segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Convicção missionária do Pe. Ceolin

Neste breve artigo, publicado em 2007 (O Bertheriano, Ano XXVI, julho de 2007, p. 11), o Pe. Ceolin partilha sua convicção e seu espírito missionário. Para ele, o missionário, como Jesus, não é uma pessoa movida por uma doutrina, mas alguém que se deixa comover pela necessidade do outro; se apresenta como um enviado, e não quem vem em próprio nome; não chega para cobrar contas ou publicar ameaças, mas para anunciar uma boa notícia. Para nós, o modelo missionário é Jesus Cristo, e é nele que também nosso Fundador encontrou inspiração e força.

A missão de Jesus e a nossa é evangelizar!

Jesus disse de si mesmo: “O pai me consagrou e me enviou ao mundo” (Jo 10,36). “Eu devo anunciar a Boa Nova do Reino de Deus também a outras cidades, pois é para isso que eu fui enviado” (Lc 4,43).

“O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Notícia (evangelizar) aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para restituir a liberdade aos oprimidos, e para proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19).

Jesus declarou isso na sinagoga de Nazaré. Assim, ele tornou pública a finalidade da sua vinda ao mundo. Em outras palavras, ele disse o seguinte: “A minha missão é evangelizar!

Para ser missionário/a é preciso ter duas paixões: estar possuído de um grande amor por Jesus Cristo e pela Humanidade. Assim foi Jesus, e assim foi também nosso Fundador, o Pe. João Berthier.

Ao ver as multidões, Jesus teve compaixão, porque estavam como ovelhas cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor.  Então ele disse aos discípulos: “Elas são tantas e os operários são tão poucos!” (Mt 9,36-37)

O Pe. Berthier, santo homem de Deus, movido pelo espírito apostólico, vendo muitos jovens desejosos de serem missionários, mas que não eram admitidos nos seminários por serem pobres ou terem passado da idade, não se cansou de lutar até que conseguiu ver aprovada pelo Papa a Congregação dos Missionários da Sagrada Família.

Por que “Sagrada Família”? O Pe. Berthier disse que escolheu a Sagrada Família como modelo da sua nova Congregação “porque foi nela que cresceu o eterno Sacerdote, o Missionário do Pai” (cf. Const. 1895, 13).

Enviados a quem? A missão especial dos Missionários da Sagrada Família é “ir àqueles que estão longe” (At 2,39; Const. 2). Ou seja: ir àqueles que ainda não aceitaram Jesus Cristo em sua vida ou que estão afastados da comunidade; colocar-se a serviço daqueles que são injustamente empobrecidos, privados das condições indispensáveis e necessárias a uma vida humanamente digna.

Pe. Rodolpho Ceolin msf

domingo, 29 de setembro de 2013

Dia da Bíblia

A bíblia na vida dos cristãos

Hoje, 30 de setembro, fazemos memória de São Jerônimo, um dos maiores estudiosos das Sagradas Escrituras da antiguidade. Por isso, as comunidades católicas do Brasil celebram hoje o Dia da Bíblia. A propósito, transcrevo aqui alguns pensamentos sobre a Bíblia.

“Lê com frequência e aprende o melhor que possas. Que o sono te encontre com o Livro nas mãos e a página sagrada acolha o teu rosto vencido pelo sono.” (São Jerônimo)

“Quando tomamos a Bíblia nas mãos e a lemos com fé, voltamos a passear com Deus no paraíso.” (Santo Ambrósio)

“Quem julga ter compreendido as Escrituras mas não se empenha na vivência do duplo amor a Deus e ao próximo, demonstra que na verdade ainda não as compreendeu.” (Santo Agostinho)

“O padre deve ser o primeiro a desenvolver uma familiaridade com a Palavra de Deus: abeirar-se da Palavra com o coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade, o pensamento de Crtisto.” (Bento XVI)


“As escrituras manifestam a predileção de Deus pelos pobres e necessitados. Os primeiros que têm direito ao anúncio do Evangelho são precisamente os pobres, necessitados não só de pão mas também de palavras de vida.” (Bento XVI)

Os Beneditinos e a escravidão negra

Tardia liberdade

No dia 28 de setembro de 1871 foi assinada no Brasil a Lei do Ventre Livre, segundo a qual, doravante, os filhos nascidos de ventres escravos negros não poderiam mais ser escravizados. Quatro anos depois (1875), no mesmo dia 28 de setembro, foi publicada a Lei do Sexagenário, que “libertava” os negros e negras escravos que chegassem aos 60 anos. Mas para onde iriam os bebês filhos de escravos e os vovôs de escravos? Quem lhes daria guarida? Grande liberdade...


