domingo, 1 de setembro de 2013

Democracia na Igreja: um debate oportuno

A Igreja não é uma democracia?

Há mais de quarenta anos estou diariamente envolvido com a vida da Igreja Católica Romana. Durante este período escutei centenas de vezes a afirmação de que a Igreja não é uma democracia. Geralmente escuto este tipo de afirmação quando se quer justificar os autoritarismos praticados por eclesiásticos ou por gestores de instituições eclesiásticas. A última vez que escutei tal afirmação foi há poucos dias atrás. Um gestor de uma instituição ligada à Igreja Católica, querendo justificar atitudes pouco evangélicas e pouco transparentes dessa mesma instituição saiu-se com esta afirmação: “Meu caro, você sabe que a Igreja Católica não é uma democracia”.
Diante da resposta evasiva deste gestor tive que fazer alguns esclarecimentos. Antes de tudo disse para ele que, realmente, a Igreja não é uma democracia no sentido que estamos acostumados a entender esse termo. No âmbito político atual entende-se por democracia a vontade da maioria da população de um país ou de um continente, manifestada através do voto, de um plebiscito ou mesmo de um referendum. Por democracia, no sentido comum do termo, entende-se a obrigação que os governantes e os políticos têm de agir com transparência, respeitando a autonomia dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário) e respeitando a vontade da maioria manifestada em algumas ocasiões. Por democracia entende-se ainda uma série de direitos e de deveres individuais e sociais garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelas Constituições dos diversos países.
Sabemos, porém, que nem sempre a vontade da maioria é o melhor para a humanidade e para os vários povos e nações. A história tem demonstrado que, muitas vezes, as escolhas feitas pela maioria são equivocadas e terminam por se voltar contra as próprias pessoas. Por esse motivo vem se firmando cada vez mais a exigência de novas formas de democracia como, por exemplo, a democracia participativa, através da qual a população de uma determinada região ou país manifesta, por meio de determinados organismos, a sua vontade e interfere diretamente na realização das políticas públicas. Nesse processo são respeitados não só a vontade da maioria, mas também o desejo e os direitos de pequenos grupos e minorias, os quais quase sempre são esquecidos nos processos e mecanismos de decisão que consideram apenas a vontade da maioria.
Ora, considerando esses aspectos de uma democracia representativa, pode-se dizer com tranquilidade que a Igreja não pode e nem deve ser uma democracia. Ela, pelo contrário, é muito mais do que isso. A Igreja é uma koinonía e vai, enquanto tal, muito mais além de uma pura e simples democracia. Ettore Franco, meu professor na Pontifícia Faculdade da Itália Meridional (Nápoles) no seu livro Comunione e partecipazione: la koinônia nell’epistolario paolino (Bréscia: Morcelliana, 1986) estudou a fundo essa questão.
Para Franco a koinonía bíblica é a salvação escatológica oferecida pelo Pai, através da ação do Filho, no dinamismo do Espírito e que se concretiza em um determinado momento da nossa história (1Jo 1,1-3). Enquanto tal, a koinonía implica uma resposta de comunhão e de participação dos cristãos e das cristãs, acolhendo o dom salvífico. Isso significa que aqueles e aquelas que crêem devem se preocupar com o bem comum e com o bem dos demais. Essa atitude comporta necessariamente relações horizontais entre as pessoas, de modo que ninguém seja tratado de maneira inferior, discriminadora, preconceituosa e excludente (1Cor 10,14-22).
Além dos relacionamentos horizontais, a koinonía comporta a partilha dos bens entre as pessoas. Essa partilha dos bens expressa a solidariedade que deve existir entre aqueles e aquelas que acreditam em Cristo e destes para com todas as pessoas necessitadas. A solidariedade, por sua vez, é sinal visível da graça de Deus que é a comunhão com Cristo (2Cor 8 – 9). A koinonía, portanto, é expressão de um relacionamento entre os cristãos e entre as cristãs que não admite formas de distinção ou de hierarquia que sejam discriminatórias ou excludentes, nas quais algumas pessoas ou até multidões sejam consideradas inferiores e, por isso mesmo, excluídas de determinados espaços. A koinonía exige, enquanto tal, que se respeite o direito de toda pessoa batizada a ter voz e vez na comunidade cristã. Esse direito não nasce do pertencimento a uma determinada hierarquia ou ao fato de ter tido oportunidade de uma formação acadêmica (ter feito teologia, por exemplo), mas da inserção efetiva no Corpo de Cristo que se dá através do batismo (Rm 6,3-5). O batismo nos faz todos irmãos e irmãs uns dos outros e constitui cada pessoa no direito e no dever de participar ativamente da vida da Igreja, segundo a graça recebida do Espírito através desse mesmo batismo (Ef 4,4-16).
Consequentemente na Igreja-koinonía as pessoas batizadas são todas, sem exceção, irmãs umas das outras (Mt 23,8) e, por isso, não há lugar para autoritarismos e nem para uma hierarquia dominadora, impositiva e repressora. A solução das questões se dá através do diálogo fecundo entre as diversas pessoas que ocupam funções diferentes, exercem ministérios particulares e prestam vários serviços à comunidade. Tudo de acordo com os dons recebidos do Espírito. Na comunidade cristã que tem como referência a koinonía bíblica não existem mestres, não existem senhores, não existem “pais”. Somente Cristo é o Mestre e Senhor e somente Deus é o Pai de todos e de todas (Mt 23,8-10).
Na Igreja não podem, pois, existir eminências e excelências; pessoas mais importantes e outras menos importantes; pessoas incensadas e outras descartadas ou colocadas em segundo plano. Certos títulos e certas honras atribuídas a determinadas pessoas são resquícios de uma herança do passado, quando a Igreja passou a imitar as tiranias e os tiranos do mundo (Mc 10,42), e que contradizem profundamente o Evangelho. São expressão de uma Igreja que, apesar dos cinquenta anos do Vaticano II ainda não se purificou totalmente, como pediu esse Concílio, mas ainda continua buscando glórias e afastada do seu Fundador pobre, humilde, sofredor e servidor (LG, 8).
Portanto, realmente a Igreja não é e não pode ser uma democracia no sentido que entendemos atualmente este vocábulo. Isso seria reduzi-la drasticamente. Porém, como vimos antes, a Igreja é muito mais do que isso; é uma koinonía e é, enquanto tal, uma comunidade de irmãs e de irmãs na qual não podem ser aceitas de forma alguma as desigualdades, as discriminações, o exercício autoritário do poder etc. Temos ainda um longo caminho a percorrer e somos desafiados a avançar com coragem e determinação na direção da utopia do Reino de Deus. Não podemos e não devemos desistir do sonho de uma Igreja na qual “a totalidade dos fiéis, que receberam a unção que vem do Espírito” (LG, 12), será plenamente respeitada na sua diversidade, superando assim a tentação das hierarquizações discriminantes e excludentes (At 10, 34-35; Gl 3,28-29). Foi com base na koinonía que, nos primeiros séculos da Igreja, as comunidades escolhiam seus ministros e demitiam as autoridades eclesiásticas indignas e corruptas. Mas disso falaremos em outra ocasião.
José Lisboa Moreira de Oliveira

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