quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Dia Internacional dos Desaparecidos

Dia dos desaparecidos

Por iniciativa da Anistia Internacional, o dia 30 de agosto foi proclamado Dia Internacional dos Desaparecidos. Neste dia, em 1985, trezentos agentes do FBI invadiram Porto Rico e prenderam mais de uma dúzia de pessoas que lutavam pela independência. Em 1992, um esquadrão da morte e policiais matou vinte e uma pessoas na favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro.

Mas os desaparecidos não são apenas os militantes e sonhadores “tirados de circulação” pelos agentes do Estado ou de grupos para-militares. Vale a pena ler este breve texto do Eduardo Galeano.

Desaparecidos: os mortos sem tumba, as tumbas sem nome. E também: os bosques nativos, as estrelas na noite das cidades, o aroma das flores, o sabor das frutas, as cartas escritas a mão, os velhos cafés onde havia tempo para perder tempo, o futebol de rua, o direito a caminhar, o direito a respirar, os empregos seguros, as aposentadorias seguras, as casas sem grades, as portas sem fechadura, o senso comunitário e o bom senso...


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 276)

Fatos & Personagens: Tupac Amaru

Os cúmplices

Na câmara de torturas, foi interrogado pelo enviado do rei. “Quem são os teus cúmplices?”, perguntou o enviado. E Tupac Amaru respondeu: “Aqui não há outro cúmplice além de você e de mim. Você, por ser opressor, e eu, por ser libertador, merecemos a morte”.

Foi condenado a morrer esquartejado. Foi atado a quatro cavalos, braços e pernas em cruz, e não se partiu. As esporas rasgavam os ventres dos cavalos, que puxavam em vão, e ele não se partiu. Foi preciso recorrer ao machado do verdugo.

Era um meio-dia de sol ferroz (24.09.1572), tempo de longa seca no vale do Cuzco, mas o céu ficou negro de repente e se rompeu e despejou uma chuva dessas que afogam o mundo.

Também foram esquartejados os outros chefes e chefas rebeldes, Micaela Bastidas, Tupac Catari, Bartolina Sisa, Gregoria Apaza... E seus pedaços foram passeados pelos povoados sublevados, e foram queimados, e suas cinzas atiradas ao ar, “para que deles não reste memória”.


(Eduardo Galeano, Espelhos, L&PM, 2008, p. 162)

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

22° Domingo do tempo Comum

A Palavra de Deus desperta em nós um novo olhar.
(Eclo 3,19-21.30-31; Sl 67/68; Hb 12,18-24; Lc 14,1.7-14)

