sexta-feira, 19 de julho de 2013

16° Domingo do Tempo Comum

Qual é a única coisa realmente boa e indispensável na vida?

(Gn 18,1-10; Sl 14/15; Cl 1,24-28; Lc 10,38-42)


O fato aconteceu há mais de anos, mas lembro-me perfeitamente do rosto do Gilberto, um homem humilde que trabalhava como gari e fazia uns bicos nos fins de semana para melhorar seus parcos recursos e atender as necessidades da família, inclusive de um filho portador de necessidades especiais. Sendo membro de uma Igreja cristã e pressionado pelo pastor para não trabalhar aos domingos, ele me perguntava ansiosamente, e sua pergunta escondia já a resposta: o que é mais de acordo com Jesus, descansar e ir ao culto ou atender as necessidades do meu filho? Frequentemente a preocupação com as muitas leis – das religiões ou do mercado – nos induzem a esquecer aquilo que é imprescindível: ser aprendiz de Jesus na sua absolutamente prioritária compaixão pela humanidade ferida.

“E uma mulher chamada Marta o recebeu em sua casa...”

Para entender corretamente o ensinamento de Jesus transmitido por Lucas no evangelho de hoje precisamos inicialmente demarcar o terreno e limpar a área. Isso significa, entre outras coisas, colocar a cena no seu contexto literário: o episódio está situado depois da parábola do bom samaritano, enquanto Jesus percorre decididamente o caminho que o leva ao confronto martirial em Jerusalém. E esta estrada é propriamente a escola na qual Jesus dá as lições essenciais aos que o seguem.

Depois da experiência missionária pouco frutífera dos Doze e do êxito apostólico dos 72 discípulos enviados à sua frente, o próprio Jesus começa a entrar nas casas, pedir hospedagem e aceitar aquilo que lhe oferecem para comer. Deixando a estrada, que é parábola da abertura e da inventividade, Jesus entra numa cidade, símbolo de fechamento ideológico. A mulher que o recebe em sua casa é chefe de família, e seu nome significa literalmente ‘patroa’.

Mas precisamos também limpar o terreno de algumas interpretações que se tornaram tradicionais, especialmente aquelas que vão em duas direções:  as que procuram ver no episódio a afirmação da superioridade da vida contemplativa sobre a vida apostólica; as que ousam descaradamente corrigir Jesus, afirmando que precisamos conjugar a atitude de Maria com a postura de Marta. Ambas relativizam o contexto literário e esquecem elementos essenciais do texto.

“Tu te preocupas e andas agitada com muitas coisas.”

Temos muitas preocupações que agitam nossa mente e nosso coração. Nem todas são justificáveis evangelicamente. Devemos dizer logo de início de que não se trata das preocupações com o atendimento às necessidades dos irmãos e irmãs. Jesus deixa suficientemente claro que é no socorro e no atendimento às pessoas necessitadas que nós servimos a Deus. O belo edificante episódio de Abraão à sombra do carvalho de Mambré antecipa este ensinamento.

O problema é a razão e a origem da agitação. No episódio narrado por Lucas, parece que o que provoca a agitação de Marta, mais que os deveres de hospitalidade, são outros dois: a necessidade de cumprir o código de leis que o judaísmo impunha aos fiéis, e que acabava afastando-os da compaixão e da misericórdia (cf. Lc 10,25-37); o poder de governar a casa e o desejo de controlar perfeitamente a própria vida, garantir a satisfação dos desejos e acumular riquezas (cf. Lc 8,14; 12,24-34).

Hoje os homens que detém autoridade nas Igrejas são agitados pelo monte de leis e ordens que regem a vida moral e o culto, assim como pela necessidade de agradar os superiores e garantir uma carreira ascendente. E os homens e mulheres imersos na sociedade e embebidos da cultura dominante são atordoados pelas leis da concorrência e pela inexorabilidade da exclusão: correm cada vez mais e conseguem cada vez menos. E tanto uns como outros eliminam a compaixão do horizonte da vida.

“Senhor, não tem importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço?”

A agitação e a preocupação em dominar as situações podem levar ao excesso de querer corrigir o Evangelho e dar ordens ao próprio Jesus. É isso que Lucas explicita de um modo pouco discreto. Ciosa de sua posição de autoridade, Marta toma a frente e se dirige a Jesus com palavras ousadas: “Senhor, não tem importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda, pois que ela venha me ajudar.” A senhora Marta sente-se com autoridade para advertir Jesus e dar-lhe ordens!