O historiador Eduardo Hooanert diz que “a Igreja católica (no Brasil) carrega consigo até hoje uma história pesada de conivência e convivência com a escravidão. Ela não suporta de bom grado o julgamento da história e procura defender-se.” Mesmo assim, é importante lembrar que no dia 29 de setembro de 1871, dia seguinte à promulgação da Lei do Ventre Livre, os Beneditinos se tornaram a primeira ordem religiosa a libertar seus próprios escravos, antecipando-se àquilo que seria imposto pela lei assinada pela Princesa Isabel, em 1888. Verdadeira liberdade, ainda que tardia...

Itacir Brassiani msf

sábado, 28 de setembro de 2013

Maria, radicalmente feminina

A Maria da hierarquia, tão diferente da nossa.
Uma das grandes descobertas científicas do século XX gira em torno do papel desempenhado pela comunicação em situações estressantes – a noção de que o estilo de comunicação de uma pessoa pode suavizar ou endurecer o conflito, dependendo de como ele seja usado; a ideia de que simplesmente a quantidade de informação fornecida em situações cruciais afeta o tom, a eficácia e os resultados das negociações. Como resultado dessas descobertas, corporações inteiras mudaram os seus processos de tomada de decisão e de disseminação de informações.
Então, com isso em mente, as pessoas esperaram obter informações sobre o andamento da visitação vaticana (à Coneferência das Religiosas dos EUA) a partir do encontro deste ano, em Orlando, na Flórida. Dado o fato de que não veio nenhuma informação, as pessoas tiraram as suas próprias conclusões.
Eu, por outro lado, fui buscar o único fragmento de dados que a assembleia conseguiu produzir sobre o assunto, a homilia que Dom Sartain proferiu aos seus membros. E era um claro fragmento de comunicação.
Nessa homilia, Maria é "quieta", "dócil", submete a si mesma e não tem nenhum "desejo ou necessidade de entender as coisas ou de resolvê-las para a sua própria satisfação pessoal". Não havia – nos é dito aqui – nenhum "não" ou "meu" nela. A Maria dessa homilia é um receptáculo passivo do que ela entende ser a Palavra de Deus.
Bem, talvez. Mas pode ser bom pensar um pouco sobre tudo isso à luz das outras coisas que nós também sabemos sobre Maria.
O meu objetivo aqui não é analisar o que o bispo disse sobre Maria na festa da Assunção. Ao contrário, eu prefiro olhar para o que ele não disse sobre ela, porque, parece-me, o que ele deixou de fora dessa homilia diz muito sobre o que se espera das mulheres na Igreja Católica.
Por exemplo, Maria responde à declaração do anjo a ela questionando-o. Um anjo! Alguém de uma posição muito mais elevada, ao que parece, do que até mesmo os delegados apostólicos. E só então ela responde com uma resposta "Seja feita a sua vontade" a uma situação em que, aparentemente, um "não" era uma resposta viável. Caso contrário, por que se incomodar conversando?
Ainda mais importante, talvez, é a consciência de que, apesar da seriedade – até mesmo do perigo – da sua situação, Maria não recorreu a homem algum – aos sumos sacerdotes do templo, ao rabino local, ao seu pai ou mesmo aJosé – para obter instruções sobre o que deveria fazer. Ao invés, ela recorreu a outra mulher em busca da sabedoria que ela precisava e seguiu-a. Aqui não houve “visitações” (vaticanas).
Em outro exemplo, nas bodas de CanáMaria dá o seu próprio conjunto de ordens apostólicas a ninguém menos do que o próprio Jesus, assim como para a equipe de servidores, dizendo: "Vão e façam o que ele lhes disser".
A própria Maria questionou a conveniência daquilo que Jesus estava fazendo no templo com os anciãos e, posteriormente, fez parte de uma multidão de familiares e de amigos que estavam até preocupados que Jesus pudesse estar "perdendo o juízo".
E, finalmente, se alguém quiser saber como Maria foi uma figura influente e importante para o desenvolvimento da Igreja primitiva, a própria ideia de ela fazer parte da reunião dos apóstolos em Pentecostes, quando cada um deles foi ungido no discipulado pelo Espírito Santo, deveria ser suficiente para dissipar a noção de que o que temos aqui é uma mulher sem um forte senso de si mesma.
Maria não mencionada nessa homilia sobre a Assunção era uma mulher não intimidada pela Encarnação, que não devia nada a respostas masculinas, não intimidada a dar orientações sobre o que deveria ser feito, que tinha um alto senso de responsabilidade pessoal e que não tinha nem um pouco de dúvida sobre o seu lugar na hierarquia da Igreja.
Essas, penso eu, são precisamente as qualidades que vemos nas mulheres do nosso próprio tempo que estão abrindo espaço para aquilo que algumas partes da Igreja chamam agora de "feminismo radical".
Do meu ponto de vista, esse é um triste mau uso da linguagem e até mesmo um caso mais triste de cegueira espiritual.

