terça-feira, 24 de setembro de 2013

Cristianismos nada cristãos

Li há pouco tempo atrás em uma revista científica que os humanos estão utilizando cada vez menos o cérebro. Um dos cientistas entrevistados dizia que isso pode levar ao atrofiamento deste órgão, visto que, segundo uma das leis da evolução natural, um órgão de um corpo vivente que não é constantemente utilizado tende a desaparecer com o tempo. A diminuição da utilização do cérebro humano vem acontecendo por conta da cultura da imagem, da tecnologia e da informática que nos impedem de fazer operações que o estimulem. Dentre as operações menos realizadas está a imaginação, ou seja, a capacidade de fantasiar, de criar, de inventar, de projetar, de traçar etc.
Creio, porém, que você que está lendo este texto comigo ainda não renunciou à utilização de seu cérebro e muito menos à capacidade de imaginar. Por essa razão convido-lhe agora a fazermos juntos uma viagem, com a ajuda de nossa fantasia.
Vamos ao litoral paulista. É um fim de semana e um pastor evangélico, conhecido por suas excrescências religiosas, vê duas meninas que, segundo dizem, se beijavam publicamente. Manda chamar a guarda policial e prender as meninas. Os guardas as agridem, as machucam e as maltratam, sem o menor respeito por aquelas pessoas humanas.
Depois de imaginar a cena que você não presenciou, entremos no “túnel do tempo” e vamos até Jerusalém de dois mil anos atrás (Jo 8,1-11). Está amanhecendo, Jesus acaba de voltar ao templo, depois de passar a noite em oração no Monte das Oliveiras, e senta-se para ensinar. De repente, um grupo de fariseus e escribas moralistas apresenta-lhe uma mulher surpreendida em adultério. Todos estão com pedras na mão para apedrejá-la. Provocam o Mestre e ele os desafia: “Aquele dentre vocês que nunca pecou atire-lhe a primeira pedra”. O final da história nós conhecemos: “eles se retiraram um após outro, a começar pelos mais velhos”. Jesus ficou sozinho com a mulher e não a condenou, mas a mandou embora em paz.
Voltemos agora a uma cena recente acontecida em uma cidade do sudoeste da Bahia. Uma mulher grávida participa de um grupo de “discípulos” de um vidente de Nossa Senhora. O vidente exige que seus sequazes jejuem vários dias por semana, inclusive aquela mulher que está grávida. Por causa disso a mulher tem complicações, quase morre e quase perde o bebê, que nasceu raquítico e teve que ficar vários dias na UTI neonatal para se recuperar. O marido, furioso com a atitude da mulher, quase pede o divórcio.
Da Bahia vamos de novo a Palestina e mais precisamente à beira de um lago chamado “mar da Galiléia”. Aqui os discípulos de João Batista questionam a prática dos seguidores de Jesus que não jejuavam. Jesus responde taxativamente dizendo que o seu seguimento é um tempo de núpcias, de festa, de banquete e que não tem lógica ficar jejuando (Mc 2,18-20).
Retornemos agora ao Brasil. Vamos até a uma comunidade de periferia de uma capital do Sudeste brasileiro. Aqui uma mulher separada, que vive com outro homem, se apresenta ao padre manifestando o desejo de participar da eucaristia e de batizar seus filhos. O padre, conhecido na comunidade por suas aventuras sexuais com rapazes, não só não atende ao pedido da mulher como a escorraça da igreja, proibindo-a de entrar em qualquer grupo ou pastoral.
Imagino que seu cérebro já deve estar fervilhando, mas vamos voltar à Palestina de dois mil anos atrás. Jesus está atravessando a Samaria, terra de gente “herética”, e pára cansado à beira de um poço. Aqui dirige a palavra a uma mulher e mulher samaritana, para escândalo dela e de seus discípulos. Entra em diálogo com essa mulher e descobre que ela já tivera cinco maridos e estava convivendo de maneira irregular com um sexto homem (Jo 4,4-42). Acolhe essa mulher e a transforma numa catequista, numa evangelizadora, sem exigir dela que abrisse mão daquela união irregular. Esta mulher amasiada, amigada, se torna uma excelente animadora de comunidade: mobiliza a cidade inteira e a conduz a Jesus. A partir do seu trabalho as pessoas da cidade fazem a maior confissão de fé de todos os tempos. Declaram que Jesus “é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4,42).
A este ponto de nossa reflexão você pode deixar o seu cérebro continuar trabalhando, imaginando outras cenas de hoje de que você tem conhecimento e relacionando-as com cenas que envolveram Jesus de Nazaré. Se preferir, páre aqui a leitura deste texto e comece a fantasiar. Você notou os absurdos de certos cristianismos de hoje? Percebeu como se distanciaram por completo de Jesus de Nazaré, de sua prática e de seus ensinamentos? Percebeu que esses tais de cristianismos não têm nada de cristão, mas são uma verdadeira aberração, uma verdadeira negação da proposta do Evangelho?
Foi esse tipo de cristianismo que, no passado, pela Inquisição, levou muitas pessoas inocentes à fogueira. Foi esse tipo de cristianismo que promoveu as Cruzadas, as guerras santas e matou milhares de pessoas. Foi esse cristianismo que queimou várias mulheres, acusando-as de serem bruxas, de terem pacto com o diabo. Foi esse tipo de cristianismo que chegou ao absurdo de acusar essas pobres mulheres de terem relações sexuais com o demônio.
Tenho muito medo desse tipo de cristianismo que, infelizmente, está voltando em muitas partes do mundo e sendo aplaudido por várias pessoas, inclusive por algumas que dizem ainda ter cérebro e que se apresentam como seres pensantes. Tenho medo porque ele pode voltar a fazer estragos enormes na humanidade e a obscurecer ainda mais a mensagem de Jesus, hoje bastante debilitada pela falta de amor e de testemunho de compaixão dos cristãos. Um cristianismo assim nada tem a ver com Jesus, com o seu seguimento. É uma aberração, uma excrescência. Esse cristianismo no dizer de Umberto Galimberti apresenta “um Deus contabilista, um Deus jurídico, um Deus incapaz de graça” (Rastros do Sagrado, Paulus, 2003, p. 31).
Esse cristianismo é pura invenção dos homens e contrasta inclusive com a mais genuína tradição religiosa. O filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso, que viveu quase quinhentos anos antes de Cristo já afirmava que esse tipo de religião é obra dos humanos: “O homem toma por justas umas coisas e por injustas outras; para o deus, tudo é belo, bom e justo”.
Não podemos, pois, assistir inertes e indiferentes a esse tipo de cristianismo que ousa se impor a ferro e fogo, completamente estranho à prática de Jesus e em nítido contraste com os ensinamentos do Evangelho. Precisamos reagir, denunciando tais coisas e participando de projetos permanentes de catequese que sejam capazes de revelar o rosto genuíno de Jesus, sacramento do Pai de ternura e de bondade. Tal catequese deve ser capaz de mostrar que “não se pode comprimir o juízo de Deus nas regras com que os homens organizaram a sua razão e elaboraram as suas morais. Deus está além do verdadeiro e do falso, e igualmente do bem e do mal” (GALIMBERTI, p. 31). A nós cristãos cabe apenas anunciar a boa notícia de que as prostitutas, os pecadores e todas as pessoas que a religião oficial estigmatizou como de “má fama” serão as primeiras no Reino de Deus (Mt 21,31-32).
José Lisboa Moreira de Oliveira

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