O hábito entrou na sociedade e na Igreja, e hoje repetimos a expressão quase inconscientemente: basta que uma pessoa exerça alguma função de autoridade e nós a tratamos como Excelência. E se a função for eclesiástica e alta, acrescentamos Revendíssima. A estas pessoas são reservados os primeiros lugares e todas as honras, não importando aquilo que realmente fazem ou são. E o pior acontece quando tais honoráveis excelências cobram respeito ao respectivo status e quando isso é ensinado como se fosse Evangelho de Jesus Cristo. Iniciando o mês da Bíblia lembremos, que não vem da Palavra de Deus. Como diz a exortação Verbum domini, a Palavra de Deus gera em nós uma nova sensibilidade e um novo olhar.
“Jesus foi convidado a comer na casa de um dos chefes dos fariseus.”
Jesus não desperdiça nenhuma ocasião para nos ensinar. Ele propõe uma inversão radical na escala dos valores da sociedade e da religião do seu tempo, e não se cala nem mesmo na casa de uma autoridade moral, em pleno jantar festivo para o qual havia sido convidado. Jesus apresenta a lição do evangelho de hoje logo depois de afirmar que as necessidades de uma pessoa estão acima das leis, num solene dia de sábado, na casa de um dos chefes dos fariseus.
O ensino de Jesus é concreto e ligado aos fatos. Ele aproveita a presença de um homem doente para discutir o limite das leis e instituições. E quando vê que os convidados para uma refeição se apressam em ocupar os primeiros lugares, propõe uma reflexão sobre o orgulho e a humildade. Sua reflexão não é sobre as regras de boas maneiras a serem observadas numa refeição solene, mas sobre um princípio nucleador da vida cristã. Como modelo de evangelizador, ele não fica na periferia das coisas.
“Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares.”
Enquanto pessoas de Igreja, devemos ser  lúcidos diante dos privilégios que a sociedade concede e a própria tradição justifica e ensina. Já em 1965 Dom Helder Camara dizia que o maior perigo que nos ameaça é querer sempre vencer e jamais fracassar, sentir-se sempre querido e nunca sobrar. Com profunda delicadeza e sinceridade, Dom Helder mostrou a Dom Eugênio que, “mais grave ainda do que ser apanhado pela engrenagem do dinheiro, é ser apanhado pela engrenagem do prestígio”.
É ainda nosso pequeno e grande profeta que lamenta que homens santos e corajosos como João XXIII e Paulo VI não tenham conseguido se livrar “do peso morto terrível e da pedra de escândalo das tradições do Vaticano”. E desabafa: “Não acreditem que Paulo VI não se sinta profundamente mal ao sentar-se no trono e ver um Monsenhor, ajoelhado, colocando-lhe um travesseiro debaixo dos pés, enquanto dois outros acomodam-lhe a capa, como se ajeitassem uma velha rainha.”
É verdade que na Igreja nem sempre são as próprias pessoas constituídas em autoridade que buscam os privilégios, embora isso também ocorra. Mas precisamos superar uma certa tradição, que continua se reproduzindo com a ajuda da nossa passividade: sem perder o respeito devido às pessoas, é hora de erradicar o sagrado e pouco evangélico hábito de vincular as autoridades às engrenagens do dinheiro e do prestígio, de considerá-las acriticamente reverendas excelências.
“Quando ofereceres um almoço ou um jantar...”
Jesus avança na sua catequese e passa da crítica ao orgulho e aos privilégios à questão dos beneficiários da nossa atividade. Ele parte de um costume doméstico que vigora também entre nós: quando organizamos uma festa, no topo da lista dos convidados estão os familiares, os parentes, os amigos e os vizinhos. Isso faz parte das boas maneiras e continua válido no nível interpessoal, mas é um círculo muito estreito quando se trata do horizonte da nossa missão enquanto comunidade eclesial.
Da mesma forma que o cristão rejeita resolutamente a busca de honras e vaidades e busca decididamente o lugar reservado aos servidores, assim também, como pessoa e como Igreja, precisamos superar a lógica da troca compensatória: servir, apoiar e defender aqueles que têm mais possibilidades de compensar em moeda ou em honras o nosso serviço. A Igreja não pode ter outra prioridade senão amar e servir Jesus Cristo crucificado nos excluídos que se contam aos milhões e estão por todo lado.
No primeiro momento do episódio de hoje, Jesus fala aos hóspedes que estão com ele à mesa, ensinando que “todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado”. Depois se dirige ao próprio anfitrião que o acolhe festivamente, questionando sua expectativa de retribuição. Orgulho e a busca de retribuição não são posturas enraizadas no Evangelho. Não é o nome deste tipo de pessoas que Jesus pronuncia sorrindo, e não é a elas que ele costuma confiar sua missão.
“Estes não têm como te retribuir!”
Precisamos estar convictos de que é profundamente desgastante e infantilizador viver de privilégios e depender de compensações. O caminho que dá acesso às honras e privilégios geralmente passa pela subserviência humilhante e é acompanhado por um medo aterrador do anonimato e por um apego doentio aos bens e a toda sorte de títulos. Não é por nada que Francisco de Assis se encontra ao mesmo tempo com a minoridade e com a pobreza. Abraçando uma ele acaba desposando também a outra.
Aproveitando a memória da morte de Dom Helder (27.08.1999), voltemos à sua sabedoria. “Não te diz a experiência que quando vem a morte em geral sucede o inverso do que se esperava: os que proclamam ausência de medo tremem, se inquietam, se assustam, ao passo que a recebem tranquilos os humildes que tremiam?...” Quem perdeu ou distribuiu tudo com generosidade, experimenta o que é ser livre e não teme perder nada. E se não espera nenhuma retribuição, alcançou a maturidade.
Jesus propõe a inversão dos grupos de pessoas que costumam aparecer no topo das nossas listas de festas: os pobres, aleijados, coxos e cegos devem ser os primeiros. É claro que ele não quer estragar nossa festa, mas questionar a estreiteza das fronteiras que traçamos entre os que são dos nossos e os outros. Ele coloca em questão a busca de compensações que rege nossas pequenas e grandes ações. A verdadeira felicidade consiste em dar generosamente, sem cobrar dividendos, na terra ou no céu.
“Pelos humildes ele será exaltado.”
A motivação mais profunda desta inversão radical que Jesus nos propõe não tem nada a ver com ódio às pessoas bem-sucedidas ou às autoridades, nem com o apreço pelo que é feio e baixo. O movente lança suas raízes no próprio Deus, cujo coração se move de compaixão pelos pobres e oprimidos. O Salmo 67/68 celebra: “Pai dos órfãos e defensor das viúvas, assim é Deus na sua santa morada. Aos desprezados Deus dá uma casa para morar, faz sair com alegria os prisioneiros...”
A este propósito, a escritura ensina: “Sê misericordioso com os órfãos como um pai, e como um esposo para suas mães; e serás como um filho obediente do Altíssimo...” (Eclo 4,10-11). Por isso “quem oferece um sacrifício com os bens dos pobres é como quem imola um filho na presença do pai. A vida dos pobres é o pão que necessitam; quem dele os priva é um assassino. Quem subtrai o pão do suor é como quem mata o seu próximo; derrama sangue quem defrauda o assalariado” (Eclo 34,24-27).
Maria e Jesus nos ensinam que Deus humilha aqueles/as que se extaltam e exalta os/as humilhados/as. Mas não é só isso. São os humildes que realmente honram a Deus e penetram seus mistérios em profundidade. E nós honramos realmente a Deus quando nos tornamos semelhantes a ele no amor preferencial e solidário pelos últimos. E assassinamos os pobres quando, como pessoas, como Igreja ou como nação, ignoramos ou pisoteamos seus direitos.
“Amigo, vem para um lugar melhor!”
A recompensa para quem segue a via proposta e percorrida por Jesus é dada na ressurreição dos justos. Em outras palavras: a felicidade que ninguém pode roubar é esta que conquistamos – ou recebemos de graça! – entrando pela estreita porta da humildade e da generosidade. É a alegria profunda que experimentamos quando ouvimos da boca dos porta-vozes da vida o convite: “Amigo/a, vem para um lugar melhor!” Bendita Palavra que suscita nova sensibilidade e novo olhar, nos liberta e regenera!
Jesus de Nazaré, Palavra de Deus na voz e na carne humana:  acolhemos tua palavra forte e iluminadora no inídco do mês da Bíblia. Tu nos pedes que, na mesa da história e nas mesas da Igreja, reservemos os primieros lugares aos que são vistos e tratados como últimos. Ajuda-nos a assimilar coerentemente este mandamento para podermos escutar teu convite: “Vem para um lugar melhor!” Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Fatos & Personagens: Martin Luther King