Direito humano à informação

William L. Laurence
Receita para tranquilizar os leitores

Hoje, 28 de setembro, é o dia internacionalmente consagrado ao direito humano à informação.

Talvez seja oportuno recordar que, um mês e pouco depois que as bombas atômicas aniquilaram Hiroshima e Nagasaki, o jornal The New York Times desmentiu os rumores que estavam assustando o mundo.

No dia 12 de setembro de 1945, esse jornal publicou, na primeira página, um artigo assinado pelo seu redator de temas científicos, William L. Laurence. O artigo batia de frente nas versões alarmistas e assegurava que não havia radiação alguma nessas cidades arrasadas, e que a tal radioatividade não passava de “uma mentira da propaganda japonesa”.

Graças a essa revelação, Laurence ganhou o prêmio Pulitzer. Tempos depois, soube-se que ele recebia dois salários mensais: o The New York Times pagava um, e o outro corria por conta do orçamento militar dos Estados Unidos (da América do Norte).


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 308)

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Missionários da Sagrada Família

Formar missionários  na escola de Nazaré

No dia 27 de setembro de 1895 chegava à pequena cidade de Grave (Holanda), vindo das montanhas onde cinquenta anos antes a mãe de Jesus havia aparecido a duas crianças analfabetas e bóias-frias, um velho missionário francês. Com 55 anos de idade e uma saúde historicamente frágil, o Pe. João Berthier, Missionário Salettino, chegava à sua nova pátria com uma pequena maleta, poucas coisas nas mãos e um grande desejo no coração: evitar que as vocações missionárias pobres e com idade acima do limite estabelecido pela Igreja se perdessem, oferecendo-lhes uma formação inspirada na Sagrada Família de Nazaré.
O velho quartel, hoje transformado em prédio de apartamentos
Numa visita anterior à cidade o ardoroso missionário, em cuja alma estavam gravadas e pulsavam as palavras que Maria dissera ao se despedir das duas crianças, no dia 19 de setembro de 1846 (“anunciem isso a todo o meu povo!”), havia escolhido a dedo a tenda que abrigaria seu sonho: um casarão abandonado, que, num passado já distante, havia abrigado tropas militares e, posteriormente, era usado como abrigo para o gado no duro inverno holandês. Aquele velho quartel abandonado lembrava a gruta/estábulo de Belém... Assim começava a história dos Missionários da Sagrada Família...
Os primeiros jovens e adultos que chegaram, vindos de diversos países da velha e tumultuada Europa, tiveram que botar as mãos na massa e preparar eles mesmoas a casa que os acolheria. Alguns se assustaram com a miserabilidade do prédio, deram meia-volta e desapareceram. Outros não permaneceram senão alguns meses. Alguns anos mais tarde, refletindo com os primeiros missionários e os jovens candidatos a frustração de alguns, o ousado Fundador dizia, com radicalidade e humor:
Quando ocorre que chegam à noite, não há problema, mas no dia seguinte, quando observam as paredes, não escondem a decepção. E tais pessoas pretendem ser missionários! Que tipo de missionários?! Serão capazes de sacrifício quando deverão anunciar o Evangelho aos infiéis, inclusive ao preço da própria vida? São pessoas a propósito das quais meus antigos professores diziam que, quando chegam, devemos rezar um “Vem Espírito Santo”, e, quando partem, devemos rezar um “Te Deum”.  (28.03.1906)
Ele levava a sério alguns aspectos vividos pela Sagrada Família de Nazaré.  “Trata-se de compreender que é necessário se esforçar para assmilar o espírito da Sagrada Família, pois aqui temos alguns que não compreendem as graças que o bom Deus lhes oferece nessa Casa. Alguns pensam que a casa não apresenta nenhuma beleza, e se permitem até de julgar ou criticar nosso estilo de vida. (...) Eu pergunto: vocês vieram aqui por causa da casa? (...) Se vocês não buscassem senão o bom Deus, teriam dito: “Nós procuramos um estilo de vida laboriosa, pois eu escutei nosso Senhor dizer ‘Se queres seguir-me...’”  (12.01.1905)
Pouco mais de dois anos antes da sua morte, num momento de formação, o Pe. Berthier insistia na originalidade do estilo de vida que estava propondo, e desafiava os aspirantes e junioristas: “Se os outros religiosos constróem grandes casas e belas capelas, se as enfeitam com belos ornamentos, se se permitem certas coisas, nós não os condenamos. Mas como somos chamados a imitar a Sagrada Família, não podemos imitá-los nisso. Portanto, que este tipo de coisa desapareça da nossa casa. Quem ama sua vocação e quiser conservá-la deve se formar e se deixar formar no espírito desta Casa. Quem não quiser assumir isso como meta da sua vida, deveria fazer as malas e deixar de ser um estranho no ninho.”  (09.02.1906)

