sexta-feira, 26 de julho de 2013

Recordando os bons amigos e grandes homens: Pe. Ceolin msf

“Eu me entrego, Senhor, em tuas mãos!”

“Vamos fazer o elogio dos homens famosos...”

Hoje celebramos São Joaquim e Santa Ana, pais de Nossa Senhora e avôs de Jesus de Nazaré. E o texto da Palavra proposto como primeira leitura nos convida a fazer memória dos antepassados, das pessoas boas que nos precederam. “Estes são homens de misericórdia; seus gestos de bondade não serão esquecidos... Seus corpos serão sepultados na paz e seu nome dura atravéas das gerações. Os povos proclamarão sua sabedoria...” (Eclo 44,10-15). Motivado por esta festa e estas palavras, recordo e partilho hoje algumas anotações deixadas pelo Ceolin nos últimos meses de vida.

Que o Pe. Ceolin era uma pessoa sensível, organizada e metódica todos sabemos. Mas fiquei profundamente impressionado ao ler suas anotações diárias (a maioria delas quase telegráficas) na agenda pessoal, nos últimos meses de vida. Não seria difícil, a partir destas poucas palavras, acessar os sentimentos que se aninhavam nele, a madura riqueza da sua personalidade e o testemunho de fé e humanidade que ele nos deixa como herança viva. Recolho e ofereço aqui apenas algumas migalhas, filtradas (e limitadas) pelos meus sentimentos. Outros poderiam fazer outras leituras, enfatizando diferentes sutilezas e detalhes.

Organização e método

Um primeiro elemento que se destaca é a organização atenciosa e metódica do Ceolin. Nas anotações registradas nas agendas de 2012 e 2013 temos uma crônica datalhada da sua longa e dura luta pela saúde: exames, consultas, diagnósticos, sintomas, cirurgias, internações, terapias, repousos domésticos, etc. Nos últimos meses, encontramos anotações precisas e sistemáticas sobre as variações da pressão e da glicose, assim como sobre o decréscimo do peso e o desejado e difícil aumento das plaquetas no sangue. Conheço poucas pessoas que, como ele, tiveram consciência clara e plena daquilo que estava acontecendo.

Eis aqui alguns exemplos: “(16.03.2012) Às 16:40 apresento a radiografia pulmonar ao Dr. Maraschin. Nada de grave. Ele me forneceu o laudo de ciotoscopia a levar ao Dr. Edilson. (10.04.2012) Internação para cirurgia. Cirurgia às 13:30. (25.04.2012) Às 10:30 recebo o resultado da biópsia. O câncer continua. Marco consulta no CACON de Ijuí. (25.05.2012) Hemorragia. À meia-noite, na emergência. 45 dias após a cirurgia. (28.05.2012) Internação no Hospital Santo Angelo (até o dia 1° de junho). (01.06.2012) Acamado em casa (até o dia 8). (01.07.2012) À tarde, início da hemorragia. (15.10.2012) Às 16:00, primeira radioterapia. Serão ao todo 33, cinco por semana. Presvisto até o dia 30.11.”

Preocupação com a saúde

Com o passar do tempo e os poucos sinais de melhora, em algumas anotações transparece uma crescente e compreensível aprensão com a própria saúde: “(06.10.2012) Faz 30 dias que estou em Passo Fundo. (04.03.2013) Jovino faleceu às 3:30, no HSVP. De madrugada, (minha) internação no HSVP, após 7 horas de espera na emergência. Exames e mais exames. (09.03.2013) Dra. Moema pediu que o David venha conversar com ela hoje de manhã e que eu permaneça mais no quarto. Devo evitar os corredores e tocar nos corrimões (bactérias). (13.03.2013) Médicos resolveram que eu siga hospitalizado. Até quando? (15.03.2013) Às 8:00 a Dra. Moema veio ao quarto dizendo que amanhã dará alta e que devo repousar muito em casa e alimentar-me bem. Devo evitar me aproximar demais das pessoas a fim de evitar contágios (infecções). (26.04.2013) À noite, caí no banheiro. Precisei da ajuda da enfermeira para levantar.” (26.05.2013) Na hora do banho matinal, percebo que as manchas púrpura se alastram pelo corpo. O fato é sintoma de que?
Vez por outra, as anotações deixam transparecer um certo alívio ou uma forte expectativa, como nestas que seguem: “(17.03.2013) Dra. Moema: “Amanhã, novo exame de sangue. Terá alta somente quando tiver o medicamento indicado para o seu caso”. (Quantos dias levará para consegui-lo? Veremos! Oxalá que seja já amanhã!” (18.03.2013) Às 9:40 a Dra. Moema veio ao “meu” quarto com a boa notícia que existe no HSVP o medicamento específico para o meu caso. Amanhã receberei alta hospitalar. Graças a Deus!”