“Eu tenho um sonho...”

No dia 28 de agosto de 1963 (há 50 anos!), diante de uma imensa multidão que cobria as ruas de Washington, o pastor Martin Luther King sonhou em voz alta:

“Sonho que algum dia os meus filhos não serão julgados pela cor da sua pele... Sonho que algum dia toda planície se elevará e toda montanha encolherá...”

Naquela altura, o FBI determinou que Luther King era “o negro mais perigoso para o futuro dessa nação”, e numerosos espiões perseguiam passo a passo seus dias e suas noites.

Mas ele continuou denunciando a humilhação racial e a guerra do Vietnã, que transformava os negros em bucha de canhão, e sem meias palavras dizia que seu país era “o maior fornecedor de violência do mundo”.

Em 1968, uma bala partiu seu rosto...


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 274)

domingo, 25 de agosto de 2013

Um artigo do Pe. Rodolpho Ceolin msf

“Queremos mais asfalto!”

O jornal Correio do Povo (21.10.1999, p. 4) estampou um artigo com o seguinte título: “Queremos mais professores!” Este foi o grito de cem mil estudantes mobilizados em cento e quarenta cidades da França. Este acontecimento me fez lembrar de outro: no  corrente ano, cidadãs e cidadãos gaúchos, aos milhares, debateram democraticamente acerca das prioridades locais e regionais; nas assembléias populares, por votação, a esmagadora maioria decidiu: “Nós queremos saúde, educação e agricultura!”