Cemitério onde jazem, em Grave, alguns dos primeiros MSF
Não se tratava de moralismo ou pauperismo anti-modernista, mas de espiritualidade e de evnagelho. No dia 28 de março de 1906, Berthier dizia com convicção: “Quando alguém deseja ser religioso e missionário, deve ser generoso e não se preocupar se as paredes são bem decoradas ou não. Isso faz mal aos filhos da Sagrada Família, a quem tem por modelo Jesus, Maria e José. Pois sabemos que eles passaram a vida numa pobre casa em Nazaré, e viveram na pobreza e no trabalho.” E concluía convidando a pedir a São José que os ajudasse a assimilar o espírito desta vocação e que afastasse aqueles que resistiam a deixar-se formar sob esse celeste modelo.

Mais de cem anos se passarem e os tempos mudaram. Mudou também o Evangelho? Celebrando o aniversário de nascimento da nossa pequena Congregação missionária, meditemos nesse pedido do Fundador, expresso um ano antes da sua morte: “Oxalá aqueles que mais tarde serão responsáveis pelas demais Comunidades evitem fazer gastos inúteis, como com a decoração e embelezamento de uma casa e outras futilidades. Que em nossas casas todos vivam modestamente, no espírito da Sagrada Família. Não nos preocupemos com a beleza exterior nem mesmo das nossas capelas, pois se estamos sentados sob uma tenda e sobre um banco, sempre estamos diante do Senhor” (29.10.1907).

Itacir Brassiani msf

São Vicente de Paulo

São Vicente de Paulo, apóstolo dos pobres

No dia 27 de setembro a Igreja nos propõe a memória de São Vicente de Paulo, religioso e servidor dos pobres.  Nascido em 1581 e morto em 1660, viveu uma infância muito pobre, foi ordenado padre com apenas 19 anos de idade e fundou, em 1625, a Congregação da Missão, conhecida como Lazaristas.

Fazendo memória desta vida forjada pela caridade, homenageio os Vicentinos e as Vicentinas, que levam adiante seu testemunho. E cito um trecho da exortação Vita Consecrata, de João Paulo II, o qual, ao refletir sobre o serviço da vida consagrada aos pobres, recorda explicitamente São Vicente de Paulo.

“Ao lavar os pés, Jesus revela a profundidade do amor de Deus pelo homem: n'Ele, o próprio Deus põe-Se ao serviço dos homens! Mas revela ao mesmo tempo o sentido da vida cristã e, com maior razão, da vida consagrada, que é vida de amor oblativo , de serviço concreto e generoso.

No seguimento do Filho do homem que “não veio ao mundo para ser servido, mas para servir” (Mt 20,28), a vida consagrada, pelo menos nos períodos melhores da sua longa história, caracterizou-se por este “lavar os pés”, ou seja, pelo serviço sobretudo aos mais pobres e necessitados. Se, por um lado, aquela contempla o mistério sublime do Verbo no seio do Pai (cf. Jo 1,1), por outro, segue o Verbo que Se faz carne (cf. Jo 1,14), aniquila, humilha para servir os homens.

As pessoas que seguem Cristo pelo caminho dos conselhos evangélicos também hoje se propõem ir até onde Cristo foi e fazer o que Ele fez. Continuamente Jesus chama a Si novos discípulos, homens e mulheres, para lhes comunicar, mediante a efusão do Espírito (cf. Rm 5,5), a agape divina, o seu modo de amar, estimulando-os assim a servirem os outros, no humilde dom de si próprios, sem cálculos interesseiros.

