação, derramado
gratuita e abundamente em todas as criaturas como bondade, beleza e irmandade.
Glória a ti, Deus-comunidade de quem tudo recebe a vida, o movimento e a
existência.
Pe. Itacir Brassiani
msf
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