Transcorridos poucos meses, eis que surgem certos personagens que se dizem paladinos da democracia. Foram entrando em cena e passaram a desfilar pelo Rio Grande afora... Certamente nem todos eles assumiram tal postura unicamente para salvar a soberania de sua instituição, nem tampouco por solidariedade ao povo soberano que os brindou com o poder para que agissem a seu favor e jamais contra ele. Foi para bem servir ao povo, segundo as necessidades por ele sentidas e entendidas como prioritárias, que nós os elegemos...

Infelizmente, poucos deles se misturaram conosco, naquelas noites frias, para nos ouvir e dialogar conosco a respeito do que vemos como prioridades no contexto em que vivemos. Tivessem eles tomado assento em nossas assembléias, estariam hoje melhor aparelhados para definir o orçamento estadual.

Mas não é propriamente esta questão que desejo abordar. Quero externar meu assombro diante de vozes desafinadas com a voz do povo. Ouvem-se vozes que insistem: “Nós queremos é mais asfalto!”

Diante desse fato, veio-me à lembrança que, após o regime militar, o extinto PDS sofreu nas urnas estrondosa derrota em todo o País, enquanto que o PMDB saiu vitorioso de Sul a Norte. Na ocasião, certo militar, deputado estadual, cujo nome é Pedro, foi entrevistado por uma emissora de Porto Alegre. Ressentido e estupefato diante da derrota estonteante, o referido militar declarou:

“Não consigo entender o nosso povo!... Não entendo!... Como entender que o povo tenha votado em massa contra o nosso governo, que tanto fez pelo país?... Pois nós espalhamos a telefonia por todos os recantos; construímos Itaupu, orgulho nacional, e a ponte Rio-Niterói, uma das maiores do mundo; cortamos o Brasil inteiro, semeando estradas asfaltadas em todas as direções... E o povo brasileiro não soube reconhecer o gigantesco progresso que promovemos!”

Findo o desabafo do parlamentar, o entrevistador arguiu: “Mas, Senhor Coronel, o que aconteceu é fácil de entender!... Senhor Coronel, é que o nosso povo está com fome!... Asfalto e concreto não enchem o estômago!... Nosso povo está com fome!

Dizem por aí que a história se repete. Sendo assim, o que o futuro ainda irá trazer de surpresas?... É uma incógnita. O triste, porém, é que a fome continua e aumenta sempre mais. O que sei, biblicamente falando, é que todos aqueles que oprimiram e infernizaram a vida dos pobres sempre se deram mal! Por amor e respeito a estes, eu quisera ouvir ecoar pelo Rio Grande afora: “O que nos queremos é educação para todos e de boa qualidade! É saúde ao alcance de todos! É mais pão em nossas mesas! Porque gaúcho não vive de asfalto!...” E fim de papo!
Pe. Rodolpho Ceolin msf


Nota: Nosso saudoso Pe. Ceolin escreveu este artigo no final de 1999. Não sei se fui publicado ou não. Nele podemos sentir pulsar um coração solidário e uma mente aberta e lúcida, capaz de identificar por onde passam os caminhos e os movimentos que realmente transformam a sociedade. Chamo a atenção para o “nós”, sujeito que atravessa todo o artigo. De fato, o Pe. Ceolin, na época com quase 70 anos de vida, participava assiduamente das assembléias populares do Orçamento Participativo, do Conselho Municipal de Saúde de Passo Fundo e de várias manifestações populares. A foto ao lado, gentilmente partilhada pelo Ir. Moacir, registra o Pe. Ceolin (à direita) puxando a frente nas manifestaçõe que, no amanhecer de um dia qualquer, no final de década de ’90, ocuparam o trevo de Carazinho, fechando temporariamente as BRs 386 e 285. Belo exemplo de militância firme e madura.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Pedindo a graça de dançar ao ritmo do Evangelho