A Pedro que, extasiado pelo resplendor da Transfiguração, exclama: “Senhor, é bom estarmos aqui” (Mt 17,4), é dirigido o convite a regressar às estradas do mundo, para continuar a servir o Reino de Deus: “Desce, Pedro! Desejavas repousar no monte. Desce! Prega a Palavra de Deus, insiste a todo o momento, oportuna e inoportunamente, repreende, exorta, encoraja com toda a paciência e doutrina. Trabalha, não olhes a canseiras, nem rejeites dores ou suplícios, a fim de que, pela candura e beleza das boas obras, tu possuas na caridade aquilo que está simbolizado nas vestes brancas do Senhor”.

O olhar fixo no rosto do Senhor não diminui no apóstolo o empenho a favor do homem; pelo contrário, reforça-o, dotando-o de uma nova capacidade de influir na história, para a libertar de tudo quanto a deforma. A busca da beleza divina impele as pessoas consagradas a cuidarem da imagem divina deformada nos rostos de irmãos e irmãs: rostos desfigurados pela fome, rostos desiludidos pelas promessas políticas, rostos humilhados de quem vê desprezada a própria cultura, rostos assustados pela violência quotidiana e indiscriminada, rostos angustiados de menores, rostos de mulheres ofendidas e humilhadas, rostos cansados de migrantes sem um digno acolhimento, rostos de idosos sem as mínimas condições para uma vida digna. A vida consagrada prova assim, com a eloquência das obras, que a caridade divina é fundamento e estímulo do amor gratuito e operoso.

Bem convencido disto estava S. Vicente de Paulo, quando indicava às Filhas da Caridade este programa de vida: “O espírito da Companhia consiste em dar-se a Deus para amar Nosso Senhor e servi-Lo na pessoa dos pobres material e espiritualmente, nas suas casas e noutros lugares, para instruir as meninas pobres, as crianças, e em geral todos aqueles que a divina Providência vos manda” (Vita Consecrata, 75).

S. Vicente de Paulo gostava de dizer que, quando se tem de deixar a oração para ir prestar assistência a um pobre em necessidade, na realidade a oração não é interrompida, porque “se deixa Deus para ir estar com Deus”. Servir os pobres é ato de evangelização e, ao mesmo tempo, selo de fidelidade ao Evangelho e estímulo de conversão permanente para a vida consagrada, porque — como diz S. Gregório Magno — “quando a caridade se debruça amorosamente a prover mesmo às ínfimas necessidades do próximo, então é que se alteia até aos cumes mais elevados. E quando benignamente se inclina sobre as necessidades extremas, então mais vigorosamente retoma o voo para as alturas” (Vita Consecrata, 82).

