Qual é a única coisa
realmente boa e indispensável na vida?
(Gn 18,1-10; Sl 14/15; Cl 1,24-28; Lc
10,38-42)
O fato aconteceu há mais de anos,
mas lembro-me perfeitamente do rosto do Gilberto, um homem humilde que
trabalhava como gari e fazia uns bicos nos fins de semana para melhorar seus
parcos recursos e atender as necessidades da família, inclusive de um filho
portador de necessidades especiais. Sendo membro de uma Igreja cristã e
pressionado pelo pastor para não trabalhar aos domingos, ele me perguntava
ansiosamente, e sua pergunta escondia já a resposta: o que é mais de acordo com
Jesus, descansar e ir ao culto ou atender as necessidades do meu filho?
Frequentemente a preocupação com as muitas leis – das religiões ou do mercado –
nos induzem a esquecer aquilo que é imprescindível: ser aprendiz de Jesus na
sua absolutamente prioritária compaixão pela humanidade ferida.
“E uma mulher chamada Marta o recebeu em sua casa...”
Para entender corretamente o
ensinamento de Jesus transmitido por Lucas no evangelho de hoje precisamos
inicialmente demarcar o terreno e limpar a área. Isso significa, entre outras
coisas, colocar a cena no seu contexto literário: o episódio está situado depois da parábola do bom samaritano,
enquanto Jesus percorre decididamente o caminho que o leva ao confronto
martirial em Jerusalém. E
esta estrada é propriamente a escola na qual Jesus dá as lições essenciais aos
que o seguem.
Depois da experiência missionária
pouco frutífera dos Doze e do êxito apostólico dos 72 discípulos enviados à sua
frente, o próprio Jesus começa a entrar nas casas, pedir hospedagem e aceitar
aquilo que lhe oferecem para comer. Deixando a estrada, que é parábola da
abertura e da inventividade, Jesus entra
numa cidade, símbolo de fechamento ideológico. A mulher que o recebe em sua
casa é chefe de família, e seu nome significa literalmente ‘patroa’.
Mas precisamos também limpar o
terreno de algumas interpretações que se tornaram tradicionais, especialmente aquelas
que vão em duas direções: as que
procuram ver no episódio a afirmação da superioridade da vida contemplativa
sobre a vida apostólica; as que ousam descaradamente corrigir Jesus, afirmando
que precisamos conjugar a atitude de Maria com a postura de Marta. Ambas
relativizam o contexto literário e esquecem elementos essenciais do texto.
“Tu te preocupas e andas agitada com muitas coisas.”
Temos muitas preocupações que agitam nossa mente e nosso coração. Nem
todas são justificáveis evangelicamente. Devemos dizer logo de início de que não se
trata das preocupações com o atendimento às necessidades dos irmãos e irmãs.
Jesus deixa suficientemente claro que é no socorro e no atendimento às pessoas
necessitadas que nós servimos a Deus. O belo edificante episódio de Abraão à
sombra do carvalho de Mambré antecipa este ensinamento.
O problema é a razão e a origem da agitação. No episódio narrado por Lucas, parece que o
que provoca a agitação de Marta, mais que os deveres de hospitalidade, são outros
dois: a necessidade de cumprir o código de leis que o judaísmo impunha aos
fiéis, e que acabava afastando-os da compaixão e da misericórdia (cf. Lc
10,25-37); o poder de governar a casa e o desejo de controlar perfeitamente a
própria vida, garantir a satisfação dos desejos e acumular riquezas (cf. Lc
8,14; 12,24-34).
Hoje os homens que detém autoridade
nas Igrejas são agitados pelo monte de leis e ordens que regem a vida moral e o
culto, assim como pela necessidade de agradar os superiores e garantir uma
carreira ascendente. E os homens e mulheres imersos na sociedade e embebidos da
cultura dominante são atordoados pelas leis da concorrência e pela inexorabilidade
da exclusão: correm cada vez mais e conseguem cada vez menos. E tanto uns como
outros eliminam a compaixão do horizonte da vida.
“Senhor, não tem importas que minha irmã me deixe
sozinha com todo o serviço?”
A agitação e a preocupação em dominar as situações podem levar ao
excesso de querer corrigir o Evangelho e dar ordens ao próprio Jesus. É isso que Lucas explicita de um
modo pouco discreto. Ciosa de sua posição de autoridade, Marta toma a frente e
se dirige a Jesus com palavras ousadas: “Senhor, não tem importas que minha
irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda, pois que ela venha me ajudar.”
A senhora Marta sente-se com autoridade para advertir Jesus e dar-lhe ordens!