Santa Maria, mulher que conheces bem o sofrimento, mas que também conheces a dança, ajuda-nos a compreender que a dor não é a condição e o destino inexorável do ser humano, mas o vestíbulo pelo qual passamos para deixar a bagagem, pois não se pode dançar com as malas nas mãos...
Não te pedimos o dom da anestesia, nem isenção da quota de sofrimento que nos toca. Te pedimos apenas que, nos momentos de prova, nos preserves do pranto dos desesperados.
Santa Maria, mulher que conheces bem a dança, se te pedimos que estejas perto de nós na hora da nossa morte é porque sabemos que experimentastes verdadeiramente a morte, ão tanto a tua própria morte, aquela que viveste por um breve instante, antes de seres elevada ao céu, mas a morte absurda e violenta do teu filho.
Te suplicamos: renova também para nós, no momento supremo, a ternura que manifestaste a Jesus, quando do meio-dia às três da tarde se fez uma grande escuridão sobre toda a terra. Naquelas horas tenebrosas, nas quais o único som que se ouvia era o dos gemidos do condenado, dançaste em torno da cruz os teus lamentos de mãe, implorando o retorno do Sol...
Pois bem, mulher do eclipse total, repete a dança em torno à cruz dos teus filhos e filhas. Se estás presente, a luz não tarda a despontar, e até o patíbulo mais trágico floresce como o belo e imponente ipê amarelo, anunciando o início da primavera.
Santa Maria, tu que conheces e aprecias a dança, ajuda-nos a compreender que a festa é a vocação fundamental do ser humano. Por isso, renova nossa fidelidade e nossa sintonia com a Boa Palavra do teu filho, aumenta nossa reserva de coragem, duplica nossa provisão de amor, acrescenta óleo nas lâmpadas da nossa esperança.
Ensina-nos a viver de tal modo que, além de promover e preparar a evangélica festa do reconhecimento da dignidade dos últimos, superemos a postura do ‘irmão mais velho’, do ‘justo e justificado’, entremos alegremente nesta festa e participemos da dança da vida. E faz com que, nas frequentes carestias de felicidade que marcam os nossos dias, jamais deixemos de esperar com fé Aquele que, finalmente, mudará nosso luto em dança e nossa roupa de luto em trajes de festa (cf. Sl 30/31,12).
(Tradução e adaptação de uma invocação de Dom Tonino Bello)

Palavra & Polêmica

Ontem a Igreja nos propunha a memória de Maria Rainha. Você não acha que este título aplicado a Maria é assaz anacrônico e ambíguo, apesar da memória ter sido introduzida na loiturgia recentemente (por Pio XII, em 1955)? Como não ficar com a impressão de que, para os cristãos católicos, a monarquia – com seus reis, rainhas e príncipes – continua sendo o ideal perfeito do que é ser homem e mulher? O Evangelho sublinha que Maria é serva, e não rainha! O próprio trecho de Lucas proposto para a liturgia do dia tem seu desfecho nas palavras claras e belas de Maria: “Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc 1,38). Só a longa convivência quase simbiótica do cristianismo com as monarquias e os impérios pode levar ao disparate de imaginar e propor Maria como rainha. Renovar o imaginário é preciso! Dando por descontado que não podemos prescindir de imagens para falar de Deus e daqueles/as que o buscam e testemunham, ao menos busquemos imagens mais sintonizadas com o Evangelho. Que tal celebrar a memória de Maria Serva do Senhor? Ou propor a festa de Maria Sindicalista ou líder de movimentos populares? Ou a solenidade de Maria Mestra dos sonhadores utópicos?

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Mensagem da CNBB para o Dia do/a catequista

MENSAGEM AOS/ÀS CATEQUISTAS DO BRASIL

Um grande grito de louvor e ação de graças brota do nosso coração, por ocasião, mais uma vez, do Dia do/a Catequista. Nele celebramos o ministério bíblico-catequético de todos nós, tão essencial na vida da Igreja! O que seria da Igreja no Brasil, sem a plêiade de catequistas espalhados por todas as “periferias existenciais” do seu imenso território?