Itacir Brassiani msf

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

26° Domingo do Tempo Comum

A Palavra de Deus denuncia as injustiças e promove a igualdade.
(Am 6,1.4-7; Sl 145/146; 1Tm 6,11-16; Lc 16,19-31)
A natureza e as mudanças no clima nos lembram que a primavera devagarinho vai chegando ao hemisfério sul. No hemisfério norte, o que se abre é o outono, que para alguns é tempo de colheita e de festa. Para outros, tudo e sempre é festa, mesmo em tempo crises globais, pois, para eles, estas são oportunidades de enriquecimento maior e mais rápido. Os banqueiros, promotores e beneficiados da crise financeira que se prolonga desde 2009, que o digam. Entre as elites financeiras globais e o povo se cavou um abismo que nem as montanhas de jornais repletos de desculpas evasivas e cínicas podem encher. Concluindo o mês da Biblia, não podemos esquecer que, como diz Bento XVI, “a Palavra de Deus denuncia, sem ambiguidade, as injustiças e promove a solidariedade e a igualdade.” E isso também em âmbito global. Por isso, pede o papa emérito, reconhecendo os sinais dos tempos, “não nos furtemos ao compromisso em favor de quantos sofrem e são vítimas do egoismo” (Verbum Domini, 100).
“Procura a justiça e a piedade, a fé, a caridade, a constância, a mansidão...”
Precisamos sempre de novo nos interrogar: o que estamos mesmo buscando na religião? Vários estudos sérios mostram como as pessoas simples, e não só elas, são atraídas pelos fenômenos fantásticos e miraculosos. A multiplicação de novenas e promessas, assim como o crescimento das peregrinações ao encontro do enésimo curandeiro ou milagreiro o comprovam. Por trás disso está a insegurança na qual vive boa parte do nosso povo, mas também a sedução exercida por tudo o que cheira a milagre.
E há também aqueles que buscam a religião como sustentação dos interesses e projetos de dominação, desde os homens que buscam argumentos para seu machismo decadente até os políticos que caçam desesperadamente apoio para suas carreiras. Mas não esqueçamos também a erva daninha do sucesso que lança raízes em não poucas pessoas que se consagram a Deus e se apresentam para exercer o ministério em nome dele. (Nesse contexto os padres popstars prestam um péssimo serviço.)
Na carta a Tmóteo proposta pela liturgia deste domingo Paulo pede bem outra coisa. “Tu que és um homem de Deus, procura a justiça e a piedade, a fé, a caridade, a constância, a mansidão. Combate o bom combate da fé...” Trata-se de juntar a piedade à prática da justiça, de unir a solidariedade à fé, de casar a mansidão com a perseverança no seguimento de Jesus Cristo, único e soberano líder que pode nos guiar a um mundo justo, fraterno e liberto.
“Ai dos que se deitam em camas de marfim, indiferentes ao sofrimento de José...”
No evangelho deste domingo, Jesus continua nos alertando em relação ao risco da aparência, do dinheiro e do poder. Ele polemiza com os fariseus, mas sua atenção está voltada aos discípulos/as. A fé na sua Palavra e a adesão aos seus ensinamentos deve mudar e qualificar nossa relação com os bens e com os pobres. Uma fé vivida unicamente como remédio para nossos males individuais ou como combustível para uma carreira de sucesso tem pouco a ver com Jesus Cristo.
O fato é que, tanto no tempo do evangelista como hoje, frequentemente há um abismo, tanto real quanto ignorado, que separa as pessoas que frequentam a mesma comunidade. É isso que aparece na parábola proposta por Jesus: há um rico que se veste elegantemente e dá explêndidas festas todos os dias; e há um pobre coberto de feridas, devorado pela fome, rodeado de cachorros e sentado na calçada, em frente à porta da casa do rico e absolutamente invisível a irrelevante para ele.
Esta é uma triste imagem de um Brasil ainda dividido pela miséria e pela injustiça, apesar dos esforços dos governos e outras instituições. É também um retrato de um mundo cínico e injusto, dividido entre um punhado de países opulentos e uma maioria de países empobrecidos. O profeta Amós dirige duras palavras aos primeiros: dormem em camas de marfim, comem manjares suculentos e bem vinhos finos, usam perfumes caros dedilham instrumentos musicais, mas são indiferentes às dores do povo.
“Pai Abraão, tem compaixão de mim!...”
Mas no centro da vida cristã está deve estar a compaixão pelos pobres, e não a indiferença e a busca do próprio bem-estar. O caminho entre a porta e a mesa deve ser amplo e aberto. Não é possível cortar a relação entre a fé e a justiça. Jesus não aceita a indiferença dos ricos frente à (má) sorte dos pobres. Sua Palavra é clara e contundente: “Ai de vós, os ricos, porque já tendes vossa consolação!” (Lc 6,24). Ele insiste que os pobres e os sofredores devem ocupar os primeiros lugares na lista de convidados para as e celebrações (cf. Lc 14,13). Mas, ainda hoje, não se permite que Lázaro vá além da porta do rico...
Soa estranho, para não dizer cínico, o pedido de compaixão do rico em meio aos tormentos. Mesmo na tragédia pessoal, ele continua achando que os pobres devem estar a seu serviço: bem que eles poderiam molhar sua língua para aliviar a sede ou avisar seus parentes para livrá-los a tempo dos males que os esperam... Não pode não ser cinismo este apelo para que os pobres tenham compaixão dos ricos que sempre se vestiram de indiferença e prepotência.
“Manda preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento.”
O caminho para o céu é feito de terra! E aqui é preciso lembrar que a indiferença corta a comunicação, destrói as pontes, cava abismos e fere de morte a colaboração solidária entre as pessoas. Será que a simples participação numa celebração religiosa, num comício político ou numa festa civil pode criar relações entre pessoas e grupos que, fora destes espaços, se ignoram, enfrentam ou exploram? Será que a água benta ou o cântico melodioso pode congregar aqueles que a indiferença separa?
É lamentável que muitos pregadores/as caiam na armadilha de uma leitura fácil e preconcebida, e proponham esta parábola de Jesus como uma espécie fotografia da inversão que a morte provocaria na vida real. Jesus não está querendo falar da felicidade que espera os sofredores no paraíso ou do sofrimento destinado aos ricos depois da morte. O que ele quer enfatizar é o caráter decisivo e irreversível das opções que fazemos e das práticas que desenvolvemos no tempo presente.
É incrível como também hoje, imitando os fariseus do tempo de Jesus, tantas pessoas que se apresentam como piedosas queiram simplesmente irgnorar as palavras e ações proféticas que a Bíblia nos propõe. Muitas passam ao largo da fraqueza e da compaixão de Deus na cruz e buscam sinais milagrosos e piedosos. Mas não há outro sinal senão o de Jonas, ou seja: a conversão a um Deus despojado por amor (cf. Lc 11,29-32). Este é o único caminho digno de um discípulo de Jesus Cristo!
“Eles têm Moisés e os profetas. Que os escutem!”
Na vida cristã autêntica não há lugar para privilégios, nem para milagres fáceis. O caminho cristão é pavimentado pela escuta da Palavra de Deus e pela conversão. Jesus se demora na descrição das tentativas infrutíferas do homem rico para reverter uma situação irreversível:  ignorar o abismo que ele mesmo cavou e pedir que lhe tragam água para amenizar a sede; e enviar um morto ressuscitado para convencer seus parentes da necessidade de mudar de atitude.
Mas parece que não há sinal poderoso ou milagre esplendoroso capaz de tocar o coração e a mente de quem se fechou em si mesmo/a e faz da indiferença uma couraça protetora. Nada pode curar aqueles/as que se fecharam hermeticamente à Palavra e ao testemunho dos profetas, dos apóstolos e do próprio Jesus. Moisés soube escutar os clamores do seu povo, compartilhar suas dores e seus anseios de liberdade. Os profetas não fizeram outra coisa que lembrar e reivindicar o direito divino dos pobres. E Jesus se fez do pobre, companheiro e servidor, situando-se no meio dos últimos, inclusive na cruz.
Não adianta apelar para privilégios. Deus desconhece qualquer privilégio fora da prioridade absoluta dos pobres. De nada serve protestar dizendo, ao modo de cobras venenosas e traiçoeiras: “Nosso pai é Abraão!” (Lc 3,8). Ou então: “Comemos e bebemos na tua presença, e tu ensinaste em nossas praças.” É preciso escutar a fundo a voz da consciência, na qual ressoa a Palavra de Deus escrita no livro sagrado: “Não sei de onde sois. Afastai-vos de mim todos vós que praticais a injustiça” (cf. Lc 13,22-30).
No final deste mês da Bíblia digamos com todo o nosso ser: “Fala, Senhor! Fala da Vida! Só tu tens palavras eternas, e nós queremos ouvir. São tantos os apelos que vêm dos oprimidos. Tu és quem liberta, o Deus dos esquecidos. Ajuda-nos a vencer a indiferença que cava abismos entre pessoas que nasceram para ser irmãos e irmãs. Ensina-nos a acolher aquilo que nos dizes através dos profetas e santos/as de ontem e de hoje. E que tua Palavra seja sempre a luz dos nossos passos. Amém!”