Esta atitude surpreendente me faz
lembrar aquilo que Kiko Arguelas (fundador do Movimento Neo-Catecumenal) gosta
de repetir ambiguamente: o Espírito Santo obedece aos Bispos! Certamente ele dá
um sentido muito específico a esta afirmação, mas o fato é que muitas figuras eclesiásticas
parecem agir como quem tem autoridade sobre o povo cristão, sobre a sociedade
civil e sobre o próprio Deus. E isso os agita de tal maneira que se dispensam
de frequentar a escola do Evangelho...
“No entanto, uma só coisa é necessária.”
O único bem necessário é sentar-se diante de Jesus como quem aprende e
seguir seus passos com a disposição de partilhar seu destino. A oposição não está entre
escutar-aprender-celebrar e servir-lutar-transformar, mas entre o amor ativo ao
próximo e o cumprimento automático de ordens e imposições que nos afastam deste
núcleo da vida cristã. Em outras palavras: não
é possível conjugar o seguimento de Jesus com a busca do sucesso individual a
qualquer custo e com o culto desligado da vida.
A escuta da Palavra viva de Jesus
Cristo é condição para um ministério apostólico eficaz. Enquanto Marta faz
aquilo que é aparentemente mais seguro, urgente e eficaz, Maria faz o que é
mais fundamental e importante. Sublinhando a retidão da escolha de Maria, Jesus
dá a entender que o lugar das mulheres na Igreja não se resume em assumir
tarefas menos importantes das quais os homens que detém autoridade se sentem
dispensados. O lugar delas é o comum a todos os cristãos: o discipulado.
“Maria escolheu a melhor parte.”
Maria faz a única coisa que é
correta e boa do ponto de vista do Evangelho. Algumas traduções amenizam a
afirmação de Jesus e usam a expressão “a melhor parte”. Entretanto, Jesus fala
que “uma só coisa é necessária” e que Maria “escolheu a parte boa e esta não
lhe será tirada”. Este não é um elogio à passividade, mas uma outra forma de
afirmar aquilo que bom samaritano fez na parábola que Jesus acabara de contar,
enquanto o sacerdote e o levita se preocupavam com muitas coisas.
Assim, a única coisa necessária, a atitude que expressa e potencializa o
dinamismo de uma vida terna e eterna, é o amor ou obediência a Deus, conjugado
com a compaixão ativa e solidária pela pessoa humana, especialmente por quem
está em situação de vulnerabilidade. É isso que precisamos aprender e
reaprender sempre de novo aos pés de Jesus, deixando de lado um punhado de
outras coisas que, com sua aparente urgência e eficácia, não fazem outra coisa
que provocar agitação e badalação.
Para que serve a infinidade de leis
canônicas, rubricas litúrgicas e normas disciplinares para ministros ordenados
ou não se não ajudam a renovar e consolidar esta escolha fundamental? E quais
são os frutos da obediência cega e indolente às nefastas leis do mercado, que
reivindicam um indefinido ‘regime de legalidade’? Bartolomeu de las Casas
(+17.07.1756), assim como Maria Madalena (cuja festa é celebrada dia 21), nos
lembram o que significa escolher a parte boa e não se agitar com muitas coisas.
“Completo em minha carne o que falta o que falta às tribulações
de Cristo...”
Na carta aos Colossenses, Paulo diz
de forma paradoxal que se alegra nos sofirmentos que enfrenta por causa da
comunidade. E prossegue com ousadia: “Completo na minha carne o que falta às
tribulações de Cristo, em favor do seu corpo, que é a Igreja.” E isso porque,
acolhendo o ministério que Deus lhe confiou, Paulo se fez servidor da Igreja e
se desdobra para que a Palavra de Deus chegue efetivamente a ela. Aqueles/as
que ousam sentar-se aos pés de Jesus acabam indo onde vão estes pés...
Isso não quer dizer que Jesus e
Paulo propõem o sofrimento como caminho de santificação. Mas aderir a Jesus
Cristo e fazer-se próximo dos últimos, jogando no lixo os aparentemente sábios
mandamentos ditados pelas insitutições fechadas em si mesmas e submissas à lei
da vantagem e do sucesso a qualquer custo, implica em contar com a
possibilidade de sofrer na própria carne a oposição e as agressões vindas de
quem não aceita mudança alguma, nem mesmo do coração. Habitam a casa do Senhor aqueles/as
que sentam aos seus pés como aprendizes e seguem um Mestre que não tem onde
reclinar a cabeça. Estas pessoas, como nosso querido Pe. Ceolin, descobrem o
verdadeiro tesouro. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
Nenhum comentário:
Postar um comentário