Neste ano de 2013, ainda em pleno Ano da Fé, fazemos a memória sagrada do documento “Catequese Renovada”. Desejo que cada um/uma de vocês sinta profunda alegria, não somente pelo documento escrito, mas por causa de toda a vida que ele gerou e impulsionou em nossa caminhada eclesial. Muitos de vocês, os/as mais vividos/as, guardam na mente e no coração o grande mutirão – um verdadeiro “vendaval” provocado pelo Espírito Santo - que trazia um dinamismo novo à nossa prática bíblico-catequética. Todos nós vimos ou ouvimos falar do imenso esforço feito por pessoas que gastaram o melhor de suas vidas para divulgar e tornar vivo em nossas comunidades este espírito novo.

Quero destacar, de modo muito especial, o Frei Bernardo Cansi, que já está na casa do Pai, de onde continua a nos inspirar. Este homem fez da “Catequese Renovada” sua grande missão para servir Jesus Cristo de forma incansável: uma verdadeira paixão que contagiou milhares de catequistas por todo o Brasil. Na pessoa dele agradecemos a Deus toda a nuvem de catequetas e biblistas a serviço da renovação bíblico-catequética. E também agradecemos a Deus por cada um de vocês que até hoje lutam e, sem esmorecer, continuam a lutar para tornar realidade o processo de Iniciação à Vida Cristã e de Animação Bíblica da Vida e da Pastoral, que são os frutos atuais desse esforço de renovação.

Neste Dia do/a Catequista também não podemos deixar de lembrar o que aconteceu entre nós há um mês atrás . O profundo processo bíblico-catequético desencadeado pela JMJ, envolvendo grande número de bispos, presbíteros, religiosos e leigos – especialmente jovens -, mas tendo o papa Francisco como catequista principal. Ele apareceu diante de nossos olhos maravilhados de uma maneira muito simples mas profundamente tocante de evangelizar. Uma catequese, feita por ele, de gestos, de atitudes, de simbologias e de palavras cheias de afeto e unção dirigidas ao coração dos jovens e de todas as pessoas, provocando ânimo, coragem, esperança e intensa alegria. Uma perfeita experiência de catequese “comunitária, vivencial e bíblica”, como o próprio documento “Catequese Renovada” propõe.

Por fim recordamos, agradecidos, o papel de Nossa Senhora Aparecida, grande catequista que sustenta a fé, a esperança e o amor do nosso povo brasileiro. Que ela esteja sempre ao nosso lado e nos alcance a bênção da Trindade Santa!
PARABÉNS, queridos/as catequistas da nossa Igreja no Brasil!

          Dom Jacinto Bergmann

          (Arcebispo de Pelotas/RS e Presidente da Comissão episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

21° Domingo do Tempo Comum

Lá na praia eu deixei o meu barco...
(Is 61,18-21; Sl 116/117; Hb 12,5-7.11-13; Lc 13,22-30)