Pe. Itacir Brassiani msf

Ir. Veva

Eu sou testemunha!
Este Diário das Irmãzinhas de Jesus, O renascer do povo Tapirapé, é uma página matriz da nova evangelização no meio dos povos indígenas. Uma pequena jóia de antropologia vivida e de missão inculturada. No respeito, na gratuidade, na acolhida. Na procura, na surpresa, na fé.
Diante de um mundo colonialista e de uma tradição pastoral mais ou menos compulsória, elas, as "Irmãzinhas azuis", como dizia Darcy Ribeiro, aprenderam e ensinaram a ver e acolher o outro, como outro e como igual.
O dia-a-dia, o detalhe, a delicada atitude e toda uma vida dada evangelicamente a esse povo, que elas, em grande parte elas – as Irmãzinhas de Jesus – ajudaram a salvar da extinção.
Para minha conscientização e para  minha pastoral, tive a sorte de viver o primeiro contato com os povos indígenas à sombra luminosa das Irmãzinhas de Jesus no povo Tapirapé.
A veterana Genoveva, nossa Veva, tão singelamente heróica, continua aí e aí estava bem antes da minha chegada. Aí estava a saudosa Mayie Batista, falecida há pouco.
E neste ano de 2002, precisamente, as Irmãzinhas de Jesus e nós todos/todas, com elas, celebramos seus cinquenta anos de presença junto ao povo Tapirapé. Seus cinquenta anos de presença em Nossa América.
Logo no início desta nova "missão", que seria depois a Prelazia de São Félix do Araguaia, eu senti como um detalhe amoroso da Providência a presença aqui de uma Fraternidade das Irmãzinhas. O irmão Carlos de Foucuald já vinha marcando minha vida. O que eu não conhecia ainda era essa contribuição pioneira das Irmãzinhas à nova pastoral indigenista, que apenas despontava.
Este Diário, tão simples como veraz, dá fé de uma verdadeira alvorada de missão nova, feita de amizade, de partilha, de testemunho. Ser e estar ali mesmo é mais do que fazer.
Em boa parte, pela aventura evangélica cujos primórdios este Diário recolhe, nada seria igual na pastoral indigenista. Há sementes escondidas que revolucionam toda uma colheita...
Pedro Casaldáliga
Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT)