Esta atitude surpreendente me faz lembrar aquilo que Kiko Arguelas (fundador do Movimento Neo-Catecumenal) gosta de repetir ambiguamente: o Espírito Santo obedece aos Bispos! Certamente ele dá um sentido muito específico a esta afirmação, mas o fato é que muitas figuras eclesiásticas parecem agir como quem tem autoridade sobre o povo cristão, sobre a sociedade civil e sobre o próprio Deus. E isso os agita de tal maneira que se dispensam de frequentar a escola do Evangelho...

“No entanto, uma só coisa é necessária.”

O único bem necessário é sentar-se diante de Jesus como quem aprende e seguir seus passos com a disposição de partilhar seu destino. A oposição não está entre escutar-aprender-celebrar e servir-lutar-transformar, mas entre o amor ativo ao próximo e o cumprimento automático de ordens e imposições que nos afastam deste núcleo da vida cristã. Em outras palavras: não é possível conjugar o seguimento de Jesus com a busca do sucesso individual a qualquer custo e com o culto desligado da vida.

A escuta da Palavra viva de Jesus Cristo é condição para um ministério apostólico eficaz. Enquanto Marta faz aquilo que é aparentemente mais seguro, urgente e eficaz, Maria faz o que é mais fundamental e importante. Sublinhando a retidão da escolha de Maria, Jesus dá a entender que o lugar das mulheres na Igreja não se resume em assumir tarefas menos importantes das quais os homens que detém autoridade se sentem dispensados. O lugar delas é o comum a todos os cristãos: o discipulado.

“Maria escolheu a melhor parte.”

Maria faz a única coisa que é correta e boa do ponto de vista do Evangelho. Algumas traduções amenizam a afirmação de Jesus e usam a expressão “a melhor parte”. Entretanto, Jesus fala que “uma só coisa é necessária” e que Maria “escolheu a parte boa e esta não lhe será tirada”. Este não é um elogio à passividade, mas uma outra forma de afirmar aquilo que bom samaritano fez na parábola que Jesus acabara de contar, enquanto o sacerdote e o levita se preocupavam com muitas coisas.

Assim, a única coisa necessária, a atitude que expressa e potencializa o dinamismo de uma vida terna e eterna, é o amor ou obediência a Deus, conjugado com a compaixão ativa e solidária pela pessoa humana, especialmente por quem está em situação de vulnerabilidade. É isso que precisamos aprender e reaprender sempre de novo aos pés de Jesus, deixando de lado um punhado de outras coisas que, com sua aparente urgência e eficácia, não fazem outra coisa que provocar agitação e badalação.

Para que serve a infinidade de leis canônicas, rubricas litúrgicas e normas disciplinares para ministros ordenados ou não se não ajudam a renovar e consolidar esta escolha fundamental? E quais são os frutos da obediência cega e indolente às nefastas leis do mercado, que reivindicam um indefinido ‘regime de legalidade’? Bartolomeu de las Casas (+17.07.1756), assim como Maria Madalena (cuja festa é celebrada dia 21), nos lembram o que significa escolher a parte boa e não se agitar com muitas coisas.

“Completo em minha carne o que falta o que falta às tribulações de Cristo...”

Na carta aos Colossenses, Paulo diz de forma paradoxal que se alegra nos sofirmentos que enfrenta por causa da comunidade. E prossegue com ousadia: “Completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, em favor do seu corpo, que é a Igreja.” E isso porque, acolhendo o ministério que Deus lhe confiou, Paulo se fez servidor da Igreja e se desdobra para que a Palavra de Deus chegue efetivamente a ela. Aqueles/as que ousam sentar-se aos pés de Jesus acabam indo onde vão estes pés...

Isso não quer dizer que Jesus e Paulo propõem o sofrimento como caminho de santificação. Mas aderir a Jesus Cristo e fazer-se próximo dos últimos, jogando no lixo os aparentemente sábios mandamentos ditados pelas insitutições fechadas em si mesmas e submissas à lei da vantagem e do sucesso a qualquer custo, implica em contar com a possibilidade de sofrer na própria carne a oposição e as agressões vindas de quem não aceita mudança alguma, nem mesmo do coração. Habitam a casa do Senhor aqueles/as que sentam aos seus pés como aprendizes e seguem um Mestre que não tem onde reclinar a cabeça. Estas pessoas, como nosso querido Pe. Ceolin, descobrem o verdadeiro tesouro. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

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