Escutando algumas pregações ou lendo certos escritos teológicos e espirituais, às vezes tenho a impressão de que algumas pessoas ainda pensam que os leigos e leigas são gente sem vocação alguma, uma maioria que é paradoxalmente um resto que não foi chamado a nada e, por isso, deve apenas escutar e obedecer. Os leigos e leigas viveriam nos mares deste mundo, e não lhes caberia buscar outros mares. Deveriam esperar uma salvação que só lhes pode vir da oração das pessoas consagradas e dos sacramentos administrados pelos ministros ordenados. Nada contariam na missão de salvar e de libertar. Jamais alcançariam a maturidade espiritual. Seriam os últimos da pirâmide eclesial, uma base sem importância sobre a qual recai todo o peso institucional. Daí que, quando queremos dizer que não entendemos de algo, dizemos que ‘somos leigos’ no assunto... Pobre Igreja aquela que pensa assim e age conforme pensa... Meditemos um pouco sobre isso à luz da Palavra e da prática de Jesus Cristo.
“Senhor, abre-nos a porta!”
Todos os seres humanos aspiram a salvação, mesmo que dela falem usando nomes diversos, ou silenciem. O ponto de partida é a experiência de uma inadequação entre o que somos e o que deveríamos ser, entre as contingências do presente e a plenitude desejada e sonhada para o futuro. Aquilo que a bíblia e a teologia chamam ‘salvação’ ou ‘Reino de Deus’ recebe hoje o nome de liberdade, segurança, realização, plenitude, maturidade, emancipação, paz, bem viver, etc.
Mas, além desta diversidade de nomes, há também duas concepções fundamentalmente distintas sobre a forma de chegar a esta situação descrita como salvação: o caminho da confiança absoluta nas próprias forças e recursos, da submissão servil aos próprios interesses e ambições, do fechamento em si mesmo ou nos grupos limitados; ou o caminho da abertura aos outros, da escuta de outras vozes e do reconhecimento da dignidade dos outros, da acolhida do dom que nos vêm de fora.
“É verdade que são poucos os que se salvam?”
É durante o caminho para Jerusalém, a cidade que persegue e mata os profetas, que um anônimo provoca Jesus sobre a questão do número das pessoas que se salvam. Parece que este sujeito não está interessado no caminho que leva à salvação, mas no número dos que são beneficiados por ela. Estaria preocupado em reservar isso a uma minoria (da qual obviamente ele faria parte)? Estaria interessado em confirmar uma perspectiva elitista e discriminatória presente em alguns setores do judaísmo?
Jesus desloca a questão do número dos que se salvam para as mediações da salvação. Sem desconhecer que a liberdade que cria comunhão e a maturidade que nos faz dom é uma graça que não vem apenas de nós mesmos, Jesus sublinha que ela não dispensa o esforço pessoal contínuo. O caminho da salvação passa pela exigente conversão de uma postura estreita e exclusiva a uma visão aberta e inclusiva, do iate seguro e restrito dos nossos interesses para o barco amplo e frágil do bem comum.
Além de enfatizar a necessidade de empenho pessoal no processo de amadurecimento e libertação, Jesus sublinha que este engajamento é tarefa para o tempo presente, e não pode ser adiado indefinidamente. Comparando o processo de salvação com uma porta estreita, Jesus diz que chegará o tempo em que o dono da casa fechará a porta e não será mais possível entar. Portanto, é preciso desfrutar responsavelmente das possibilidades de crescimento que cada momento nos oferece.
“Comemos e bebemos na tua presença...”
Para muitos, a religião é o caminho mais seguro para a salvação. As pessoas maduras, realizadas, plenamente humanas ou santas seriam aquelas que rezam bastante, que observam as prescrições religiosas, que regem a vida por uma moralidade estrita (especialmente na área sexual e familiar), que vivem no tempo suspirando pela eternidade. Frequentemente são pessoas que, tendo na terra tudo o que desejam, querem garantir antecipadamente uma propriedade no céu. Mas Jesus é a única porta!
Na verdade, a religião não existe em função disso. Esta é uma caricatura ou uma versão empobrecida e ideologizada da religião que, em termos antropológicos e culturais, é uma tentativa de responder às perguntas fundamentais do ser humano e oferecer-lhe indicações de como alcançar o bem-viver. A religião não se divorcia da ética, inclusive da ética social, nem do mundo, inclusive das coisas materiais. A religião propõe uma forma específica de viver no mundo e se relacionar com as pessoas e coisas.
Para aqueles/as que reduzem a religião a um conjunto de prescrições miúdas a serviço do isolamento e da indiferença, Jesus adverte: “Não sei de onde sois...” E não adianta apresentar a lista dos bons comportamentos, da frequência aos sacramentos e prédicas. Infelizmente, estas pessoas demonstram uma imaturidade e uma mediocridade humana e espiritual decepcionantes e, muitas vezes, irrecuperáveis. As práticas religiosas infantis e interesseiras acabam impedindo a salvação.
“Tornai retas as trilhas para os vossos pés...”
Mas há também o caminho da ética, a via da prática da justiça, que pode vir conjugada ou não com a religião. Uma religião sem ética compromete a maturidade humana, enquanto que a prática da justiça, mesmo sem uma perspectiva religiosa, é sinal e caminho de plenitude humana. Apresentando os profetas e patriarcas como plenos cidadãos do Reino de Deus, Jesus reforça o princípio de que a prática da justiça é dimensão instrínseca da religião e expressão de uma humanidade madura.
Justiça é um conceito que descreve a correta relação com Deus, com as pessoas e com as coisas, e está intimamente relacionado à compaixão, à misericórdia e à autêntica piedade. No âmbito da relação com as pessoas, a justiça prioriza a relação com os pobres e oprimidos, de forma que, do ponto de vista bíblico, ser justo significa defender publicamente a dignidade dos pobres, proclamar seu direito a viver dignamente, mesmo quando a lei positiva não reconhece esse direito. Nisso, Jesus é exemplo.
E aqui podemos lembrar, entre muitíssimos outros, o testemunho de Santa Rosa de Lima, a primeira santa das Américas, cuja memória celebramos no dia 23 de agosto. Segundo o Catecismo da Igreja Católica (n° 2449), ela acolhia e atendia em sua casa os pobres e enfermos de Lima, o que provocou a advertência de sua mãe. E Rosa respondeu: “Quando servimos os pobres e os enfermos, servimos a Jesus. Não podemos nos cansar de ajudar o nosso próximo, pois nele servimos o próprio Jesus.”
“Virão muitos do oriente e do ocidente, do norte e do sul...”
A Igreja é a congregação de todos os homens e mulheres apaixonados pelo sonho de uma humanidade redenta e liberta. Os membros do povo de Deus – esta imensa caravana de homens e mulheres salvos e humanamente maduros – não trazem necessariamente este título estampado no rosto ou nos documentos. No caminho da salvação não funcionam as recomendações, os privilégios acumulados, os ‘estados de vida’. A salvação de Deus não conhece fronteiras políticas, religiosas ou culturais.
Respondendo à pergunta sobre o número dos que se salvam, Jesus diz que “virão muitos do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa do Reino de Deus”. Em outras palavras: alguns daqueles que as religiões e instituições descartam ou colocam em último lugar, aos olhos de Deus são os mais importantes e ocupam os primeiros lugares. Todos os homens e mulheres são chamados à salvação e, de um modo que só o Espírito de Deus sabe, participam do mistério pascal de Jesus Cristo.
“Há últimos que serão primeiros e primeiros que serão últimos.”
Será que os leigos e leigas, frequentemente considerados uma maioria desprezível e sem função relevante na Igreja, não são os mais importantes do ponto de vista do Reino de Deus? Será que, imersos/as no mundo sem renunciar ao fermento do Evangelho, eles/as não revelam uma liberdade mais consequente e uma maturidade humana mais que surpreendente? Eles/as recordam, mais com a vida que com discursos, que a encarnação no mundo é uma dimensão irrenunciável da vida cristã.
Jesus de Nazaré, porta aberta pela qual passamos da escravidão à liberdade, do estreito mundo do nosso eu ao fraterno e solidário mundo do Outro: ajuda-nos a reconhecer que a vocação e a missão dos leigos e leigas é essencial. São eles/as que abrem a complexa realidade social à solidariedade e à justiça e testemunham e anunciam com a vida um outro mundo possível. Que sejam sempre mais numerosos os leigos e leigas que, passando por ti, a exigente porta do discipulado missionário, deixam na praia o barco da comodidade e dos privilégios e se lançam heroicamente noutros mares. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