(Prefácio o belíssimo livro Renascer do Povo Tapirapé - Diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucuald, Editora Salesiana, São Paulo, 2002)

Ir. Geneviève Boyé

Adeus, Irmãzinha Veva!
No dia 24 de setembro, no meio da aldeia onde viveu 60 anos, Ir. Geneviève Boyé, partiu para a Casa do Pai. Chegou francesa, adquiriu cidadania brasileira, mas, por opção evangélica tornou-se índiaTapirapé. Seguiu a orientação da Ir. Madalena quando deixou as três companheiras, em 1952, no Mato Grosso. "Explico às Irmãzinhas o meu pensamento que é muito simples: elas se farão Tapirapé para, daqui, irem aos outros e amá-los... Mas serão sempre Tapirapé".
Veva era muidinha, humilde, de aparência frágil, porém, capaz de transmitir a vitalidade e a coragem de quem descobriu que viver o Evangelho numa aldeia significa "ser índia com os índios". Ninguém como ela conheceu as dificuldades que teve que enfrentar o povo Tapirapé para conseguir sobreviver e preservar sua cultura.
Em 1995, quando era assessor do Setor Vocações e Ministérios, acolhi a Ir. Veva na sede da CNBB, em Brasília. Acompanhei-a às embaixadas da França e da Espanha. Ela precisava preparar a documentação para viajar a estes países. As Irmãzinhas e os Tapirapé haviam recebido o prêmio Bartolomé de las Casas, oferecido pelo rei da Espanha. Tal condecoração é dada à pessoas ou instituições que ajudam minorias em extinção a garantir sua sobrevivência. Disse-me que o único motivo que as levou a aceitar tal distinção foi a "possibilidade de receber ajuda econômica para continuar a luta pela demarcação da terra dos índios e tornar conhecido o povo Tapirapé".
Recordo que ela precisou de um par de sapatos para comparecer diante do rei. Habituada a caminhar de pé no chão, fez alguns calos para ajeitar-se aos sapatos. Naqueles dias eu tinha um compromisso com algumas irmãs  e convidei a Ir. Veva para que desse um testemunho de sua missão. Ficou escandalizada quando uma das imãs lhe perguntou se os índios ainda eram antropófagos.
Ele viajou à Europa acompanhada por dois caciques. No regresso descreveu-me as rações deles diante das novidades do velho Continente. Admirados com o que viam diziam-lhe: "Veva, você deixou tudo isto pra viver quase sem nada junto conosco?!
Herdeira autêntica do carisma de Charles de Foucuald, Veva testemunhou o Evangelho inculturado através da inserção radical, do profundo repeito pelo diferente, do permanente diálogo intercultural e interreligioso. Sem impor nada, soube caminhar de mãos dadas e integrar a boa nova da cultura Tapirapé com a Boa Nova de Jesus. Deste modo, as Irmãzinhas tornaram-se as "parteiras do CIMI", novo jeito de ser presença cristã missionária no meio dos povos Indígenas.
Encontrei a Veva pela última vez no Congresso que celebrou os 40 anos do CIMI, em Brasília, de 20 a 23 de novembro do ano passado. Cansada, magrinha, encurvada, mas muito lúcida, sempre alegre e com os olhos brilhando de felicidade.
Estou chorando sua despedida. O consolo me vem da certeza de que os povos indígenas do Rio Negro e de  toda a Pátria Grande ganharam uma carinhosa intercessora na definitiva Terra sem males.
Em comunhão de preces, abraço você com afeto de irmão menor no amor de Jesus
+ Edson Damian

Pobre bispo do povo do mato