Sensibilidade e gratidão

Outro aspecto que me impressionou foi a sua aguçada sensibilidade e sentimento de gratidão pelos gestos de atenção, inclusive aqueles aparentemente insignificantes. Depois da transferência para Passo Fundo, o Pe. Ceolin registrou simplesmente todos os tolefonemas, cartas e visitas que recebeu. Mais tarde, quando precisou de acompanhantes no quarto, sempre registrou o nome dos que estiveram com ele. Os comentários são poucos, mas cada palavra denota profundos sentimentos. E isso vem desde o tempo em que se tratava em Santo Angelo, como demonstram estas duas notas: “(27.05.2012) Não celebrei. Ao meio-dia, Susana e Rômulo trazem almoço e o fazem comigo. (23.07.2012) À tarde, fui a Ijuí marcar consultas e visitar a mãe do Pe. Pedro Almeida. Paulo Amaral levou-me no seu carro.”

Eis mais algumas notas significativas: “(25.11.2012) Às 18:00 recebi telefonema do Itacir (Roma), felicitando-me pelo 56° aniversário sacerdotal. À noite, a mana Neli me telefonou querendo saber como me encontro de saúde. (13.05.2013) Hoje à tarde recebi a visita do velho amigo Eusébio Ceolin. Veio especialmente de Bagé para isso. Está com quase 83 anos. Ele é um irmão de coração. (25.05.2013) Telefonei para a paróquia Sagrada Família. Salete disse que estão pagando a mensalidade do meu celular e do FAC. (15.06.2013) Ao meio dia, as sobrinhas de Chapecó (Ocimar, Cristina e o filhinho) chegaram de visita, com planos de voltar hoje à tarde. Às 19:00 chegaram de São Vicente os sobrinhos Elton Cláudia e a filha Luana. O pernoite é aqui no Lar. O plano é retornarem amanhã, levando as manas Sueli e Helena. (17.06.2013) À tarde, recebi a visita do primo Sílvio Ceolin e mais dois filhos, vindos especialmente de Santo Augusto. Às 17:00 retornaram. Ir. Moacir esteve comigo das 18:00 às 19:00.”

Frente a frente com a morte

O prolongamento da doença, o enfraquecimento físico e o pouco sucesso das terapias foram progressivamente colocando o Ceolin diante da possibilidade muito real morte, a oferta total e radical de si, sem outra garantia que a fé. Podemos imaginar a complexidade dessa experiência. No caso do Ceolin, essa aproximação veio acompanhada (e agravada) pela partida de dois coirmãos que estava no mesmo caminho: o Pe. Jovino – caríssimo amigo seu – e o Pe. Sausen, além do seu velho e amado pároco de Jaguari, Pe. Nelson. O que poderia significar para uma pessoa de 83 constatar que as terapias não estavam ajudando muito e, ao mesmo tempo, acompanhar a partida de dois coirmãos queridos? Com que sentimentos alguém pode entregar-se ao Deus que sempre amou e pregou, mas ao mesmo tempo deixar a vida e as pessoas que quer bem? Vejamos alguns registros que o Ceolin nos deixou sobre essa luta interior.

“(10.03.2013) Aniversário do meu batismo, ocorrido em 10.03.1930, em Ernesto Alves, Santiago (RS). São 9:30. Acabo de celebrar a Eucaristia, no quarto, sozinho, neste dia especial: 83 anos de vida cristã, agraciada de tantas formas. O evangelho de hoje: o filho pródigo, que volta ao Pai. Obrigado, Pai misericordioso! Peço-te mais vida, para fazer-te amado, e ao teu Filho, que veio curar e salvar! Eu CONFIO! (15.04.2013) Falece meu pároco, Pe. Nelson Friederich, com 94 anos de vida e 56 anos em Jaguari. Às 11:15, presidi missa por ele no Lar. (27.04.2013) Passei o dia acamado, por causa da pancada na altura do rim esquerdo, durante a noite. Banho, em cadeira, com a ajuda do David. Pela primeira vez, andei de cadeira de rodas, e com ela jantei. (28.05.2013) Visita da Tere Ceolin. Trouxe um lençol térmico que o Eusébio me mandou... Fiz uma confissão geral. (05.06.2013) Às 10:00, recebo a unção dos enfermos e absolvição geral. Presentes os padres Provincial, Maicon, Hermeto, Schnorr, Leopoldo, Pablo, Ir. Clara Lunkes e David Scortegagna.”