Fatos & Personagens: A revolta dos escravos negros no Haiti

A melhor mão de obra

O padre francês Jean-Baptiste Labat recomendava num de seus livros, publicado em 1742:

“Os meninos africanos de dez a quinze anos são os melhores escravos para se levar para a América. Tem-se a vantagem de educá-los para que marquem o passo como melhor convenha aos seus amos. Os meninos esquecem com mais facilidade seu país natal e os vícios que lá reinam, se encaminham com seus amos e estão menos inclinados à rebelião que os negros mais velhos.”

Esse piedoso missionário sabia bem do que falava. Nas ilhas francesas do mar do Caribe, Père Labat oferecia batismos, comunhões e confissões, e entre missa e missa vigiava suas propriedades. Ele era dono de terras e escravos.

Em 1791, outro amo de terras e escravos enviou uma carta do Haiti. Dizia que “os negros são muito obedientes, e serão sempre”.

A carta estava navegando rumo a Paris quando ocorreu o impossível. Na noite de 22 para 23 de agosto de 1791, noite de tormenta, a maior insurreição de escravos da história da humanidade explodiu nas profundidades da selva haitiana. E esses negros muito obedientes humilharam o exército de Napoleão Bonaparte, que havia invadido a Europa de Madri a Moscou.


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 268-269)