Humor e serenidade

Mas quero também registrar a capacidade de auto-crítica, serenidade e humor, virtudes que o Ceolin não perdeu nem mesmo nessa fase, e que são muito importantes para a nossa saúde psíquica e espiritual. No dia 17.11.2012 o Ceolin anotou laconicamente: “Após expor-me ao forte sol na cidade, ao visitar o Jovino e o Gebert no Hospital, pressão 18 x 10; temperatura 38.” E, no dia 18 de março: “À tarde exagerei ao tentar, ajoelhado, arrancar inço na horta, e não pude mais por-me em pé. Precisei chamar por ajuda.”

No dia 13 de dezembro de 2012, escreveu: “Entrevista com o Coordenador provincial. Assunto: possibilidades futuras a meu respeito, após o reestabelecimento completo da saúde. Enquanto isso, seguirei aqui em Passo Fundo. “De aliis, nisi bene!” Gebert e Sulzbach receberam transferência para o Sítio da Buriti.” E, no no dia 25 de dezembro: “A Província publica as transferências para 2013. A minha será para o Seminário de Santo Angelo (= ‘Asilo de Velhos!...’): Pe. Arno, 80 anos; Ir. Aloísio, 74 anos; Ir. João, 67 anos; Pe. Ceolin, 82 anos e 11 meses...”

Comunhão e compaixão até o fim

Finalmente, como não sublinhar que, mesmo debilitado fisicamente, o Pe. Ceolin não deixou de  demonstrar sua atenção a outras pessoas que também sofriam ou lhe demonstraram afeto? Na página do dia 18 de abril, com indisfarçável emoção, o Pe. Rodolpho anota: “O Ir. Lauri entregou-me carta das Irmãs Carmelitas de Santo Angelo, escrita pela Ir. Milagros. Agradeci-lhes por telefone esta tarde.” Sabemos que não é tão comum telefonar para agradecer uma carta, e ainda mais no mesmo dia em que a recebemos...

No dia 1° de maio, o Pe. Ceolin recordou sua primeira comunhão e escreveu na agenda: “Em 1941, minha primeira comunhão. Em 1994, falecimento da mamãe (19 anos). Às 18:00 o Pe. Maicon levou ao Pe. Hermeto e a mim ao velório da Franciele, filha do nosso enfermeiro Neri, no Bairro Jaboticabal.” No dia 05 de junho, depois da confissão geral, e de receber a unção dos enfermos, fatos registrados com uma caligrafia irreconhecível, sinal da grande emoção que tomava conta dele, escrevia comovido e agradecido: “Ir. Gislena Ziliotto me visita, representando a presença feminina amiga na minha história.”

Ele partiu cercado de amor

Estas poucas notas nos ajudam a entender como são verdadeiras e sinceras as palavras que o Ceolin escreveu para serem lidas na missa das própias exéquias, um verdadeiro testamento humano e espiritual:

“Nos meses, recolhido e acolhido no Lar de Nazaré para tratamento de saúde, junto a confrades verdadeiramente irmãos e funcionárias (os) dedicadas (os), fiz a experiência mais bela da vida: DEUS É TODO AMOR, É PAI DEVERASMENTE MISERICORDIOSO, É PASTOR EM BUSCA DA OVELHA AMADA. Como é bonito estar cercado não só do Amor de Deus mas também muito cercado do amor de vocês, familiares, parentes, amigos (as) de tantos lugares, cercado de amor de meus confrades de toda a Província e do Generalado, cercado, ultimamente pelos de Passo Fundo e de Santo Ângelo; cercado de amor pelos funcionários (as) do Lar de Nazaré...
É bonito morrer cercado de amor como fui pelas queridas irmãs Carmelitas, Pe. Jacinto e Pe. Marcos, pelos funcionários (as) da casa Paroquial, pelos paroquianos (as) que me conduziam ao Hospital de Ijuí, pelos que me assistiam de dia e de noite no Hospital de Santo Ângelo e na casa Paroquial. É mais que bonito morrer cercado de tanto amor dos amados paroquianos (as) que tanto oraram por mim.” Esta foi a versão pessoal do hino “Eu me entrego, Senhor, em tuas mãos”, que o Ceolin cantou com a vida. Deus seja louvado por este belo testemunho, semente que há de germinar.

Itacir Brassiani msf

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